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segunda-feira, 3 de agosto de 2020

UM SINGULAR CASAMENTO – Miguel de Cervantes

 

        Saía do Hospital da Ressurreição, em Valladolid, um soldado que, por usar a espada como bordão e palidez do rosto, denotava claramente – embora a temperatura não fosse cálida – que ele deveria ter transpirado em vinte dias toda a disposição adquirida numa hora. Ao transpor a porta da cidade, percebeu aproximar-se em sua direção um amigo, a quem não via há mais de seis meses. Este, benzendo-se, como se tivesse visto alguma assombração, aproximou-se e lhe disse:

             - Que aconteceu, senhor Alferes Campuzano? – Imaginava-o em Flandres. Que palidez, que fraqueza é essa?

             - Estou saindo daquele hospital, onde sofri catorze suadouros, por causa de uma mulher a quem escolhi para minha esposa, quando jamais o deveria ter feito.

            - Quer vossa mercê dizer que se casou? – Perguntou Peralta. – E foi por amor? Tais casamentos trazem sempre o arrependimento.

             - Não sei se foi por amor – respondeu o Alferes – embora possa garantir ter sido por amargor, pois do meu casamento ou cansamento, carrego tais coisas no corpo e na alma que não encontro remédios para aliviar-me. Mas perdoe-me Peralta, estou fatigado, outro dia contarei o rol das minhas desgraças, que é longo e fastidioso...

             - Não será assim – disse o Licenciado – pois desejo que venha à minha pousada, para ali desabafarmos nossas mágoas.

             Agradeceu-lhe Campuzano, aceitando o convite. Foram ambos a São Llorente e mal chegados a sua casa, após uns copos de bom vinho, pediu o Licenciado que Campuzano narrasse os acontecimentos que tanto o haviam mortificado. Campuzano não se fez de rogado, pondo-se logo a falar:

            - Vossa mercê bem se recorda como fui, nesta cidade, amigo do Capitão Pedro de Herrera, que agora está em Flandres?

             - Bem me recordo, - respondeu Peralta.

             - Pois um dia, quando mal acabávamos a refeição na pousada de Solana, onde vivíamos, entraram duas mulheres de porte, acompanhadas por dois criados. Uma delas pôs-se logo a falar com o capitão. A outra sentou-se numa cadeira junto à minha, cobrindo-se com o chale até o pescoço, não deixando ver o seu rosto mais do que a transparência do chale o permitia. Roguei-lhe que se descobrisse, ao que ela respondeu:

             - Não sejais importuno. Tenho minha casa; fazei com que um pajem me siga. Folgarei então que me vejais.

            Beijei-lhe as mãos pela grande mercê que me fazia, em paga da qual prometi punhados de ouro. E assim, no dia seguinte, guiado pelo meu criado, fui visitá-la. Encontrei uma bela residência e uma mulher de quase trinta anos a quem reconheci pelas mãos. Mantivemos longos e amorosos colóquios durante quatro floridos dias. Continuei a visitá-la sem que chegasse, porém, a colher o fruto ambicionado.

           Nos momentos em que a visitava, sempre encontrei a casa livre; jamais percebi traços de parentes. Servia-lhe certa moça mais astuta do que simplória. Tratando meus amores como soldado em véspera de partida, apertei, fielmente, a senhora dona Estefânia de Caicedo – é este o nome de quem assim me deixou – que respondeu. – “Tola seria, senhor Alferes Campuzano, se quisesse vender-me a vossa mercê por santa. Pecadora tenho sido e ainda sou, embora não tanto que os vizinhos comentem e os empregados murmurem. Não sou também de grandes posses, mas o que tenho aqui em casa vale – bem contados – dois mil e quinhentos escudos. Com esta fortuna procuro marido a quem entregar-me e a quem obedecer. Tanto sei dirigir uma casa como orientar uma cozinha ou receber visitas. Nada desperdiço e muito economizo. Procuro, pois, marido que me ampare e honre e não amante que se aproveite e depois vá falar por aí... Se vossa mercê souber aproveitar a prenda que se oferece, aqui estou a vossa disposição...”

             Eu, que estava com o juízo, não na cabeça, mas nos calcanhares, respondi-lhe que me julgava muito afortunado por haver-me dado o céu, quase por milagre, companheira tal... E nos próximos três dias de festas que vieram pela Páscoa fizeram-me as proclamas e no quarto dia nos casamos, encontrando-se presentes dois amigos meus e um rapaz que dizia ser primo dela...

            O criado conduziu meu baú da pousada para a casa de minha mulher. Encerrei nele, diante dela, a minha esplêndida corrente, minhas roupas e entreguei-lhe para as despesas da casa os quatrocentos reais que possuía. Seis dias desfrutei, calmamente, como genro pobre em casa de sogro rico, a lua-de-mel. Almoçava na cama, levantando-me às onze horas, comendo às doze e sestando às duas. Minhas camisas, colarinhos e lenços, pelos perfumes que exalavam, pareciam um novo Aranjuez, banhados como eram em água de flor de laranjeira.

             Ao fim desses dias maravilhosos, certa manhã – quando ainda no leito com Dona Estefânia – chamaram com grandes batidas na porta. Ouço a criada dizer, assomando à janela:

            - Oh, seja bem-vinda! Vejam só, veio antes do que avisara na sua carta...

            - Quem é que chegou, mulher? – perguntei.

             - Quem? Respondeu ela. Minha senhora Dona Clementa Bueso, acompanhada por Dom Lope Melendez de Alemendárez, dois criados Hortioga, a ama.

            - Corra, mulher, e abra-lhes a porta, que já vou – disse Dona Estefânia, à criada, que parara sem saber que atitude tomar. – E dirigindo-se a mim. E vós, senhor, sabei somente que tudo o que aqui se passará é fingido e visa a certo desígnio, o qual sabe-lo-eis depois.

            Em seguida entraram no quarto Dona Clementa e Dom Lope, bizarramente vestidos e ricamente ataviados.

           Dona Hortioga, a ama, foi a primeira a falar, exclamando:

             - Jesus! Que é isto? Ocupando o leito da senhora Clementa, além disso, com um homem?

             A tudo isto, Dona Estefânia respondeu:

            - Não se aborreça, Dona Clementa Bueso, e creia que não é mistério que a senhora vê estas coisas em sua casa. Quando souber da verdade, sei que ficarei desculpada e vossa mercê sem nenhum motivo de queixa.

             Nestas alturas eu já vestira as calças e a camisa e Dona Estefânia tomando-me pelo braço levou-me a outro quarto e ali me disse que aquela sua amiga desejava enganar Dom Lope, com quem pretendia casar-se. Que o engano era dar-lhe a entender que aquela casa lhe pertencia. Uma vez realizado o casamento pouco se lhe dava que descobrissem o engano, confiada como estava no grande amor de Dom Lope.

           - E logo me devolverá tudo – acrescentou.

            Logo a seguir mudamos para a casa de uma sua amiga, onde ficamos alojados num quartinho pequeno e imundo. Ali estivemos seis dias e não passou uma hora que não tivéssemos qualquer discussão. A dona da casa de tanto ouvir as desavenças, um dia a sós, perguntou-me o motivo daquelas querelas que lhe pareciam tão inúteis como fastidiosas. Contei-lhe toda a história... Ela então começou a benzer-se e me disse:

            - Senhor Alferes: não sei se vou contra a minha consciência ao contar-lhe o que também a pesaria se permanecesse calada. Porém por Deus e pelo Destino, seja o que for: viva a verdade e morra a mentira! A verdade é que Dona Clemente Bueso é a verdadeira dona da casa e dos haveres que lhe deram como dote. Mentira foi tudo quanto lhe contou Dona Estefânia. Está claro que não se deve culpar a pobre mulher, pois soube arranjar para marido uma pessoa como o senhor Alferes.

            Aqui ela deu fim a sua conversa e eu dei princípio ao meu desespero. Fui ver o meu baú, encontrando-o aberto, como um túmulo à espera do cadáver. Com boas razões seria o meu, se tivesse calma para sentir e ponderar tamanha desgraça... Dona Estefânia se fora e com o primo...

             - Bem esperta foi – disse, neste momento, o licenciado Peralta – haver dona Estefânia levado suas correntes e tantos cintos...

             - Nenhuma pena me deu essa falta – respondeu o Alferes – pois também poderei dizer: pensou Dom Simueque que me enganava com sua filha caolha e, por Deus, coxo eu de um lado...

            - Não sei a que propósito pode vossa mercê dizer isso – respondeu Peralta.

             - O propósito é, disse o Alferes – de que aquele embrulho e aparato de correntes, cintos e roupas poderia valer quando muito dez ou doze escudos.

             - Isso não é possível – replicou o Licenciado – porque a corrente que o senhor portava no pescoço aparentava valer muito e pesar mais de duzentos ducados.

             - Assim seria se a verdade fosse o que a aparência mostrava; porém como nem tudo que reluz é ouro, as correntes, os cintos e as joias não passavam de imitações. Estavam tão bem feitas que somente o toque ou o fogo poderiam descobrir sua qualidade.

             - Dessa maneira – disse o Licenciado – entre vossa mercê e a senhora Dona Estefânia houve empara no jogo?

             - E tão empate – respondeu o Alferes – que poderíamos voltar a baralhar as cartas. Mas o estrago está, senhor Licenciado, que ela poderá se desfazer de minhas roupas e correntes e eu não do laço em que caí. Sim, porque, embora muito me pese, ela é minha mulher.

             - Dai graças a Deus, senhor Campuzano, que ela se foi e que não estais obrigado a ir buscá-la.

            - Assim é – respondeu o Alferes – porém, com tudo isso, embora não a procure, tenho-a sempre no pensamento, e onde quer que esteja está sempre presente a vergonha.

             - Não sei o que responder, senão trazendo-lhe à memória dois versos de Petrarca, que dizem:

          “Chi chi prende diletto di far frode,

            Non side lamenta s’altri l’inganna.”

            O que traduzido para nossa língua quer dizer: - “Aquele que tem o costume e o gosto de enganar a outros, não deve queixar-se, quando é enganado.”

             - Não me queixo – falou o Alferes – e sim me lastimo, pois o culpado, deixa de sentir a pena do castigo. Dizem que sararei, se me tratar. Espada ainda possuo; o resto Deus remediará.

 

(CONTOS DE ALCOVA – Dezembro de 1963)

Compilados por Yves Idílio

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Cervantes


           A alma mística de Espanha ausente não poderia ficar longe dessas páginas, e por falar por ela ninguém, maior que D. Miguel de Cervantes Saavedra. O autor do “El Ingenioso Hidalgo Dom Quixote de La Mancha” mais do que qualquer ouro de língua latina, entre nós, dispensa comentários e veleidade seria querer apresentá-lo. Aprendemos, aqui em nossa terra, a tomar conhecimento com a sua obra quase que ao mesmo tempo em que sugamos o leite materno...              Neste magnífico “Um Singular Casamento” encontramos a mesma sátira, o mesmo humor, a mesma análise dos costumes e a mesma observação detalhada dos outros escritos de Cervantes. É uma pitada, - como diria Dom Quixote – tão ardida como penetrante...

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Miguel de Cervantes Saavedra foi um romancista, dramaturgo e poeta castelhano. A sua obra-prima, Dom Quixote, muitas vezes considerada o primeiro romance moderno, é um clássico da literatura ocidental e é regularmente considerada um dos melhores romances já escritos. 

(Wikipédia)

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