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quarta-feira, 26 de abril de 2023

As Metamorfoses de Helena Parente Cunha

 Cyro de Mattos

 


             Em Cem Mentiras de Verdade, livro de contos, a baiana Helena Pereira Cunha inova a moderna prosa de ficção curta no Brasil. Denuncia nestes contos brevíssimos, alguns nem chegando a dez linhas, uma marcante economia de meios, funde os limites da poesia e ficção, revela fino espírito de observação do real e sutilíssima capacidade de condensação literária.

            A escritora sensível e criativa observa o real, perscruta-o, parte sempre da situação concreta para repoetizar a vida na sua rotina feita de abismos e sonhos. A ficcionista busca um único objetivo, oferecer um aspecto, um gesto, uma impressão, o instante do desencontro de uma humanidade ínfima, prisioneira do viver e do sofrer. Da metamorfose literária expressa no texto, concentrada de emoção e sentimento, a imagem ganha relevo com a cena breve. O fragmento agudo na trama, implícito de tão vivo, faz-se tangível. Existem em Cem Mentiras de Verdade alusões líricas, que comovem e encantam.  Nas estórias em que entra passarinho, o riso tem lugar no gesto e jeito de ser do coronel Titino Cravo. Com sabor de obras-primas, as duas últimas estórias protagonizadas pelo coronel Titino Cravo são armadas, em seu fino humor, para desarmar o sério do leitor mais concentrado.

            O descritivo, o factual e o denotativo são componentes que estão sempre nos contornos da prosa literária, mas não se fazem presentes nestes mini contos de Cem Mentiras de Verdade. A narrativa de forma objetiva, o diálogo cerrado, o tempo passado do personagem, ingredientes do conto realista entre nós, com ressonância até hoje em alguns contistas, não participam das minúsculas   verdades, tão bem fingidas no lado inexplicável da vida. Ausentes de lógica visível, a escrita dessas ficções breves assenta-se numa pontuação psicológica, conotativa, organizando-se em períodos diminutos, às vezes se constituindo de uma só palavra. Os termos são inventados, formas verbais transladam-se em substantivos e advérbios, a língua torna-se linguagem inventada por quem bem sabe os recursos. Exemplos dessa linguagem experimentada encontram-se em   neologismos como “brancamanhecido”, “devagarosa”, “sorrindissimamente’, “infazia”, “atemorecida”, “despresença”, “dessapato”, dentre outros. Assim, a linguagem com termos inventados torna o contexto mais rico para exprimir o gesto daquela vida apagada em sua angústia sufocante. Faz-se mais crítica a metáfora quando em sua abrangência do real estende-se sobre um território humano a exibir verdade no dia-a-dia de suas misérias subjetivas.

            Partindo sempre do real, a contista atenta ao detalhe, rica de humanidade, não se faz submissa ao factual, como se a sangue–frio relatasse a vida. Íntima do fragmento, separa o essencial do acessório, subverte a sintaxe tradicional da prosa literária e, na expressividade tensa da linguagem, fixa episódios curtos em sua exígua ambiência interior. Com isso deixa sempre a imagem que serve como profunda análise vertical da alma humana. Em “O Fim da Tarde”, a mulher prepara todos os dias a mesa para os dois. Duas cadeiras. Duas xícaras. Duas velas. Dois castiçais. O jarro com flores. A toalha de linho engomada. A arrumação convincente. Todas as tardes, sozinha, tomando chá diante do vazio. Em “A Moça Bonita”, com a sua lindeza, no bonde, olhos nos olhos do rapaz, “simpatia em pé no estribo”. A nota sofrida no visível. A amiga ajudante. Dentro das botas ortopédicas, segurando nas muletas. “A moça, com paixão caminhava. Quando buscou o rapaz, não viu mais. Faltaram-se”. Em “Acordo”, o amor amargo dos cinquenta e dois anos de vida conjugal. O acordo mostra-se na discórdia consumada. Quase aos oitenta anos de idade. Decidiram o divórcio.

            Oscilando entre a razão e a emoção é que o real desrealiza-se nestas Cem Mentiras de Verdade. O imaginário resolve-se com a fidelidade de uma sonda sensível, usada pela escritora que, num átimo, diz ser o mundo constituído de falhas, descativante, pende mais para o trauma do que para o verso azul da canção. O mundo reinventa-se todos os dias no verso inverso das fissuras, o micro atinge o macro com fragmentos que cortam, ritmando-se com mágoa, tristeza em discursos brevíssimos, por vezes nem ressoando nos atalhos doloridos da natureza humana.

            Em Cem Mentiras de Verdade, a baiana Helena Parente Cunha prefere a concisão máxima, a concentração de efeitos para expor drama e poesia extraídos do real. Sem chegar a ser maldita, em seu compromisso estético e sentimento de mundo, detalha a vida cotidiana e consegue a proeza da ilusão na síntese. Como Dalton Trevisan, Luís Vilela, Vander Piroli, Caio Porfírio Carneiro e Ricardo Ramos, dentre outros contistas do implícito na síntese por excelência, traz em sua escrita a marca da grande contista. Fala pouco em suas breves verdades fingidas, dizendo muito sobre o mistério da vida.

            Quase trinta anos depois, a autora volta a exercitar a prosa de ficção breve em Falas e falares, um conjunto de textos por ela chamado de minicontos. Apresenta a mesma técnica de sugerir o drama com a concentração dos efeitos, a linguagem veloz, aliciante, que alcança ritmo galopante em alguns desses textos, como vemos na “Primeira estória de motorista de táxi”. Encontramos em alguns desses mini contos ou poemas vozes ecoando vindas da infância, do tempo com dores e desejos, alusões a figuras de mulheres em seu convívio interior de paisagens, nas quais aves traçam “os desenhos alados na superfície do ar ...”

            Em narrativas transitando entre Rio, Salvador ou em algum lugar qualquer, encontramos a sensibilidade delicada da autora, para com sabedoria e arte inovadora forjar seus textos. Em “O aniversário dele”, flagra os olhos do menino, “se abrem mais e cabem nos tons amarelos das margaridas e dos girassóis, papai aqui é a casa do sol.” Em “Fofurinha do papai”, primor de mini conto, temos esse achado luminoso, em amenidade de linguagem fundamentada na natureza, quando se diz que “há seres que contam os anos e os séculos e eclipses do seu mundo interior, você não sabia, as árvores, quanto mais velhas são, mais jovens serão,”.

             Em “Riso de risada ensolarada”, o leitor é de logo surpreendido em carícia no início com o achado de sonoridades luminosas, “timbres remotos e inflexões reinventadas e imprevistas ondas que se expandiam do gabinete do diretor pelos corredores, até as salas de aula,”.

            Mini contos ou poemas, não é preciso procurar muito para saber que Em Cem mentiras de verdade o tom dos dizeres ressoam para as negações do existir enquanto em Falas e falares o nível do discurso pende para as afirmações em que nossa precária condição de ser-estar vai sendo reconhecida com as suas circunstâncias críticas, apresentadas na proeza de no mínimo ressoar a dor maior.

 

Referências

CUNHA, Helena Parente. Cem mentiras de verdade, Prêmio Bienal Nestlé de Literatura (Menção Honrosa), José Olimpio Editora, Rio de Janeiro, 1985.

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 Falas e Falares, Editora Mulheres, Santa Catarina, 2012.

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 Cyro de Mattos - Cyro de Mattos é poeta e ficcionista. Premiado no Brasil, México, Itália e Portugal. Publicado por editoras na Europa. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia).


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