As Metamorfoses de Helena Parente Cunha
A
escritora sensível e criativa observa o real, perscruta-o, parte sempre da
situação concreta para repoetizar a vida na sua rotina feita de abismos e
sonhos. A ficcionista busca um único objetivo, oferecer um aspecto, um gesto,
uma impressão, o instante do desencontro de uma humanidade ínfima, prisioneira
do viver e do sofrer. Da metamorfose literária expressa no texto, concentrada
de emoção e sentimento, a imagem ganha relevo com a cena breve. O fragmento
agudo na trama, implícito de tão vivo, faz-se tangível. Existem em Cem Mentiras
de Verdade alusões líricas, que comovem e encantam. Nas estórias em que entra passarinho, o riso
tem lugar no gesto e jeito de ser do coronel Titino Cravo. Com sabor de
obras-primas, as duas últimas estórias protagonizadas pelo coronel Titino Cravo
são armadas, em seu fino humor, para desarmar o sério do leitor mais
concentrado.
O
descritivo, o factual e o denotativo são componentes que estão sempre nos
contornos da prosa literária, mas não se fazem presentes nestes mini contos de
Cem Mentiras de Verdade. A narrativa de forma objetiva, o diálogo cerrado, o
tempo passado do personagem, ingredientes do conto realista entre nós, com
ressonância até hoje em alguns contistas, não participam das minúsculas verdades, tão bem fingidas no lado
inexplicável da vida. Ausentes de lógica visível, a escrita dessas ficções breves
assenta-se numa pontuação psicológica, conotativa, organizando-se em períodos
diminutos, às vezes se constituindo de uma só palavra. Os termos são
inventados, formas verbais transladam-se em substantivos e advérbios, a língua
torna-se linguagem inventada por quem bem sabe os recursos. Exemplos dessa
linguagem experimentada encontram-se em
neologismos como “brancamanhecido”, “devagarosa”, “sorrindissimamente’,
“infazia”, “atemorecida”, “despresença”, “dessapato”, dentre outros. Assim, a
linguagem com termos inventados torna o contexto mais rico para exprimir o
gesto daquela vida apagada em sua angústia sufocante. Faz-se mais crítica a
metáfora quando em sua abrangência do real estende-se sobre um território
humano a exibir verdade no dia-a-dia de suas misérias subjetivas.
Partindo
sempre do real, a contista atenta ao detalhe, rica de humanidade, não se faz
submissa ao factual, como se a sangue–frio relatasse a vida. Íntima do
fragmento, separa o essencial do acessório, subverte a sintaxe tradicional da
prosa literária e, na expressividade tensa da linguagem, fixa episódios curtos
em sua exígua ambiência interior. Com isso deixa sempre a imagem que serve como
profunda análise vertical da alma humana. Em “O Fim da Tarde”, a mulher prepara
todos os dias a mesa para os dois. Duas cadeiras. Duas xícaras. Duas velas.
Dois castiçais. O jarro com flores. A toalha de linho engomada. A arrumação
convincente. Todas as tardes, sozinha, tomando chá diante do vazio. Em “A Moça
Bonita”, com a sua lindeza, no bonde, olhos nos olhos do rapaz, “simpatia em pé
no estribo”. A nota sofrida no visível. A amiga ajudante. Dentro das botas
ortopédicas, segurando nas muletas. “A moça, com paixão caminhava. Quando
buscou o rapaz, não viu mais. Faltaram-se”. Em “Acordo”, o amor amargo dos
cinquenta e dois anos de vida conjugal. O acordo mostra-se na discórdia
consumada. Quase aos oitenta anos de idade. Decidiram o divórcio.
Oscilando
entre a razão e a emoção é que o real desrealiza-se nestas Cem Mentiras de
Verdade. O imaginário resolve-se com a fidelidade de uma sonda sensível, usada
pela escritora que, num átimo, diz ser o mundo constituído de falhas,
descativante, pende mais para o trauma do que para o verso azul da canção. O
mundo reinventa-se todos os dias no verso inverso das fissuras, o micro atinge
o macro com fragmentos que cortam, ritmando-se com mágoa, tristeza em discursos
brevíssimos, por vezes nem ressoando nos atalhos doloridos da natureza humana.
Em Cem
Mentiras de Verdade, a baiana Helena Parente Cunha prefere a concisão máxima, a
concentração de efeitos para expor drama e poesia extraídos do real. Sem chegar
a ser maldita, em seu compromisso estético e sentimento de mundo, detalha a
vida cotidiana e consegue a proeza da ilusão na síntese. Como Dalton Trevisan,
Luís Vilela, Vander Piroli, Caio Porfírio Carneiro e Ricardo Ramos, dentre
outros contistas do implícito na síntese por excelência, traz em sua escrita a
marca da grande contista. Fala pouco em suas breves verdades fingidas, dizendo
muito sobre o mistério da vida.
Quase trinta anos depois, a autora
volta a exercitar a prosa de ficção breve em Falas e falares, um conjunto de
textos por ela chamado de minicontos. Apresenta a mesma técnica de sugerir o
drama com a concentração dos efeitos, a linguagem veloz, aliciante, que alcança
ritmo galopante em alguns desses textos, como vemos na “Primeira estória de
motorista de táxi”. Encontramos em alguns desses mini contos ou poemas vozes
ecoando vindas da infância, do tempo com dores e desejos, alusões a figuras de mulheres
em seu convívio interior de paisagens, nas quais aves traçam “os desenhos
alados na superfície do ar ...”
Em
narrativas transitando entre Rio, Salvador ou em algum lugar qualquer,
encontramos a sensibilidade delicada da autora, para com sabedoria e arte
inovadora forjar seus textos. Em “O aniversário dele”, flagra os olhos do
menino, “se abrem mais e cabem nos tons amarelos das margaridas e dos
girassóis, papai aqui é a casa do sol.” Em “Fofurinha do papai”, primor de mini
conto, temos esse achado luminoso, em amenidade de linguagem fundamentada na
natureza, quando se diz que “há seres que contam os anos e os séculos e
eclipses do seu mundo interior, você não sabia, as árvores, quanto mais velhas
são, mais jovens serão,”.
Em “Riso de risada ensolarada”, o
leitor é de logo surpreendido em carícia no início com o achado de sonoridades
luminosas, “timbres remotos e inflexões reinventadas e imprevistas ondas que se
expandiam do gabinete do diretor pelos corredores, até as salas de aula,”.
Mini
contos ou poemas, não é preciso procurar muito para saber que Em Cem mentiras
de verdade o tom dos dizeres ressoam para as negações do existir enquanto em
Falas e falares o nível do discurso pende para as afirmações em que nossa precária
condição de ser-estar vai sendo reconhecida com as suas circunstâncias
críticas, apresentadas na proeza de no mínimo ressoar a dor maior.
Referências
CUNHA, Helena Parente. Cem mentiras de verdade, Prêmio
Bienal Nestlé de Literatura (Menção Honrosa), José Olimpio Editora, Rio de
Janeiro, 1985.
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