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domingo, 20 de março de 2022


 A poesia ecológica de Cyro de Mattos

 Décio Torres Cruz*

 

          Quem ainda não leu Cyro de Mattos precisa conhecer seus livros urgentemente. Este jornalista, advogado, e mestre em capoeira é, também e principalmente, um escritor excelente: poeta, contista, romancista, cronista, novelista, ensaísta, com vários prêmios importantes na bagagem, tais como: o Prêmio Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, o Prêmio Pen Clube do Brasil e o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte, dentre outros.

          Traduzido em várias línguas, em diversos países, este baiano de Itabuna, membro da Academia de Letras da Bahia, já publicou 64 livros no Brasil e 15 no exterior. Além disso, organizou 5 antologias e 5 coletâneas. Seus dois livros recentes, os quais tive a honra de receber autografados, O discurso do rio (Coimbra, Pallimage, 2020) e Devoto do campo (Itabuna, Editus, 2021), são de um lirismo comovente, que arrebata o leitor e possuem títulos que já constituem um belo poema.

          Estes dois livros podem ser classificados como uma elegia à natureza, uma poesia ecológica que revela seu amor ao meio-ambiente e aos seres que nela habitam, incluindo o bicho-homem que tanto a degrada. O discurso do rio foi publicado também  em Portugal e traz prefácio da Professora Graça Capinha da Universidade de Coimbra. Na verdade, ao escolher a palavra discurso para dar voz às falas dos nossos rios e denunciar a sua destruição pela poluição e desvios de cursos, o poeta brinca com o vocábulo “discurso”, atribuindo a ela um novo significado como antônimo de “curso”: dis-curso”. Se aprendemos com um curso escolar, o dis-curso é o oposto daquilo que deveríamos aprender a fazer, ou seja, em um dis-curso desaprendemos com discursos e práticas antiecológicas: não cuidamos daquilo que deveríamos. Em vez de preservar nossos rios, os destruímos.

          Mas também aprendemos com o discurso que o rio traça em seu curso natural por onde correm as suas águas: ouvimos o seu pedido de socorro na sua linguagem sem voz, agonizante e silenciada. Este canto agônico fica claro em vários de seus versos, como no poema “Das mãos na goela das águas”, que ilustra a quarta capa:

 

“Venho sendo omisso pra refazer

Virginais caminhos de água, dizendo

Melhor, matei o que era para ser

Vivo no seu amanhecer líquido.

 

Eu me acuso por ser indiferente

Ao benefício sempre abundante

De água pura que jorrava na fonte

Peixe e rede na estação competente.

 

E como réu confesso que merece

Por tão grave ilícito ser punido

Chegando do que lhe foi natural,

 

Em noite morta, que nunca enriquece,

Lavro minha sentença, condenado

A viver no abismo que há no Mal.”

 

          No seu mais recente livro Devoto do campo, o autor continua a sua defesa da natureza em belos versos curtos e simples como a própria natureza e o ambiente campestre. Seguindo o estilo de Emily Dickinson, poeta estadunidense por ele homenageada na epígrafe, Cyro dá voz aos elementos campestres componentes daquele habitat bucólico, como o grilo, o jabuti, a aranha, a garça, o pinto, o beija-flor, a borboleta, o papagaio, o boi, a ovelha, o cavalo, o som das asas, a flor, o trinado das aves, a árvore, a foice, a selva, a estrada, a paisagem, o laço, as crenças e as oferendas, a lua, e as claves de sol.

           Não é à toa que este poeta recebeu elogios de escritores ilustres, como Jorge Amado, Assis Brasil, Ledo Ivo e tantos outros, como Carlos Drummond de Andrade que escreveu um poema para homenageá-lo. Seus livros aqui resenhados podem ser adquiridos diretamente com o autor no email: cyropm@bol.com.br. Seus outros livros podem ser encomendados através dos sites das editoras, da Amazon e da Estante Virtual.

 

*Décio Torres Cruz é escritor, crítico literário, poeta, professor universitário e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Ufba.

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (258)


 
3º Domingo da Quaresma – 20/03/2022

Anúncio do Evangelho (Lc 13,1-9)

— O Senhor esteja convosco.

— Ele está no meio de nós.

— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Lucas.

— Glória a vós, Senhor.

Naquele tempo, vieram algumas pessoas trazendo notícias a Jesus a respeito dos galileus que Pilatos tinha matado, misturando seu sangue com o dos sacrifícios que ofereciam.

Jesus lhes respondeu: “Vós pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem sofrido tal coisa? Eu vos digo que não. Mas se vós não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo.

E aqueles dezoito que morreram, quando a torre de Siloé caiu sobre eles? Pensais que eram mais culpados do que todos os outros moradores de Jerusalém? Eu vos digo que não. Mas, se não vos converterdes, ireis morrer todos do mesmo modo”.

E Jesus contou esta parábola: “Certo homem tinha uma figueira plantada na sua vinha. Foi até ela procurar figos e não encontrou. Então disse ao vinhateiro: ‘Já faz três anos que venho procurando figos nesta figueira e nada encontro. Corta-a! Por que está ela inutilizando a terra?’

Ele, porém, respondeu: ‘Senhor, deixa a figueira ainda este ano. Vou cavar em volta dela e colocar adubo. Pode ser que venha a dar fruto. Se não der, então tu a cortarás’”.

— Palavra da Salvação.

— Glória a vós, Senhor.

http://liturgia.cancaonova.com/pb/

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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Pe. Donizete Ferreira – Comunidade Canção Nova:


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Raízes que nos sustentam

 

Imagem: pexels.com

“Vou cavar em volta da figueira e colocar adubo” (Lc 13,8)

 

Temos perdido as raízes? Como conectar-nos com elas? Quê raízes nos alimentam? Onde estamos enraizados? Quais são as raízes que nutrem atualmente nossa vida? São as melhores?

Enraizamento, fincar raízes, viver da profundidade das raízes... O “novo” vem das raízes, vem de baixo, da base, do chão da vida. É preciso relançar uma nova radicalidade. Viver a partir das raízes, projetar a partir das raízes, criar a partir das raízes. Quaresma é tempo para colocar novo adubo e fortalecer as raízes; e viver o tempo das raízes para ser presença “diferenciada”, “enraizados” na realidade cotidiana.

“Descer” às raízes é uma oportunidade privilegiada para nos descobrir e conhecer nosso reino interior, para encontrar nossos recursos mais nobres e assim experimentar a transformação.

O caminho para uma nova qualidade de vida passa pelo encontro com as próprias raízes. Mas essa descida nos possibilita descobrir um mundo diferente que não conhecíamos, ou que havíamos perdido.

Este é o caminho da espiritualidade que brota do húmus; “descer” até o fundo, mergulhar nas dimensões mais profundas onde estão escondidos os “tesouros” que dão significado e sentido às nossas vidas.

Vivemos um contexto social-político-religioso marcado por um profundo desenraizamento, onde somos mobilizados a viver em mundos “sem raízes”, em espaços criados pela tecnologia, comunicando-nos através de relações virtuais com pessoas distantes, desconectando-nos do nosso próprio chão existencial; no emaranhado das imagens e sons perdemos a noção daquilo que é essencial e decisivo para a vida; vivemos na superfície dos acontecimentos e de nós mesmos; esvaziamos a consistência interior e fundamento sobre o qual se apoia a nossa própria vida; congelamos toda proximidade e relação com o outro; petrificamos todo compromisso com as causas mais nobres...

Desenraizar-se é desumanizar-se.

“nova radicalidade” é a maneira original de seguir a Jesus. É uma radicalidade amável e expansiva, porque quem chega às raízes descobre-se implantado na natureza humana, naquilo que todos compartilham e, por isso mesmo, descobre-se e sente-se enraizado no Outro.

Ninguém pode viver sem raízes, pois não se sustentaria de pé. Quando perde suas raízes, o ser humano se atrofia e fica privado de algo decisivo, essencial: de uma fonte de vitalidade.

Superfície significa aqui o esquecimento da raiz, significa viver na distância da vida, desconectado da fonte interior, desarticulado e ocupado com o que não é essencial. Muitas pessoas passam pela vida assim, distraídas como turistas, como “voyeurs”, que consomem, sem descanso, paisagens e imagens de si mesmas, cujo olhar está sempre ocupado com as vitrines ou o próprio umbigo e assim nunca repousam, nunca chegam à raiz de nada.

Jesus, o “homem enraizado” em seu povo e sua cultura, traçou seu caminho em parábolas.

No evangelho deste domingo Ele usa a imagem da “figueira estéril” que não recebera o nutriente necessário. A figueira é uma das árvores mais comuns na Palestina e seu fruto, muito apreciado, é abundante. As flores da figueira são um sinal da primavera. “Sentar-se debaixo da videira e da figueira” é uma expressão proverbial da paz e serenidade da vida no campo (cf. 1Rs 5,5; Mq, 4,4; Zc 3,10).

A isso, precisamente, aponta a parábola da figueira plantada no meio da vinha. Ela também destaca a paciência do vinhateiro. Apesar de “levar” três anos sem dar frutos, o vinhateiro continua confiando nela, ao mesmo tempo que lhe oferece todos os cuidados com esmero: “vou cavar em volta dela e colocar adubo”.

Jesus quer destacar a paciência divina, porque compreende e respeita o momento e o ritmo de cada pessoa. Conhecedor do coração humano, sabe dos condicionamentos de todo tipo que pesam sobre ele: sofrimentos pendentes ou não elaborados; vivências não integradas; feridas não “processadas”; mecanismos de defesa ativados ao longo da vida para poder sobreviver; ignorância básica de quem é e como quer viver...

Precisamos tempo e paciência para crescer em lucidez e em consciência, assim como em liberdade interior, frente aos próprios medos e necessidades, para podermos ser coerentes e fiéis ao melhor de nós mesmos.

A partir dessa fidelidade, tudo começa a adquirir sentido: abrimo-nos a quem somos e vamos construindo relações harmoniosas. Isso é o que significa, segundo o evangelho, “dar fruto”.

Numa chave de leitura interior, a parábola da figueira ativa a virtude da esperança que alimenta, dá sentido à nossa existência e ilumina as profundezas de nosso ser cristão. Na vivência do evangelho, a terra interior também pode ser cavada e adubada, através de diálogos e do encontro com nossa verdade pessoal.

A parábola da “figueira” toca o nosso “eu” mais profundo; é preciso escutá-la e deixá-la ressoar em nosso coração, a terra do nosso campo interior que é cavada e fertilizada. Mas a parábola não só alimenta a esperança; ela também nos desafia a corresponder ao “divino agricultor”, dando frutos.

Talvez tenhamos que parar de exigir certos frutos da nossa árvore; basta os frutos menores ou a sombra que a árvore providencia.

Escavar a terra é o primeiro requisito a ser cumprido para que a árvore interior dê fruto. O segundo é o adubo, que pode ser símbolo para a atenção e o amor, que nos fazem bem e podem nos conduzir ao florescimento e frutificação da nossa árvore. Normalmente, usamos esterco para fertilizar a terra, o esterco da nossa própria biografia pode ser usado como adubo.

Dia após dia, o agricultor leva o esterco ao campo, e, após um ano, o campo dá seus frutos. É uma imagem consoladora, pois, justamente aquilo que consideramos o esterco da nossa vida – os fracassos, as feridas, as derrotas, as fragilidades – se torna o adubo para a nossa árvore da vida e a faz florescer.

A questão está em como cavar, que adubo depositar e que frutos esperamos alcançar. É importante cavar para sanear as raízes, nossas raízes mais profundas onde está a força de Deus vitalizando nossa existência; o alimento, talvez seja conectar mais com a mensagem de Jesus, com o Evangelho e entrarmos em sintonia com o Deus da Vida. Os frutos, sem dúvida, terão mais a cor e o sabor da visibilidade, da ousadia, da liberdade, da denúncia daquilo que atenta contra a dignidade humana, de atrever-nos a abandonar o rotineiro e gerar novas formas de viver o Evangelho nestes tempos tão conflitivos.

Deus é o “paciente Cuidador” e nos alcança na medida em que nos abrimos à sua ação; Sua presença expande e multiplica o melhor de nossa vida. Ao contrário, quando permanecemos reclusos na identificação com nosso ego, irremediavelmente, dia após dia, nossa existência se atrofiará e se empobrecerá.

É fora de dúvida que, dentro de cada um de nós, continuam existindo “figueiras estéreis”, experiências com pouca profundidade, vivências asfixiantes e atrofiantes...  que limitam a liberdade de Deus em atuar em nós. Mas, o ponto de partida é que comecemos por reconhecer nosso terreno interior, reconciliando-nos com ele, abraçando-o com humildade. É no meio da “vinha” que está situada nossa “figueira”.

Desse modo, ao crescer em unificação – integrando também os aspectos mais obscuros e vulneráveis de nossa própria vida -, um bom “húmus” estará se disponibilizando e constituindo a “terra boa” onde a figueira crescerá por si mesma e dará frutos. Devemos descobrir, em cada um de nós, o que atrofia, limita e bloqueia o fluxo da seiva que brota das profundidades de nossa terra interior.

Texto bíblico:  Lc 13,1-9

Na oração: Uma vida que se enraíza, é uma vida firme, consistente. Por outra parte, as raízes na planta, são as que se introduzem na terra e crescem em sentido contrário do tronco, servindo-se como sustentação.

Graças a elas, a planta pode absorver o alimento necessário para seu crescimento.

- o que está “estéril” em sua vida?

- quais são e onde estão as raízes onde seu coração se alimenta? Quais raízes precisam ser sanadas, adubadas... para que deem frutos?



Pe. Adroaldo Palaoro sj

 https://centroloyola.org.br/revista/outras-palavras/espiritualidade/2530-raizes-que-nos-sustentam

 

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