Moreninha perdeu a mãe logo cedo. Ela foi o último sobrevivente de uma ninhada de doze pintos saídos das cascas numa manhã chuvosa de um mês de junho; distinguiu-se dos irmãos pela cor pedrês, pintada como guiné. Os outros, cor de telha, foram morrendo um a um, como castigo. Dona Lídia, proprietária da ninhada, ia enterrando os bichinhos embaixo de uma mangueira no fundo do quintal. Ela saía resmungando, os sobrinhos atrás, curiosos, achando tudo muito importante.
Moreninha
cresceu rápido e em pouco tempo aprendeu a bater as asas pelo terreiro, ciscar
ao pé de cercas e sumir pelos becos, pelos quintais da vizinhança. Em casa de
dona Lídia ela descarou que só vendo, não fazia a menor cerimônia, perambulava
pelas mesas, sobre o fogão, por cima do armário de tela verde; subia para o
caritó onde dona Lídia guardava temperos e coisas miúdas.
A orfandade precoce de Moreninha
rendeu-lhe algumas vantagens, como bicar milho nas mãos dos meninos, perambular
pelo quarto de dona Lídia e aninhar-se pelas camas onde deixava marcas
indeléveis. Para dona Lídia, Moreninha era o vivente mais importante do
terreiro. “Entende tudo que a gente fala”, dizia. Dava conta das origens da
galinha – pai, mãe e até de parentes mais distantes, afirmando que um avô da
galinha foi um galo valente, de penacho cor de ouro e de boas esporas.
Quando lhe
gritavam pelo nome, Moreninha levantava a cabeça, posuda, superior, abaixava-se
manhosa e arrastava uma asa. Dona Lídia enchia-se de contentamentos e
pedantismo.
Depois que
Moreninha enxeriu-se com um galo metido a porreta, do quintal vizinho, deu para
sumir do terreiro. Era um galo de canto rouco e curto; quando ele avistava a
galinha, entortava o pescoço, arriava uma asa e punha-se a fazer cabriolas,
metido a besta. Eufrosina, dona do galo, ufanava-se da cria e falava, toda
exaltada: “É um macho de verdade!”. Esfregava as mãos acotovelada na janela da
cozinha, expondo orgulho, apreciando o galo disparado atrás de Moreninha,
saltando garranchos, dando piados escandalosos; logo na primeira tentativa o
galo alcançava seu objetivo. Dona Lídia, quando via a cena, ficava acabrunhada;
uma vez panhou uma vassoura de cabe comprido e fincou o pé atrás do galo que se
meteu assustado embaixo do assoalho da varanda. Foi nesse esconderijo que ele
conhecera Moreninha, numa tarde chuvosa que lhe impedira ciscar pelo terreiro
ou deitar-se à sombra da romãzeira, pelas barrocas poeirentas do quintal.
Moreninha
dava-se pouco à mistura com outras galinhas da redondeza, dengosa, cacarejando
miúdo, cheia de outras manias; preferia os carinhos de dona Lídia, a atenção
dos meninos da casa. Ostentava um pimpão suntuoso, cor de cinza prateado; tinha
uma crista vistosa, sangue vivo, de peito saliente, pisava de supetão, metida a
besta. Quando espantava, emitia piados estridentes com o se o mundo estivesse
acabando, assustando todo o terreiro. Às vezes dava uma de valente, mas nem
sempre garantia as pompas, tanto que se acovardava quando avistava uma galinha
preta de pés cinzentos e esparrachados que aparecia vez em quando pelo quintal
de dona Lídia. Era uma galinha mixuruca, parecendo ter parentesco com urubu;
andada de quintal em quintal perambulando à toa, escorraçada, vilipendiada
pelos meninos e até por outras galinhas. O galo de Moreninha era discreto para
a galinha preta, nunca avançava. Peito a peito, Moreninha caiu na besteira de
enfrentá-la um dia, trocaram bicadas, esporadas e, com menos de cinco minutos,
Moreninha deu no pé. Ficou com a crista sangrando, um olho inchado. Depois da
façanha, a galinha preta teve que correr também, mas das vassouradas de dona
Lídia que ainda tentou, furiosa, alcançá-la antes do portão do fundo do
quintal.
Seu Veloso,
cunhado de dona Lídia, nem tomava conhecimento de Moreninha, muito menos desses
acontecimentos. Certa vez ele quase estrangulava a cria de dona Lídia; a galinha
fazia estrepolias sobre a mesa de jantar e derrubou um jarro que se espatifou
pelo chão. Seu Veloso, num ímpeto, pegou uma bandeja de aço e mandou brasa na
galinha; perdeu a pontaria e Moreninha escapuliu pela porta do lado. Dona Lídia
nem soube dessa ocorrência. “Ora essa, galinha só é importante na panela”,
dizia seu Veloso. Dona Lídia ouvia, olhava de banda, dava um muxoxo e
retirava-se com a cara enfarruscada.
Por causa de
um pontapé que nem atingiu Moreninha, dona Lídia atirou uma panela de água
quente em Serapião, moleque que vivia perambulando pelas portas. Apesar da
agilidade dele, a ducha atingiu-lhe parte do rosto. Serapião saiu disparado,
cheio de agonia, apertando-se e gritando, “sinhá puta!”. Dona Lídia,
desapontada, bateu a porta e sumiu casa à dentro.
No
aniversário de Moreninha, dona Lídia fez um bolo confeitado, com uma fita
entrelaçada numa velinha; ao redor do bolo ela espalhou caroços de milho e
pétalas de rosas. Fez uma roupa para Moreninha, em forma de túnica e um chapéu
azul embarbelado; uns sapatos de lã e uma calcinha encobrindo o oveiro para
evitar sujeira pela mesa, pelos móveis, como a galinha fazia pela sala e outros
lugares. Os meninos em torno da mesa cantaram os parabéns, batendo palmas.
Quando
Moreninha conheceu o galo de Eufrozina, era ainda bem nova, mas já ciscava
pelas cercas, catando pedrinhas; dona Lídia nem imaginara, na época, as manhas
futuras da galinha, considerando-a muito novinha, longe da experiência de uma
galinha adulta. Dona Lídia parecia admitir que galinha tem juízo.
No dia do
aniversário os convidados eram levados por dona Lídia até Moreninha empoleirada
numa cadeira entre dois jarros com flores, sob os cuidados da empregada, como
se a galinha fosse gente. “Esta é Moreninha. Bonita, não é?”, dizia dona Lídia.
Numa dessas apresentações, uma moça ao lado falou, com ar de riso: “gordinha,
boa de panela”. Dona Lídia chegou a tomar choque, fechou a cara e deu as costas
para a visita imprudente.
Depois que
Moreninha meteu-se com o galo da vizinha, dona Lídia pressentiu-lhe mudança nos
hábitos. Ora, dizer que Moreninha desprezou a casa é exagero, mas deixou isso
em segundo plano. Manhã cedinho dava no pé e em alguns momentos ninguém era
capaz de saber seu paradeiro. Era na paquera o dia inteiro, junto à cerca, o
galo do outro lado, chegando, arrastando uma asa pelo chão, soltando vez em
quando canto rouco; depois ele enfiava-se por qualquer abertura e fincava pé
nos tampos de Moreninha disparada, soltando piados, escandalosa, pouco adiante
ela abaixava-se, descarada, tremendo de fingimento, o galo concluía tudo aí.
Quando se levantava, Moreninha arrepiava-se, sacudia-se e voltava a ciscar
despreocupada; o galo, fagueiro, soltava o canto rouco, entortava uma asa, cabriolando
para um lado, para outro. A cena repetia-se muitas vezes durante o dia.
“Cadê
Moreninha!”, era a fala de dona Lídia andando na cozinha, nos quartos, pela
varanda do quintal. Perguntava aos vizinhos, aos meninos; a galinha, na dela,
malandra, satisfeita com a nova vida, exibindo-se com pimpão e tudo,
cacarejando por baixo do assoalho da varanda, de olho no galho espichando o
pescoço, arrastando uma asa, posudo.
Em pouco
empo Moreninha começou a pôr. Dona Lídia juntou dezesseis ovos. No início da
postura dona Lídia andou encabulada, sem aceitar o que acontecia com Moreninha.
“Perdeu o jeito de virgem”, pensava. Para ela, Moreninha tornara-se igual às
outras galinhas. “Abaixa-se, sem vergonha, à toa para o galo vagabundo”, dizia
para si mesma. Achava, porém, que o galo da vizinha era bonito e que o canto
rouco era coisa da idade, “ainda um frangote”.
Dona Lídia
não havia casado, “se eu fosse bonita como Moreninha, teria sido fácil arrumar
um marido”, pensava. Lembrava de alguns namorados antigos, “malandros que não
queriam nada”. Certamente as pernas finas e o cabelo ralo contribuíram para o
desencanto. “Moreninha tem as pernas finas, nem por isso falta pretendente para
ela”, pensava lembrando o galo de Eufrosina.
De um dia para outro Moreninha deu para
cacarejar meio rouca, eriçando as pernas. Estava choca. Dona Lídia fez um ninho
com penas e retalhos de pano a um canto de um quartinho do fundo. Três semanas
depois nasceu uma pintaiada de dar gosto. Nos primeiros momentos, quando os
pintos saíam das cascas, eram pescoçudos, pelados, os olhos inchados. Depois
foram mudando, nasceram penas bonitas, os piados enchiam a casa. Ninguém os
diria filhos do galo de Eufrosina castanho-escuro brilhante. Os pintos eram
amarelos como laranja madura.
Ninguém na
casa de dona Lídia esqueceu de Moreninha. Era como se fosse pessoa da família.
Quando desaparecia do quintal, dona Lídia abria a boca no mundo, “Moreninha,
Moreninha!”. Os sobrinhos dela saíam buscando a galinha pelos becos, por todos
os cantos, pelos quintais da vizinhança.
Naquele
tempo as pragas vinham dizimando os terreiros; Moreninha foi uma das vítimas.
Acometida de uma doença, deu para perder as forças, para gogar, passando depois
a ter desmaios, com piados sufocantes. Foi piorando e em poucos dias morreu.
Dona Lídia tentara, antes, umas doses de sulfato de sódio em colherinhas, nem
adiantou. Moreninha foi enterrada embaixo da mangueira, junto a seus irmãos.
Em casa de
dona Lídia, depois da morte de Moreninha, a tristeza alastrou-se por muito
tempo. Toda noite ela desfiava um rosário inteiro orando pela “alma” da
galinha; enquanto rezava, as lágrimas lhe escorriam lentas pelo rosto enrugado;
amanhecia de cara fechada, arredia às pessoas. Constantemente sonhava com
Moreninha empoleirada, passeando pelos móveis, cacarejando à toa; da janela da
cozinha via o galo de Eufrosina ciscando no pé da cerca, entortando o pescoço,
fincando pé atrás de Moreninha, todo metido a importante. Num desses sonhos de
dona Lídia, Moreninha aparecia aureolada por uma luz azulada emitindo raios
fulgurantes. “Ela está no reino dos céus!”, pensava postando as mãos. Lembrava
que Moreninha não era virgem, mas bem-comportada e mãe de dezesseis filhos.
“Deus sabe disso, certamente lhe deu bom lugar na vida eterna”. Concluía seus
pensamentos vislumbrando a galinha de corpo inteiro, tudo lhe passando como
fita de cinema; lembrava do aniversário de Moreninha, de suas correrias pelas
camas, por outros móveis; se pudesse teria matado a galinha preta que deixou
Moreninha com um olho inchado, a crista sangrando, “a infeliz parecia um
urubu”. Mas vingou-se do moleque Serapião, lhe borrifando a cara com uma ducha
de água quente.
(LINHAS INTERCALADAS)
Ariston Caldas
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Ariston Caldas nasceu em Inhambupe, norte da
Bahia, em 15 de dezembro de 1923. Ainda menino, veio para o Sul do estado,
primeiro Uruçuca, depois Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde residiu
por 12 anos. Jornalista de profissão, Ariston trabalhou nos jornais A
Tarde, Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia e fundou o periódico Terra
Nossa, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia; em
Itabuna foi redator da Folha do Cacau, Tribuna do Cacau, Diário de
Itabuna, dentre outros. Foi também diretor da Rádio Jornal.
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