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quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Pegando fogo

José Sarney



A marchinha de Francisco Mattoso lança o grito que nos últimos dias está na pele de todos: “Meu coração amanheceu / Pegando fogo, fogo, fogo!” Coração e braços e pernas estão assando com o caloraço de setembro. Nada da morena que passou perto: foram os recordes de temperatura que nos deixaram assim.

Nós aqui no Maranhão até que escapamos das temperaturas quarentenárias e não precisamos entrar em quarentena, mas no Sul Maravilha a coisa foi feia. Felizmente nós somos um povo que é antes de tudo um forte e não tivemos a mortandade que as canículas deste século têm feito no hemisfério norte, sobretudo entre os velhinhos como eu. Lá, quando a maré de caldo quente vem chegando, eles precisam começar as campanhas: “fique em casa”, “hidratação de hora em hora”, “feche bem a casa”.

Feche a casa? Pois é. Na Europa eles descobriram que as casas, bem isoladas para manter-se aquecidas no inverno, funcionam no verão para não deixar entrar o calor. Aqui nessa nossa cidade de São Luís temos felizmente os ventos alísios passando pelas casas de pé direito alto e ventilação cruzada, solução equatorial que nos deixaram os construtores portugueses.

Mas de onde vem este fogo infernal? Hoje não há dúvida de que das mudanças climáticas provocadas pelo homem. Aqui no Brasil não temos, infelizmente, dado a contribuição que devíamos. Continuamos desmatando e tocando fogo, a passos largos, na Amazônia, no Cerrado, até na Mata Atlântica — na minúscula fração da Mata Atlântica que ainda está de pé. É claro que o centro do problema está na Floresta Amazônica, que é tão generosa e acolhedora para o homem e que ele teima em destruir.

No começo do século passado ficou muito conhecido um livro — aliás o nome de um livro — de Alberto Rangel. Era um escritor empolado e difícil de ler, mas o nome colou e virou um apelido injusto. Aliás o conto que dá nome ao livro fala de um engenheiro que invectiva a floresta, que, na voz de Rangel, “poderia responder”:

“Fui um Paraíso. Para a raça íncola nenhuma pátria melhor, mais farta e benfazeja. Por mim as tribos erravam no sublime desabafo dos instintos de conservação… Inferno verde do explorador moderno, vândalo inquieto… alma ansiada de paixão por dominar a terra virgem que barbaramente violenta. Eu resisto à violência dos estupradores…”

O livro foi prefaciado pelo extraordinário Euclides da Cunha. E se a visão de Rangel é a oposta do “inferno verde”, a explicação de Euclides tem o toque do livro inacabado, “O Paraíso Perdido”. “Daí as surpresas. […] as mudanças extraordinárias e visíveis ressaltam no simples jogo das forças físicas mais comuns. É a terra moça, a terra infante, a terra em ser, a terra que ainda está crescendo…”Seu plano era falar do impacto, da dificuldade de apreender, compreender a floresta. “…o que se me abria às vistas desatadas naquele excesso de céus por cima de um excesso de águas[,] lembrava (ainda incompleta e escrevendo-se maravilhosamente) uma página inédita e contemporânea do Gênese.”

Mas a nossa visão contemporânea, para nós que podemos ver a floresta de avião ou mesmo do espaço, ainda é muitas vezes de incompreensão. Mesmo quando se vê as imagens com sensores que veem através do dossel das grandes árvores e se vê a devastação, há uma resistência em compreendermos a finitude que também a alcança. E aí se toca fogo. E nossa floresta está pegando fogo, causa e resultado das mudanças climáticas.

A coisa é difícil. Assim vamos ficar na situação de outra marchinha, essa de Haroldo Lobo e Nassara: “Allah-la-ô ô ôôô / Mas que calor ô ôôô / Atravessamos o deserto de Saara / O sol estava quente / Queimou a nossa cara / Allah-la-ô, ô ôôôôô / Mas que calor, ô ôôôô ô...”

Imirante, 26/09/2023

 https://www.academia.org.br/artigos/pegando-fogo

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José Sarney - Sexto ocupante da Cadeira nº 38, eleito em 17 de julho de 1980, na sucessão de José Américo de Almeida e recebido em 6 de novembro de 1980 pelo Acadêmico Josué Montello. Recebeu os Acadêmicos Marcos Vinicios Vilaça e Affonso Arinos de Mello Franco.

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quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Ruy Póvoas fala de seu nascimento, sua infância e seu propósito.

A propósito do conto machadiano Pílades e Orestes (ou casadinhos de fresco)

 Godofredo de Oliveira Neto



O colega fazia conferência no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, no centro do Rio, no belo prédio construído nas primeiras décadas do século XIX, onde funcionou a Academia Real Militar. O IFCS vai tremer, me confidenciou ele, que chegou ao local junto comigo. Ele faria a conferência ao lado de um professor da Universidade de Berlim, um dos maiores militantes da causa gay na Europa, o colega precisou. Gênero, identidades e política o tema. O professor brasileiro abriu a conferência. Leu umas frase que me soaram conhecidas.

- "A união dos dois era tal que uma senhora chamava-lhes casadinhos de fresco". Me lembrei das frases no conto Pílades e Orestes, do Machado . Nunca pensara em Quintanilha e Gonçalves (os personagens do conto) desse prisma. Mas me assustei. Alguém da plateia interrompeu brutalmente a exposição gritando " você não vai nos dizer que Machado de Assis escreveu texto com esse viés de gênero!"

Outros levantaram a voz criticando o exaltadinho, pedindo silêncio. A coisa logo degringolou. Choveram acusações, houve quem cuspisse em vizinhos de cadeira na plateia. E é aí que eu entro. O que que o professor da Letras acha? Gelei. Tinha tido um pesadelo horrível à noite e ainda estava sonolento. Meu professor de Latim do Colégio Santo Antônio de Blumenau, Frei Odorico Durieux, me passava um sabão: quer dizer que o meu aluno preferido, que consegue passar para o Português trechos inteiros da Eneida e verter para o Latim trechos mal traduzidos para o português, o maior latinista discente que tive até hoje, gosta, como me disseram, de ouvir música profana que elogia belzebu e a devassidão em pura blasfêmia?

- É só brincadeira, respondi. É carnavalização.

Como reação, meus dois ouvidos doeram com as palmadas tipo telefone desferidas pelo amado professor. A pergunta da plateia do IFICS doeu igual.

Respondi academicamente: As pulsões do personagem tornam o pecado uma realidade, mas o leitor não é o pecador - se existisse pecado aí.

O texto alforria o leitor . Fez-se silêncio na plateia. Também achei confusa a minha resposta, mas me abriu espaço para sair e pegar o ônibus em direção ao Fundão. Esqueci de precisar que madame K. estava comigo no evento - você lacrou, ela disse baixinho. Até hoje não entendi bem o sentido de lacrou. Fui, através das janelas embaçadas do busão, apreciando a paisagem carioca saudoso do frei Odorico. Os ouvidos doíam.

Facebook/ Redes Sociais, 14/09/2023

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Godofredo de Oliveira Neto - Sexto ocupante da Cadeira nº 35, eleito em 9 de junho de 2022, na sucessão de Candido Mendes de Almeida e recebido em 2 de setembro de 2022 pela Acadêmica Ana Maria Machado.

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segunda-feira, 4 de setembro de 2023

CARTA DA NAÇÃO ÀS FORÇAS ARMADAS BRASILEIRAS



Se acham que pediremos mais uma vez, inutilmente, que intercedam pelo Brasil, estão redondamente enganados.

Vocês venceram a sociedade pelo cansaço e pela traição. No entanto, trata-se de uma vitória amarga, constrangedora. Vocês se lembram de quando Rubinho Barrichello parou o carro a poucos metros da linha de chegada para que Schumacher vencesse a prova? O alemão subiu ao pódio sob vaias, e aquela “vitória” desonrosa manchou as dezenas de outras vitórias que ele obteve durante sua carreira. Pagou um alto preço pela covardia.

Esse deve ser o provável sentimento de todos os militares incluindo os que ainda gozam de um mínimo de decência, de vergonha na cara, por vossa culpa, generais de araques e sem valor. Para esses comandantes, merecem as mesmas vaias e desprezo que o piloto de Fórmula 1 recebeu na ocasião. A diferença é que serão vaias muito mais duradouras e que respingarão, infelizmente, nas pessoas com as quais convivem. Até seus filhos e netos se envergonharão de vocês.

Deve ser difícil agora levantar cedo e ter que vestir uma farda diante da esposa e dos filhos. A farda se tornou agora um sinal de covardia, de submissão, de decadência moral, de vergonha, de conivência com tudo que há de repugnante. Permitam-nos um trocadilho: convenhamos que, literalmente, sentirão, mais do que nunca, o peso do fardo, pois nunca tiveram o respeito de quem agora os governa e perderam o respeito de quem sempre os defendeu.

Essas medalhas que carregam no peito jamais foram por atos de bravura, porque de bravos vocês não têm nada, mas de covardia. É uma mistura de burrice com traição.

Se acham que os anos pós-governos militares foram difíceis (pelas críticas que receberam da esquerda), não imaginam o que virá pela frente, pois agora estão sozinhos e sob ordens de quem sempre os odiou e que os eliminará aos poucos ou os trocarão por cidadãos indignos. Vocês extrapolaram o limite da indecência ao preferir prestar continência a um ladrão condenado que a um colega de farda - seu presidente e a autoridade máxima da nação - num ato de insubordinação, cometendo crime de lesa-pátria e traição previsto no artigo 55 do Código Penal Militar, que prevê fuzilamento por tais atos. É o que de fato vocês merecem, a pena de morte.

A gota d’água da conduta vergonhosa dos senhores foi o de ainda conduzirem manifestantes indefesos para um campo de concentração comunista. Isso chegou às raias da bizarrice. Cena digna de um Gulag de Stalin. Vocês não perceberam que haviam ali mulheres, idosos e crianças? Pessoas incapazes de destruir o patrimônio público!

Vocês são mesmo tão ignorantes a ponto de não perceberem que o quebra-quebra foi articulado por militantes petistas infiltrados? É sério?

Há duas possibilidades: vocês já se venderam à proposta autoritária deste governo criminoso ou vocês foram feitos de trouxas mesmo. Qualquer resposta representa a desmoralização final das tropas brasileiras, uma instituição que gozava do mais alto grau de nossa confiança. Não há justificativa plausível para aceitarem o estado de absurdos da conjuntura brasileira com tantos gatunos no comando para causar o caos e dominar o povo como fez Hitler. Acham mesmo que isso não lhes afetará e que poderão continuar indo a todos os lugares livremente como antes? Vocês já viraram chacota nas redes sociais e em breve essa instituição será desmantelada, sucateada por aqueles a quem se venderam e serão execrados publicamente.

Judiciário opressor, eleições extremamente burladas, um bandido na presidência, presos políticos, jornalistas censurados, laços com ditaduras e narcotraficantes refeitos, uma armadilha que cedo ou tarde pegará vocês também e suas famílias.

Registra-se, neste momento, a página mais vergonhosa e constrangedora da história das Forças Armadas do Brasil. Os soldados, como os da gloriosa FEB, que outrora enfrentavam nazistas em prol da liberdade, agora prestam continência para um bandido comunista, corrupto, que possui estreitas relações com narcotraficantes, terroristas e ditadores.

Os senhores, por gerações, farão parte da história do dia em que protagonizaram o enterro do Brasil na lama, desviando-o do caminho que trilhava para o primeiro mundo e se livrar das ratazanas que sempre o destruíram.

Quando a velhice vos alcançar, fazemos votos para que o remorso da covardia devore vossas consciências por todo mal causado a 220 milhões de pessoas por mera vaidade. Um inferno para vocês é muito pouco para a covardia e desonra causada à nossa Pátria! REPÚDIO E VERGONHA!

A NAÇÃO BRASILEIRA


(Recebi via WhatsApp – autoria não mencionada)

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domingo, 3 de setembro de 2023

De primeiro foi o abecê

Cyro de Mattos

 


          Sem esconder uma certa alegria na voz, a mãe disse:

          - Segunda-feira você vai aprender o abecê na Escola Montepio dos Artistas.

          Ela finalizou dizendo que primeiro o menino aprende o abecê, que são as letras do alfabeto. Depois vai começar a soletrar as palavras para aos poucos aprender a ler o nome das coisas.

          Na pequena pasta de couro havia sido guardado o abecê, o caderno de caligrafia, outro para os primeiros exercícios de aritmética, um lápis, uma caneta esferográfica, uma caixa de lápis de cor e uma borracha. A merenda, pão com queijo, fora embrulhada com papel brilhante comprado na livraria. Foi posta na sacolinha com a garrafa plástica contendo o suco de uva.

          A mãe disse que todos os dias que fosse à escola ia levar a pasta de couro com os objetos escolares e a merenda escolar. Além disso levaria também a sacolinha com a garrafa de plástico contendo o suco de uva, uns palitos e dois guardanapos de papel.

          As aulas começavam às 8 horas e encerravam às 11, 30. Havia um intervalo de meia hora para os alunos merendarem no pátio da escola. Acontecia às 10 horas.

          Entre assustado e receoso tentou se aproximar daquele grupo de meninos da sua mesma idade, talvez cada um com seis anos. Sentou em uma das carteiras que formavam a primeira fileira no salão grande, ventilado e iluminado. No primeiro dia não quis ficar sozinho. Começou a chorar quando ouviu a mãe dizer para ele que viria buscá-lo perto de 11,30 horas quando então voltaria com ela para casa. Pensou inconformado, era muito tempo ficar à espera que a manhã passasse até que a mãe viesse buscá-lo na escola quando encerrasse o dia de aula para os alunos das primeiras lições escolares. Abriu a boca no berreiro quando viu a mãe saindo pelo corredor para deixar a escola pela porta larga da entrada. Todos ficaram assustados com o berreiro dele, nunca havia acontecido isso antes. A professora pediu que a mãe ficasse aqueles primeiros dias com o filho na escola até que ele se acostumasse com os novos colegas num ambiente que lhe era estranho, estava conhecendo pela primeira vez.

          Ela só ficou com ele apenas nos dois primeiros dias. Fez logo novos amigos nos últimos dias da primeira semana de aula, entre os meninos do seu tamanho. Se esforçou para aprender o abecê o mais depressa. Aprendeu em boa hora a soletrar os nomes. Não precisava dizer o quanto sorriu de contente quando começou a soletrar um bocado de palavras, que a professora ia soletrando, repetindo com paciência, uma a uma.

          Na primeira vez em que foi ler um texto pequeno, que falava do amanhecer numa fazenda, não gaguejou. Foi seguro e rápido. Arrancou aplausos dos colegas. Em casa contou à mãe que já estava começando a aprender a ler. Era uma questão de tempo agora para folhear o almanaque do Biotônico Fontoura ou até mesmo o jornal diário. E então começasse a saber o que acontecia na cidade, já pensando um dia em conversar com o pai sobre o fato que mais lhe chamasse atenção.

          Tempos depois pensaria que se não fosse o abecê jamais se tornaria um leitor desejoso de saber mais acerca da vida, cujos movimentos se manifestavam com o seu modo continuado de acontecer por entre os seres humanos, em cada dia.

          Nem saberia, nos seus detalhes, da importância das coisas criadas por Deus para que existisse o reino perfeito da natureza, com o sol e a chuva, a claridade e a noite, a nuvem e a árvore, o peixe e a água, o pássaro e o canto, enfim, o pai com o trabalho e a mãe como a companheira na construção de uma família com bases no amor e honradez.

 

Cyro de Mattos é baiano de Itabuna. Escritor e poeta, Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz (Sul da Bahia). Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna.

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