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terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Entre 90 e 190

Ignácio de Loyola Brandão

 


Mil Yanomami subnutridos, mais 700 mil mortos pela covid. Não é genocídio?

Difícil não foi ter descoberto a doença, mas sim ter dado com ela tardiamente, obrigando-me a mudar rotinas, vícios, hábitos aos 86 anos. Principalmente vícios, manias. Dizem que tudo se ajeita com boa vontade. Apontem um ser humano que tenha a noção absoluta de boa vontade. Ou não acredito na humanidade?

Agora, com a diabete, ou o diabetes - acho pernóstico este modo de dizer - tive de me adaptar a um aparelhinho que fica grudado em mim, a fim de

medir os níveis de glicemia. O médico me deu os limites considerados normais e recomendou a medição pela manhã, antes do almoço, antes do jantar, no final da noite. Ao menos nos primeiros tempos. Os amigos Vera e Márcio, garantiram ser uma tranquilidade, pode-se viver uma vida normal com diabete. O que é vida normal? Aquele aparelho grudado em minha pele é um dedo-duro do bem. Mudou meu ritmo. E virou vício. Todos lemos livros distópicos em que seres humanos são controlados pela tecnologia. Assim me considero vivendo, comandado por um pequeno círculo, quase uma tatuagem.

Tomei um suco. Pode? Levo o sensor ao braço, 111. Posso. Alívio. Como um lanche na padaria com pão branco. O sensor acusa 176. Epa! Próximo ao limite de 190 que o doutor Ophir recomendou.

Doce? Passo longe. Nunca mais comi doce de leite de Viçosa, doce de abóbora ou batata doce de lanchonete de estrada, manjar branco com calda, pão de ló, bolo de rolo que a Maria Eduarda Brennand me manda do Recife, cocada branca. Foi comer e o sensor bater no 240 e tantos. Paniquei.

Como este sensor é caro, uso dois por mês, recorro a outro mais barato, que me pica o dedo, transfiro o sangue para uma plaquinha que revela o Índice. Entre um e outro há sempre uma diferença. O do sangue é sempre mais alto. E. . . ?

Vivo na gangorra. Medi, deu 78, ameaça de hipoglicemia, desmaio, como uma barrinha. Outra vez, deu 65, pavor, comi um chocolatinho. Normalizou. Poder comer para combatera hipoglicemia devia me dar prazer. Ao contrário, angustia. Mas este mundo é louco mesmo. Nunca mais comi massa, o que adoro, principalmente um Carbonara. Numa revolta, outro dia comi. Bebi duas taças de vinho. Depois medi. 122. Impossível. Desconfiei do reloginho. Não se pode viver desconfiado. Troquei o aparelho. Igual. Consulto ene vezes por dia, mas vivo bem. Sonho com números, 132, 176, 192, 214, 98, 76, 149 - aliás dá tanto 149, que não sei explicar. Nem são números para apostar na Mega Sena. Números.

Lembrei-me de O Homem Que Calculava, de Malba Tahan, ainda um livro curioso. Ele era feliz. Só estou feliz entre 90 e 190. Mas, e se der pane no aparelho. . . ? Mas estou vivo, e bem. Reclamar do quê?

O Estado de S. Paulo, 29/01/2023

 

https://www.academia.org.br/artigos/entre-90-e-190

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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.


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segunda-feira, 30 de janeiro de 2023

TREM VAZIO PASSANDO APÓS SAIR DA DESVIADA GANHANDO VELOCIDADE NA SUBIDA ...

Na Onda do Carnaval

Cyro de Mattos


 

             Onda humana que se movimenta com vibração incontida. Elimina-se a repressão, a solidão e a tristeza. A vida sob a pulsação rotineira dá lugar à liberdade de atitudes eróticas e críticas. O Rei Momo instaura o reinado da alegria, decreta que as formas usuais do viver sejam substituídas pelo mundo do sonho. O tom maior da euforia manifesta-se em ladeiras, praças e becos, em torno do reinado da alegria o preto torna-se branco, o masculino vira feminino, o pobre igual ao rico.

           O Carnaval no Rio de Janeiro não é o mesmo de Olinda, Recife, Salvador e outras cidades brasileiras. Conservando o elemento comum que os une, a participação coletiva que se extravasa na maior felicidade, o Carnaval no Rio tem na escola de samba sua marca pessoal. Na ópera popular, a se exibir na passarela do asfalto, sobressaem passistas, ritmistas, fantasias, carros alegóricos, samba-enredo, bateria com um grande número de figurantes, alas de baiana e comissões de frente. Figurações diversas que, em sua feição de cores e luxo, impressionam vivamente e deslumbram a quem assiste. A vida dança ritmos ardentes, solta desvairadas vibrações de corpo, cantos e prazeres numa maravilhosa ventura em torno do sonho. Em Olinda e Recife, bonecos gigantescos arrastam multidões sob o ritmo rápido do frevo. Passistas improvisam uma coreografia individual e frenética.

          Ao fechar o banco, o escritório, a indústria, o comércio, o Carnaval é sempre o mesmo. Com a sua máquina de fazer alegria, inventar o êxtase e o riso varre as formas de viver do mundo rotineiro, trazendo os ventos da utopia para empurrar a onda humana que canta e pula na avenida. Em Salvador, com ou sem turista, dinheiro ou sem dinheiro, vibra na tanga do índio, na mortalha suada da moça, vocifera, trepida ao som do trio elétrico, mexe, remexe sob a nova dinâmica dos ritmos negros, suaviza a vida quando passa numa onda mística com o bloco “Filhos de Ghandy”. Serve de extroversão a milhares de pessoas e de fuga aos que preferem à casa de praia ou de campo.

          Na quarta-feira de cinzas, quando o coral frenético silencia, o carnaval oferece a muitas pessoas uma oportunidade de ganhar o sustento nessa incrível arte da sobrevivência. Muitos nesse Brasil tropical e carnavalesco estão a postos para limpar o lixo da euforia.

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 Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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sábado, 28 de janeiro de 2023

PP, PL e Republicanos formalizam bloco de apoio a Marinho no Senado

Supremo: uma proposta

José Paulo Cavalcanti

 


O que fazer para retomar mínimos de funcionalidade no Supremo?, eis a questão. Antes de seguir no tema é preciso recusar, veementemente, proposta (que vem sendo apresentada por alguns grupos) de fechar o órgão, recorrendo à força, o que nenhum espírito democrático deve admitir. Pois nada pode ser pior que a volta da Ditadura?

O primeiro problema (entre muitos) do Supremo Tribunal Federal é o excesso de processos. As Cortes Constitucionais importantes do Primeiro Mundo têm números entre si próximos e muito diferentes dos nossos. Nas últimas estatísticas anuais disponíveis julgaram, Estados Unidos, 80 casos; França, 80; Inglaterra, 82; Alemanha, 90. No Canadá, a Suprema Corte se reúne em janeiro, abril e outubro, para julgar apenas causas revestidas de 'public importance' ? segundo Gentili (Protective Rights in a Worldwide Rights Culture), na faixa de 60 por ano. Enquanto nós tivemos, apenas em 2022, o total de 89.738 casos julgados, ainda com um estoque de 21.899 processos em tramitação - segundo o CNJ, números agora de dezembro. É insensato.

Outro problema sério é que, por conta deste cenário, o Supremo acaba com seus Ministros decidindo (quase) sempre sozinhos. Não se trata de algo transitório, que possa vir a se ajustar com o tempo. Medidas paliativas até vem sendo tentadas; como anúncio feito neste fim de ano pela presidente do Supremo, Rosa Weber, de que vai editar Emenda Regimental estabelecendo limites temporais à permanência de processos com vista para Ministros. Além de outras medidas. Não vai resolver, perdão. Que se trata de algo mais profundo, estrutural. Veja-se a última estatística que divulgou o Supremo, em fins de 2020, com 81.356 decisões monocráticas em 99.569 processos julgados. Quase o mesmo dos anos anteriores. São números pantagruélicos. Inaceitáveis.

Pior é que o Supremo deseja ir ainda mais longe. Faz pouco, por exemplo, via ofício encaminhado a todos os tribunais, recomendou que, nos feitos representativos de controvérsia, ainda que se vislumbre questão meramente infraconstitucional, seja admitido o Recurso Extraordinário. A fim de permitir o pronunciamento do Supremo sobre a existência, ou não, de matéria constitucional em cada caso. Eventualmente, de repercussão geral.

Fosse pouco, há também outros problemas. Como o espiral de um poder supremo que passou a habitar o mais íntimo dos Ministros, convertendo o tribunal a ser um conglomerado formado por 11 capitanias hereditárias independentes, com cada Ministro decidindo o que quiser, como quiser e sem nenhum limite. Até invadindo, e faz isso cada vez mais, a competência privativa dos outros poderes. Num crescendo. Virou regra. Com todos protegidos pelo corporativismo, onde nenhum Ministro admite questionar decisões dos demais. Garantindo, assim, que suas próprias decisões também não o sejam.

Mas o que fazer para retomar mínimos de funcionalidade no Supremo?, eis a questão. Antes de seguir no tema é preciso recusar, veementemente, proposta (que vem sendo apresentada por alguns grupos) de fechar o órgão, recorrendo à força, o que nenhum espírito democrático deve admitir. Pois nada pode ser pior que a volta da Ditadura. A questão, então, é buscar uma solução adequada, madura e democrática, para o Brasil de hoje. E o curioso é que ela existe ? fazer com que o Supremo seja semelhante a todas as demais cortes constitucionais. Simples assim. O que nos remete somente a dois pontos que deveriam ser alterados:

O Supremo passa a ser apenas uma Corte Constitucional. Como os demais tribunais similares, no mundo. Julgando menos casos, por deixar de ser instância revisora de outros tribunais. Convertido em uma Corte assim, última instância das causas infraconstitucionais passa a ser o STJ. Inclusive nos Habeas Corpus. Com enormes vantagens para o funcionamento da Justiça, no país. Inclusive reduzindo uma instância, para início do cumprimento das penas. E, sobretudo, tornando mais rápidos os processos. Permitindo que o Supremo passe a se ocupar apenas da Constituição, função típica de uma Corte Constitucional. Não mais serão aceitas decisões monocráticas, no Supremo. Para lembrar, ditas decisões monocráticas, em tribunais constitucionais como os que conhecemos no mundo, simplesmente não existem. Só no Brasil. Nesse campo, cumpre apenas lembrar um ponto que vale a pena explicar. Nos Estados Unidos e na Grã Bretanha, em situações de extrema gravidade, quando não esteja reunida a corte, até pode um ministro decidir. Mas essa decisão fica suspensa, requerendo seja convocado o plenário, em regime de urgência, para deliberar a respeito. E, para valer, a maioria (ou a totalidade) da Corte deve aprovar. Ninguém decide sozinho, pois, essa é a regra de ouro com todos os tribunais (menos em nosso Supremo). Por não fazer sentido, numa Democracia moderna, tanto poder concentrado em apenas uma pessoa. Devendo as decisões serem todas, sempre, coletivas. Não de um Ministro, apenas, mas do tribunal.

Agora, em 2023, teremos um novo Congresso. E mudanças como essas aqui propostas, para funcionar, requerem apenas alteração da Constituição (PEC). Com vontade política, pode ser feita sem maiores problemas. Ainda quando os poderosos Ministros do Supremo não gostem, e tentem trazer para seu curul (aquela poltrona em que sentam) alguns partidos políticos que se acostumaram a lhes usar nas suas demandas. Que, contra egos, o interesse coletivo deve prevalecer.

Em resumo, pode ser feita. E deve. Por ser o melhor, para nosso Brasil.

FERNANDO LYRA, ministro da Justiça. Essa historinha foi contada pelo próprio. E segue agora porque tem relação com o momento atual do Brasil, com levas de pretendentes (nem sempre qualificados) a cargos públicos. Nomeado presidente da Fundação Joaquim Nabuco, já no dia seguinte à posse o presidente do PT de Pernambuco foi visitá-lo. Trazia, com ele, relação de 77 sindicalistas que deveriam ocupar todos os 77 cargos em comissão da FUNDAJ. Político experiente, o amigo Lyra concordou. E, dia seguinte, mandou especificações para cada um dos cargos pretendidos. A partir dos nomes que ele próprio escolhera, para cada um desses cargos. Só um exemplo, no mais cobiçado (por ser o de maior remuneração):

- Para Museólogo Chefe é necessário: 1. Ser formado em museologia. 2. Ter mestrado. 3. Ter doutorado, de preferência em Paris. 4. Ter, pelo menos, 8 anos de estágio no Museu do Vaticano.

E por aí foi, com todos os outros cargos. Uma semana depois, nada, e ele mandou esse bilhete:

- Como ainda não indicaram os companheiros, vou nomear ocupantes provisórios. Só até chegar as indicações de vocês.

Resultado, acabou sua gestão e nenhum dos cabos eleitorais da relação original chegou a ser nomeado. Saudades de um tempo em que a política, longe da selvageria de hoje, ainda se fazia com engenho e arte.

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P.S. : A todos e cada um desejo um futuro esplendoroso. Feliz Ano Novo, pois. E agora os netos, o 'mar salgado' (Pessoa, em Mensagem), a rede e os livros me esperam. Razão pela qual encerro, por breve tempo, essa participação aqui. Para voltar a escrever só depois do Carnaval, se Deus quiser.

Site Chumbo Gordo, 30/12/2022

 

https://www.academia.org.br/artigos/supremo-uma-proposta

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José Paulo Cavalcanti - Nono ocupante da Cadeira nº 39 da ABL, eleito em 25 de novembro de 2021, na sucessão de Marco Maciel e recebido em 10 de junho de 2022 pelo Acadêmico Domício Proença Filho.

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Senador Rogério Marinho se levanta contra tirania de Moraes e faz discur...

MICHELLE RÁPIDA QUE NEM RÁIO.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Ano que vai, ano que vem

José Sarney



O tempo é algo em que vivemos, com que não nos conformamos e que festejamos. Os versos de T. S. Eliot, que sempre cito, dizem tudo: 'O tempo presente e o passado / esta? O ambos talvez no tempo futuro, / e o tempo futuro está contido no tempo passado.' Já o Padre Vieira explicava que 'se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é o futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro'.

O homem, para conviver com essa complicação, resolveu recriar o tempo, imaginando que poderia controlá-lo. Inventou maneiras de marcar as horas e os dias pela passagem do Sol; e a sucessão de dias pela passagem da Lua. Depois começou a contar os anos pelas estações, bem marcadas estas pelos solstícios de inverno e de verão. Apesar de grande parte da Humanidade estar vivendo no ano do Tigre 4720 - só daqui a três semanas entrarão no ano do Coelho -, e ser mais difícil saber que calendário seguir nas áreas sob influência hindu que entender os dito cujos, a maior parte do mundo segue o calendário definido pelo Papa Gregório XIII na bula Inter gravíssimas.

Nós passamos na noite de sábado para domingo pela virada - não sei bem o que virou - do ano velho para o ano novo. E, embora o novo ano seja cheio de expectativas e esperanças, o ano velho, neste final, foi de muita tristeza, pois marcado pela morte.

Sábado cedo morreu, em Roma, o Papa Ratzinger, Bento XVI. Participando ainda jovem do Concílio Vaticano II, ele se dedicou ao estudo da liturgia e defendeu a renovação do Santo Ofício. Poucos anos depois João Paulo II o retirou da responsabilidade de ser Arcebispo de Munique justamente para presidir a Congregação para a Doutrina da Fé, que São Paulo VI criara para substituir a velha Inquisição Romana e sua versão mais recente, a Sacra Congregação do Santo Ofício. No cargo se tornou o principal auxiliar do Papa Wojtyla.

Durante anos Ratzinger defendeu com firmeza a ortodoxia na Igreja como auxiliar do Papa, mas em 2005, com a morte de São João Paulo II, foi eleito para substituí-lo e adotou o nome de Bento. Um grande intelectual e brilhante escritor, pareceu viver os anos seguintes com sofrimento, tendo dificuldade em enfrentar as tempestades que se abatiam sobre Roma. Como solução, surpreendeu o mundo em 2013 ao renunciar ao cargo. A profunda integridade de sua fé permanece como uma lição extraordinária.

Dia 29 Pelé deixou o esporte, do Brasil e do mundo, com enorme saudade do seu gênio. Nenhum jogador se compara a ele, que foi decisivo para tornar o futebol no mais amado dos jogos atléticos, numa era em que estes expandiram-se de pequenos clubes de elite para serem jogados em cada várzea e cada quadra de vizinhança, informalmente ou em clubes que apaixonam multidões e movimentam quantias fabulosas. Ele foi único na capacidade física e na inteligência do que fazer com a bola para superar os adversários que tentassem evitar os gols inevitáveis.

Quando fui Governador, Marly organizou um jogo beneficente entre a seleção maranhense e o time do Santos. Conheci então sua generosidade e sua simpatia.

Convidado para uma visita oficial aos Estados Unidos pelo Presidente Reagan, levei Pelé na comitiva. Nunca mais um Presidente terá a oportunidade de contar com o prestígio de alguém conhecido por toda a Humanidade, como ele era. Naquela viagem ninguém dava bola para os Presidentes, ninguém queria saber dos Presidentes, das outras personalidades, todos queriam era ver o Pelé.

E a literatura brasileira perdeu Nélida Piñón, sua figura mais importante neste século em que vamos entrando, quando o Brasil começa a expandir o caminho traçado por Jorge Amado de ter seus autores conhecidos em todo o mundo. Nélida criou uma obra colossal, reconhecida por um sem-número de prêmios, entre eles alguns com nomes que simbolizam sua grandeza: Juan Rulfo, Rosalía de Castro, Cervantes. É o universo hispano-americano, decerto, de que ela se tornara um dos maiores nomes.

Ela era para mim sobretudo uma amiga de muitos anos, por quem tínhamos, Marly e eu, uma enorme afeição, sempre reforçada por seus gestos de estima. Orgulho-me de ter sido um dos que apoiou sua entrada na Academia Brasileira de Letras, onde presidiu o centenário da Casa, e onde foi uma líder que orientou nosso caminho no século XXI. Saudade imensa!

Mas o novo ano abre largas as portas da esperança, nesta convenção do tempo que assimilamos para definir que será melhor o amanhã e, já vendo isso acontecer, podemos, mais uma vez, desejar bons anos para todos!

Os Divergentes, 03/01/2023

 

https://www.academia.org.br/artigos/ano-que-vai-ano-que-vem

 

José Sarney - Sexto ocupante da Cadeira nº 38, eleito em 17 de julho de 1980, na sucessão de José Américo de Almeida e recebido em 6 de novembro de 1980 pelo Acadêmico Josué Montello. Recebeu os Acadêmicos Marcos Vinicios Vilaça e Affonso Arinos de Mello Franco.

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sábado, 14 de janeiro de 2023

Memória da Ponte Velha

Cyro de Mattos

 


Não só as cenas de tristeza, ocorrências com espanto, horror e medo, a Ponte Velha presenciara durante o tempo que existira de pé, altaneira e soberana no curso invariável do tempo, que tudo dá e toma. Acontecia também o afago do vento no rosto dos namorados, na manhã morna ou na tarde fresca. Para pessoas que moravam nos dois lados da cidade, era um corpo sólido erguido para servir sem nada exigir em troca, dotado de vigor e beleza, que funcionava como orgulho dos habitantes da pequena cidade. O professor Vilaboim, o que mais entendia da história da cidade, não tinha dúvida em afirmar que ela tinha voz oculta, boca que conversava consigo em segredo, ouvido que escutava atento aos ruídos da natureza e os gestos das pessoas. Sua alma era profunda para nas disposições interiores gravar com as fibras potentes de ferro e cimento tudo que se passava através das cenas rotineiras. Era dotada de uma magia que ninguém alcançava, nem sequer conseguia chegar perto de sua sabedoria lendária.

Um dia, os namorados chegaram de mãos dadas, debruçaram em uma das balaustradas e dali ficaram apreciando a paisagem do rio na tarde morna. As correntezas embaixo faziam espumas quando desciam no barulho por entre as pedras perto da ponte. Sustentados pela leveza dos ares, dali traçaram os sonhos com os olhos expectantes de esperança, querendo alcançar o horizonte. Um fazia carícia no outro, beijavam-se, sorriam com a felicidade estampada no rosto. 

Outras vezes vieram com o intuito de alimentar o sonho do amor no dia de verão morno. Pressentiam nas ondas do amor onde uma casa seria habitada pelos hábitos do afeto, cuidaria ela dos filhos, ele com o trabalho daria o sustento necessário para que os meninos crescessem e se tornassem um dia pessoas respeitáveis. Ele gostava de dizer a ela que uma ponte é uma ponte, uma rosa é uma rosa. A ponte servia para que fizessem a travessia sobre o rio da vida e fossem alcançar na outra margem as metas melhores. A rosa emitia fragrâncias nas horas suaves da existência, mas durava pouco. A ponte morava no pensamento, já a rosa no sentimento. Com o equilíbrio e segurança de uma mais a formosura de outra, regiam-se ambas pelos dons milagrosos da natureza e se cabiam na gramática que Deus criara para a criatura não conviver com o sentimento do nada. Tanto a ponte como a rosa reinventavam-se na proposição de cada sonho.  

 

* Cyro de Mattos é poeta e ficcionista. Detentor de prêmios literários importantes e, entre eles, o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, Associação dos Críticos Literários de São Paulo, Nacional de Poesia Ribeiro Couto (UBE-RJ), Internacional Maestrale Marengo d’Oro, Itália, duas vezes, Menção Honrosa do Jabuti, Nacional Pen Clube do Brasil e Nacional Cidade de Manaus. Publicado em oito idiomas.

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quinta-feira, 12 de janeiro de 2023

OS PINGOS NOS IS - 12/01/2023

Poema de Roberto Dinamite

Cyro de Mattos


 

Cruz de malta no coração,

Dinamite certeira nos pés,

O goleiro queria se esconder,

Daquela vez podia morrer.

 

Até as redes tremiam

Com o maior goleador,

Cada chute uma explosão

Que assombrava o torcedor.

 

Artilheiro como Roberto

No vitorioso Vasco da Gama

Outro igual pode até haver,

Outro maior não pode ter.

               

O Vasco, gigante da colina,

Teve o Ademir Queixada,

Quanto mais fazia gol

Mais queria ser goleador.

 

Teve o japonês Vavá,

Bicampeão mundial,

Um artilheiro perfeito,

Fazer gol era seu defeito.

 

Teve o Edmundo Animal,

Que tinha técnica apurada, 

Mas sua fome de artilheiro

Fez do craque um matador. 

 

Somente ele foi inimitável, 

Agora joga com os anjos,

Seu petardo ultrapassa nuvens

Fazendo cair flores do céu. 

 


Cyro de Mattos
é ficcionista e poeta. Também editado no exterior. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da UESC.

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terça-feira, 3 de janeiro de 2023

O balão vermelho

Ignácio de Loyola Brandão

 


Passando pela Marginal Pinheiros, dei com a roda-gigante destinada a ser a maior da América Latina. Minúsculo pano vermelho (parecendo balãozi-nho) mostrava-se agarrado a uma das cabines. Estremeci, a memória me remeteu aos meus 22 anos. Em um domingo de 1958, eu voltava de um show, promovido pelo jornal Última Hora e dei carona para Marlene França, atriz baiana nascida em Uauá, descoberta aos 14 anos por Alex Viany em Rosa dos Ventos, lançado em 1957. Ela veio para São Paulo disposta a fazer carreira, e fez. Ao passarmos pelo Parque Shangai, no centro, vimos a roda-gigante. Ela arregalou os olhos: 'Lô' - assim me chamava -, 'vamos dar uma volta?'. Na entrada, outro pedido: 'Me dá um balão vermelho?'. O filme de Lamorisse, Le Ballon Ronge, tinha sido sucesso. Feliz, apertava tanto o balão junto ao corpo que tive medo de estourar. Demos uma volta, duas, três, ela pedia: vamos passar a noite girando? Não passamos, mas tempos depois começamos a namorar. Ela, que vinha de uma separação, queria desfrutar tudo, vivíamos pela noite, mas nosso ponto mesmo era o bar Porta do Sol, na Rua Sete de Abril. Marlene cresceu na carreira, acabamos nos distanciando e ela se casou com Andréa Matarazzo Ippolito, teve três filhos, fez carreira cinematográfica nas mãos de diretores como Walter Hugo Khouri, Jorge Ileli, Aurélio Teixeira, Luiz Sérgio Person, Carlos Coimbra, Fauzi Mansur, Ozualdo Candeias, Rubem Biáfora, Luiz Paulino, Roberto Santos. Viveu com intensidade os filmes da 'Boca do Lixo'. Muitas vezes, quando nos cruzávamos, ela dizia: 'Ah! Meu balão vermelho'.

Passamos décadas sem nos ver. Nesse período, a baiana que aos 12 anos vendia doces em Feira de Santana mostrou maturidade e pioneirismo ao dirigir quatro curtas-metragens. A mulher de sorriso esfziante ousou enfrentar a ditadura em 1983 com um documentário (assistência de Frei Betto) sobre Frei Tito, o dominicano que se suicidou sob pressão da ditadura. Em 1985, ela foi a primeira a olhar para a questão dos boias-frias no curta Mídheres da Terra. Dirigiu em seguida Meninos de Rua, em 1988, problema ainda atual. Em 1999, veio o último curta, O Vale das Mídheres.

Num momento em que a batalha das mulheres está em plena erupção, espero que se dê um lugar a Marlene. A escritora e videomaker Alexandra Roscoe, de Brasília, baseada nesse retalho de vida, fez poética animação, dez anos atrás. Em 2011, em uma tarde de setembro, Maria do Rosário Caetano me trouxe a biografia de Marlene por ela escrita e me deu o telefone, há muito por mim perdido. Liguei, ela morava em um sítio em Itatiba. Reconheceu minha voz. 'Lô, o balão vermelho?' A voz era débil. Duas frases e a linha foi cortada. No dia seguinte, li: Marlene tinha tido um enfarte.

O Estado de S. Paulo, 01/01/2023

 

https://www.academia.org.br/artigos/o-balao-vermelho

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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11 da ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.

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INDIGNAÇÃO

Por Brigadeiro Eduardo Camerini

  


Enviei o texto abaixo para o Sr. Ministro da Defesa hoje, pelo começo da tarde, para que ele pudesse fazer uma avaliação. 

Não obtive resposta ainda, mas julgo necessário divulgar entre outros colegas militares, dada a gravidade da situação.


AO MINISTRO DA DEFESA

Prezado General Paulo Sérgio.

Conforme lhe informei ontem, estou lhe mandando esse texto, de minha autoria, para sua apreciação.

Trata-se de uma cópia única, endereçada somente ao senhor, para sua avaliação.

Que as decisões sejam iluminadas!

 

                                                               ******

Texto Escrito Após a Fala do Sr. Presidente da República.

 

Nunca mais se diga que nossas Forças Armadas nunca perderam uma guerra!

Hoje perdemos a maior delas!

Perdemos nossa Coragem!

Perdemos nossa Honra!

Perdemos nossa Lealdade!

Não cumprimos com o nosso Dever!

Perdemos a nossa Pátria!

Eu estou com vergonha de ser militar!

Vergonha de ver que tudo aquilo pelo qual jurei, trabalhei e lutei, foi traído por militares fracos, desleais e covardes, que fugiram do combate, preferindo apoiar quem sempre nos agrediu, sempre nos desrespeitou, sempre nos humilhou e sempre se vangloriou disso, e que ainda brada por aí que não nos quer em sua escolta, por não confiar nos militares das Forças Armadas, e que estas devem ser “colocadas em seu devido lugar”.

Militares que traíram seu próprio povo, que clamou pela nossa ajuda e que não foi atendido, por estarem os militares da ativa preocupados somente com o seu umbigo, e não com o povo a quem juraram proteger!

Fomos reduzidos a pó. Viramos farelo.

Seremos atacados cruelmente e, se reagirmos somente depois disso, estaremos fazendo apenas em causa própria, o que só irá piorar ainda mais as coisas. 

Joguem todas as nossas canções no lixo!

A partir de hoje, só representam mentiras!

Como disse Churchill:

 “Entre a guerra e a vergonha, escolhemos a vergonha.”

E agora teremos a vergonha e a guerra que se seguirá inevitavelmente.

A guerra seguirá com o povo, com os indígenas, com os caminhoneiros, com o Agronegócio. Todos verão os militares como traidores. 

Segmentos militares certamente os apoiarão. Eu inclusive. 

Generais não serão mais representantes de suas tropas.

Perderão o respeito dos honestos.

As tropas se insubordinarão, e com toda razão.

Os generais pagarão caro por essa deslealdade.

Esconderam sua covardia, dizendo não ter havido fraude nas urnas. 

Oras! O Exército é que não conseguiu identificar a fraude!

Mas outros, civis, conseguiram!

A vaidade prevaleceu no Exército e no seu Centro de Guerra Cibernética. Não foram, mais uma vez, humildes o suficiente para reconhecer suas falhas. Prevaleceu o marketing e a defesa de sua imagem. Perderam, Manés! 

E o que dizer da parcialidade escancarada do TSE e do STF, que além de privilegiarem um candidato, acabam por prender inconstitucionalmente políticos, jornalistas, indígenas, humoristas e mesmo pessoas comuns, simplesmente por apoiar temas de direita, sem sequer lhes informar o crime cometido ou oportunidade de defesa? Isso não conta? Isso não aconteceu?

E a intromissão em assuntos do Executivo e do Legislativo?

Isso também não aconteceu?

Onde está a defesa dos poderes constitucionais?

Onde estão aqueles que bradaram que não bateriam continência a um ladrão?

Será que os generais são incapazes de enxergar que, validando esta eleição, mesmo com o descumprimento de ordem de entrega dos códigos-fonte, valida-se também esse mesmo método, não só para todas as próximas eleições, para o que quer que seja, perpetuando a bandidagem no poder, assim como corrompendo futuros plebiscitos e decisões populares para aprovar/reprovar qualquer grande projeto de interesse da criminalidade?

NÃO HAVERÁ MAIS ELEIÇÕES HONESTAS!

A bandidagem governará impune, e as Forças Armadas, assim como já ocorre com a Polícia Federal, serão vistas como cães de guarda que asseguram o governo ditatorial.

 

O povo nunca perdoou os traidores nem os burros. 

Não vai ser agora que irão.

Ah, sim, generais:

Entrarão para a História!

Pela mesma porta que entrou Calabar.

QUE VERGONHA!


Assina:

Brigadeiro Eduardo Serra Negra Camerini


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domingo, 1 de janeiro de 2023

O foguete e o teto

José Sarney



Quando eu era Governador, o Brigadeiro Délio Jardim de Matos deu-me uma notícia que aumentou a minha taquicardia e encheu de esperanças todo o Maranhão. A FAB estava escolhendo o local para erguer uma nova base capaz de lançar foguetes, para não termos somente uma - Barreira do Inferno, no Rio Grande do Norte -, pequena e limitada. Atendia também ao provérbio popular: 'Quem tem uma não tem nenhuma'. Entre os lugares em estudo estavam o Município de Amapá, no então Território do Amapá. Entre os outros sítios aparecia Alcântara, com grandes possibilidades. Coloquei então o meu esforço de lobista em ação e fiz tudo para que o Maranhão fosse escolhido. Verificados os dados técnicos, assim aconteceu. Íamos ter uma base com tecnologia capaz de competir com o mundo, por sua localização muito próxima da linha do Equador, no lançamento de foguetes e satélites. Disputaríamos todas as possibilidades da indústria espacial, inclusive a de participar da construção da rede mundial de comunicações. Nada de motivos bélicos.

Consolidada a escolha, dei todo o apoio para sua construção. Quando Presidente da República acompanhei ali o lançamento do pequeno foguete meteorológico que deu início às operações da Base de Alcântara. O Maranhão encheu-se de esperança de novas possibilidades de progresso. Em São José dos Campos iniciou-se o projeto ambicioso de um sistema autônomo, com base de lançamentos, vetores - foguetes - e satélites construídos no laboratório que tive a satisfação de construir nesse polo científico. Assinei também com a China um acordo de parceria na área.

Muitos anos depois acompanhei a tragédia da explosão do nosso foguete num acidente de lançamento, com a perda dos artefatos e dos melhores recursos humanos na área.

Agora, com uma nova janela de oportunidades aberta pela Base, a alugamos para que ali fosse lançado um foguete suborbital da Coréia do Sul. Estava marcada a empreitada para o dia 17 de dezembro, no solstício de verão, o mesmo dia em que a PEC do teto de gastos ia ser votada, resolvendo o problema do orçamento de dois governos inconciliáveis, o de Lula e o de Bolsonaro.

Levantei-me às cinco horas da manhã e às seis horas eu, minha mulher e os empregados estávamos na varanda de nosso apartamento, binóculos prontos, para ver o foguete subir. Soube depois que a orla mar estava também cheia de curiosos como nós. Às seis horas o coração batia forte e os olhos em Alcântara esperavam a contagem regressiva. Nada. Todos diziam 'Vamos esperar'. 'Será às seis e meia.' Nada. E o foguete não subiu. Eu quis compensar minha frustração esperando a votação da PEC com os 600 reais para o Bolsa Família, marcada para as nove horas. Esperei. Nada.

A Base de Alcântara avisou que o foguete não subiu por um defeito numa válvula. O Sr. Deputado Lyra avisou que a PEC não foi votada por um defeito de conversa em que faltou um diálogo de garganta, mas no dia seguinte seria votada. Fiz a ligação: o foguete vai subir.

Dia 18 repete-se o mesmo cerimonial. Levanto-me, espero que a válvula esteja up to date. Seis horas e nada. A Base avisa que houve um problema de ignição.

Estamos realmente numa fase de ignição. Os nervos à flor da pele, deputada mata marido, deputada corre pelas ruas de arma na mão e vai para o país das armas, enquanto nós ficamos com o foguete parado, e os nossos pobres do Bolsa Família colocam água no feijão.

Nem o Natal arrefece os ânimos. Amaral Eletrônico, um assessor de comunicação e inventor nas horas vagas me vem à memória. Ele fundou um 'instituto de física' e descobriu que a bomba atômica não foi desenvolvida em Los Alamos, mas no Brasil por um fogueteiro pernambucano, fabricante de foguetes de rabo de bambu, que soltou um que arrombou um bairro inteiro do Recife. Os americanos mandaram sequestrar o homem e daí resultaram as tragédias de Hiroshima e Nagasaki.

É assim que o mundo está funcionando: uma válvula e a chave de ignição do foguete da Coréia não sobe; os pobres do Bolsa Família tiveram que esperar até a última hora para que as válvulas das línguas que movimentam o Congresso entrassem em acordo.

Bom mesmo era o Severino Fogueteiro, morador do bairro de Santo Inácio, em Pinheiro, que tinha este slogan de seus foguetes de bambu e papel velho: 'Foguete? Só sobe no Inácio Fogueteiro.' Só chamando o Severino para resolver diálogo e foguete coreano.

Os Divergentes, 27/12/2022

 https://www.academia.org.br/artigos/o-foguete-e-o-teto

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José Sarney - Sexto ocupante da Cadeira nº 38, eleito em 17 de julho de 1980, na sucessão de José Américo de Almeida e recebido em 6 de novembro de 1980 pelo Acadêmico Josué Montello. Recebeu os Acadêmicos Marcos Vinicios Vilaça e Affonso Arinos de Mello Franco.

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