Numa
clara e fria manhã de junho, a menina foi levada à proximidade da janela
aberta, para ver pela primeira vez a luz amena dos raios solares, que lhe
chegaram como um afago. Tinha poucos dias de nascida. A claridade lhe tocou os
olhinhos então fechados, que se abriram vagarosamente em leves piscadelas, e
pela primeira vez na vida viu a brilhante luz do mundo que se abria para ela.
Esse encontro foi como um beijo de luz, o primeiro contato daquela meninazinha
com o sol de sua cidade.
Mais tarde, já crescida, a menina olhou pela primeira
vez com atenção para o céu azul-escuro recamado de pontos brilhantes que se
estendiam sobre a sua cabeça e, diante da maravilha que foi aquela visão, de
dedo apontado, tentou contar quantas estrelas tinha o céu de sua terra,
buscando encontrar entre estas a mais bonita. Ao mesmo tempo, foi o contato
mais consciente com o rio, com o frescor de suas manhãs após uma noite de
chuva, as suas enchentes, a visão de suas margens escuras e silenciosas à
noite, cheias de mistérios para a sua alma infantil, alegres e verdejantes
durante o dia.
Deve
ter nascido daí, desses encontros, a amizade, a afinidade da menina com a sua
terra. O seu despertar para a vida foi através desse ar que respirou, desse sol
que a aqueceu, das estrelas que pela primeira vez viu brilhar. Foi o seu
despertar para as belezas do mundo e esse mundo foi a sua cidade. No seu chão,
deu os primeiros passos, pisando incerta a terra que já era sua. Sobre esse
chão brincou quando pequena, aprendeu a caminhar, a viver. Sobre ele derramou
lágrimas de criança e, mais tarde, já adulta, as mais ardentes lágrimas de dor.
Como um relicário, o chão de sua terra guarda sob ele despojos que lhe são
extremamente amados, e por isso ele também lhe é sagrado.
Lembranças
de uma vida inteira tiveram como cenário as ruas, as casas, os jardins, as
plantas, as gentes de sua terra e o seu rio que, embora maltratado, sonolento,
triste, lhe fala de histórias e lembra coisas bonitas do passado.
Outras terras foram vistas, outras paisagens descortinadas, outros rios,
cidades com características marcantes de civilização e arte. Nada, porém lhe
toca mais o coração do que a cidade onde nasceu, a TERRA-MÃE onde cada pedaço
de chão lhe conta uma história e projeta imagens do passado que vão surgindo
como lembranças no presente.
(“Retalhos”)
HELENA BORBOREMA
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NOTA DA AUTORA
Retalhos. Que é retalho? Nada mais do que sobras,
pequenos pedaços que restaram de um todo. É um pedaço de pano que sobrou de
outro maior. Assim, esse título “Retalhos” condiz com os pequenos fatos,
pequenas lembranças, pedaços que restaram de uma peça maior que é a minha vida.
Foram sendo ajuntados aqui e acolá, na medida em que foram aparecendo e
colocados nestas páginas. Juntados os pedaços e olhados como um todo
dão-me a visão de um tempo passado da minha cidade, então mais humana,
mais irmanada, quando todos se conheciam e se abraçavam no abraço de velhas
amizades, quando a vida parecia mais simples e descompromissada. Retalhos da
vida, coisas simples que sobraram no meio dos grandes momentos do existir. Cada
um deles eu hoje revejo com a alegria de quando menina, aquela alegria que meus
olhos e coração guardaram.
Não sabia
por que se visgava tanto a Carol. Um absurdo.
Bonita ela
não era e de perfil chegava próximo a ser feia – nariz levemente curvo, olhos
muito espaçados um do outro, de lábios finos, boca que nem imitava um coração.
Somente os cabelos eram razoáveis – lisos, cheios, de colorido entre marrom e preto.
De corpo, algum atrativo, o que não quer dizer se parecesse com um modelo,
muito menos com uma miss; os seios eram duros e mais próximos da barriga do que
da base do pescoço um tanto envelhecido, mostrando rugas discretas. 32 anos.
Seria impressão
pelo nome, uma obstinação? Carol. Não era apelido, nome verdadeiro. Lembrava
que na infância conhecera uma menininha ao lado chamada assim. Apelido. O nome
de batismo dela era Carolina. Mas, por isso ou aquilo, sentia-se visgado por
Carol.
Quando se deitava com ela, era um sufoco,
uma alucinação. Esquecia-se do mundo; predestinação, lembrava.
A mãe dele
dizia que tudo na vida é traçado pelo destino. “Ninguém foge do destino”, ela
falava. Tantas mulheres bonitas por aí, novinhas, só ele garrado com uma sem
expressão. “Será pelo cheiro do corpo”? Exalava de baixo para cima, lembrando
cheiro de marisco. Ele o sentia estranho, mas gostava.
Havia também
o estridente da voz, a maneira de fechar os olhos. Um conjunto de coisas que o
deixava confuso, com o juízo exacerbado. Magrinha, sem polimento na expressão
do falar; sem elegância no porte, “sem coisa nenhuma que justifique essa
obsessão”. Tentava ou pensava nisto, arrumar outra que o recomendasse no meio
onde vivia – conhecido, de bom conceito, contabilista acreditado, capaz de
conseguir namoradas bonitas, de família importante, às vezes, pensando em tudo
isso, sentia pena de Carol, humilde, magrinha, com cheiro de marisco vindo de
baixo. Mas não podia. Quem lhe mandou meter-se!
De certo
modo, seria fácil libertar-se. A qualquer dia desses. E ficava pensando nessa
possibilidade, mentalizando arrumar-se adiante.
Lembrava de
uma balconista de olhos verdes que ia toda tarde tomar sorvete numa lanchonete
ao lado do escritório onde trabalhava. Devia ser perfumada, tinha a boca bem
delineada, os seios altos o os olhos com uma distância estética entre um e
outro. Já ouvira ela falar, voz meiga, sem as manhas da fala de Carol. Vinham
outras em suas ideias, lembrava que desde menino atraía as mulheres e não seria
agora, com os primeiros fios brancos aparecendo, que ia se dobrar ao destino,
como acreditava a mãe dele. Teria que buscar a razão, meio que o recomendasse
entre amigos, parentes e conhecidos. Pensava assim sentindo pena de Carol,
desconfiada, rústica a momentos: “quando eu sumir, você vai ver!” Ele ouvia,
pensando sem acreditar, senhor de si mesmo. Teria quantas quisesse, bonitas,
cheirosas.
Carol lhe
beliscava, atravessava os olhos. “Sabe que você é feio?” depois ficava
embutida, trancada. Ele se afastava e Carol ficava resmungando, falando
baixinho, xingando. O cheiro subia ativo, inalante. Tinha pena de Carol
começando a envelhecer. “Pensa que vai encontrar outro igual a mim!” Sentia-se dono
da situação, dono de Carol, absoluto.
Vez em
quando ela sumia. “Por quê?” Ficava doido pela rua, pelas esquinas, os olhos vasculhando. Nem de longe ninguém
parecido, nem no porte nem no andar. “É bom que ela não me apareça mais!”
Sentia falta dela, dos olhos afastados um do outro, da fala sutil, às vezes estridente. Lembrava do cheiro e
parecia senti-lo ativo, subindo, tomando conta do nariz.
A moça que
gostava de sorvete era perfumada, ele sentia o cheiro passando; tinha os lábios
de coração, os olhos verdes. Havia outras conhecidas, e desconhecidas, era só
avançar.
Mas
Carol voltava, aparecia de novo,
misteriosa, olhos espaçados trejeitando. Entrava, as mesmas conversas, cabelo
cheio caindo pelos ombros. Ia para o quarto dele, ajeitava o forro da cama, o
travesseiro, futucava coisas dentro do guarda-roupa. Ele ficava calado,
assuntando de banda, surpreendido, desconfiado, satisfeito, temendo agora que
Carol fosse embora para sempre. Um dia. “Quando?” O dia chegou.
Ninguém lhe
deu mais notícias dela. Nunca mais viu, também, a moça da sorveteria, de olhos
verdes; nem as outras conhecidas, nem as desconhecidas. Deitava-se sozinho,
esticava-se cheio de lembranças. À noite, quando ia dormir, sentia o cheiro de
marisco, ativo, dos pés da cama para a cabeceira. Metia o rosto no travesseiro
e sentia vontade de chorar.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo
João.
— Glória a vós, Senhor.
Ao anoitecer daquele dia, o primeiro da semana, estando
fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se
encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: “A paz esteja
convosco”. Depois dessas palavras, mostrou-lhes as mãos e o lado. Então os
discípulos se alegraram por verem o Senhor. Novamente, Jesus disse: “A paz
esteja convosco. Como o Pai me enviou, também eu vos envio”. E, depois de
ter dito isso, soprou sobre eles e disse: “Recebei o Espírito Santo. A
quem perdoardes os pecados, eles lhes serão perdoados; a quem não os
perdoardes, eles lhes serão retidos”.
Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Pe. André
Teles:
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Espírito: o sopro que nos une
“Soprou sobre eles e disse: Recebei o Espírito Santo” (Jo
20,22)
De Jesus e do Pai fazemos muitas representações; do
Espírito, muito mais que falar dele, invocamos a relação com Ele: “vem!”.
Invocamos para vir Aquele que já está presente, o Realizador das transformações,
o Possibilitador de toda relação, o Aumentador da vida.
O fogo, o vento, a água viva, são os símbolos mais potentes
com os quais a Bíblia tenta dizer algo dessa Presença Possibilitadora de tudo o
que vive, de sua força criadora e criativa, de sua imprevisibilidade, de sua
capacidade para gerar sabedoria, saúde e beleza. São símbolos do movimento
constante e do fluir silencioso dos processos que gestam a vida.
No relato da Criação, “a Ruah de Deus (em hebraico, Ruah é
feminino) pairava sobre as águas”: trata-se de uma bela imagem da matriz ou
útero originário fecundo de tudo quanto existe; tudo é amorosamente acolhido,
fecundado, gestado, carregado neste grande ventre cósmico que podemos chamar
divino: “Deus”. Alento, sopro, vento, respiração, força, fogo... com nome
feminino que fala de maternidade e de ternura, de vitalidade e carícia. Seu
calor gera harmonia no caos, realça a beleza e originalidade de cada criatura,
dando a cada uma seu lugar, o espaço que necessita para potencializar seu ser.
Nessa relação adequada, cada erva, cada montanha, cada ser que vive, tem
seu lugar e seu sentido.
“O Espírito pairava sobre as águas” (Gen. 1,1). “Pairava”
pode ser traduzido também por “vibrava”. Tudo vibra no universo: vibram as
partículas e vibram os átomos, vibram as estrelas e vibram as galáxias, vibram
os seres humanos, vibram o canto e a dança. Cada som é vibração e também o
silêncio é vibração. O coração de cada ser, pequeno ou grande, pedra, planta ou
animal está vibrando. A vida é vibração.
O Espírito que “pairava” sobre as águas é a imagem da
vibração divina que habita e se move no coração de tudo quanto existe. O
Espírito é a respiração universal. Tudo é energia, movimento, relação, e daí
brotam maravilhosamente todas as formas de todos os seres, como de uma
misteriosa matriz materna.
E o Espírito sempre está ali silenciosamente presente, como
Aquele que vincula e une, como Tecedora constante de redes que fazem crescer,
como Reparadora de todos os tecidos que um dia se rasgaram e se separaram do
pano único de onde confluem todos os fios da vida.
Hildegar von Bingen dizia que o Espírito é “vida da vida de
toda criatura”. Cada dia é o primeiro dia da Criação; cada instante é o
princípio. A Criação está acontecendo e renovando-se a cada instante e uma
Energia profunda e criativa nos acompanha, nos anima e nos move. Estamos sendo
criados; não estamos prontos e abandonados, não estamos condenados a um plano
predeterminado e frio. Em tempos de Pentecostes é bom recordar e dizer a nós
mesmos: “Somos criaturas, estamos sendo amorosamente criados(as) e impulsionados(as)
a criar. Há esperança”.
Contemplar deste modo a realidade, nos move a confiar,
esperar, respirar. Contemplemo-la assim: a realidade inteira alentada e
fecundada sem cessar pelo Espírito materno; a realidade inteira carregada de
infinitas e novas possibilidades, carregada de Infinito. Podemos esperar.
Hoje somos conscientes e podemos agradecer essa presença do
Espírito nos perfumes que a humanidade exala: no seu empenho pela paz e pela
justiça, na contribuição à integridade da criação, na sua cumplicidade com os
ciclos que favorecem a vida, no potencial de ternura, de cuidado e de
resistência frente a todas aquelas situações e forças que desintegram a vida,
na ação colaborativa, na interdependência, no diálogo e na abertura às
diferentes culturas e às diversas tradições espirituais, maneiras novas e
necessárias de situar-nos no mundo. Tudo isso é sinal do movimento do Espírito.
Desde o momento em que entramos no mundo, nascemos formando
parte de uma rede de relações. Este tecido relacional vai nos expandindo ao
longo do crescimento. “Ao final de minha vida abrirei meu coração cheio de
nomes” (Pedro Casaldáliga). O Espírito é o que escreve os nomes que vão
conformando nossa vida, nos quais fizemos experiência do que significa isso que
chamamos amor e que está gravado em nossa origem e em nosso destino, como nossa
fome maior e como nosso dom mais apreciado.
A imagem do “soprar sobre eles”, no evangelho de hoje,
contém uma riqueza elegante: significa compartilhar o que é mais “vital” de uma
pessoa, sua própria respiração, seu mesmo espírito, todo seu dinamismo. É uma
imagem que nos faz reconhecer o Espírito como o Alento último, o Dinamismo
vital que pulsa em todas as formas de vida que podemos ver e que nelas se
manifesta. Não há nada onde não possamos percebê-lo, nada que não nos fale
d’Ele. Por isso, a comunidade dos seguidores de Jesus, ao compartilhar com Ele
o mesmo Sopro, torna-se uma “comunidade conspiratória”, ou seja, “conspirar”,
“com-inspirar”, “respirar juntos”; ao soprar o Espírito Jesus e os discípulos
respiram o mesmo ar, o mesmo sonho, a mesma utopia do Reino...
Não é estranho que, com o Espírito, Jesus se refira à
missão: é o mesmo Espírito – seu sopro – Aquele que O conduziu e quer conduzir
a nós também. O Espírito e nós não somos dois. Somos “seres espirituais
vivendo uma aventura humana” (Teilhard de Chardin). Quando tomamos consciência
desta realidade profunda, realizam-se em nós as palavras de Jesus: a unidade de
tudo morando em nós, no Amor – outro nome do Espírito -, como única realidade
que tudo sustenta e constitui.
Mais ainda, o Espírito habita nosso ser profundo, sustenta
nossas energias sadias, aumenta nossas forças, compromete-nos a crescer de
forma autônoma. Ele age como um “princípio dinâmico” e como um “energético ativo”,
que reforça as atividades criativas do eu. Temos de viver a partir do Espírito,
transformando e vitalizando nossos gestos, pensamentos, compromissos,
encontros.
Por isso, Pentecostes não acontece até que, reconhecendo o
Espírito como nossa Identidade mais profunda, nos deixemos guiar por Ele, ou
melhor, viver a partir d’Ele, conscientemente conectados com a Fonte Primeira.
Falar do Espírito e celebrar Pentecostes é, portanto, celebrar a festa, a vida
e a Identidade última de tudo o que é e existe: é nossa festa.
Texto bíblico: Jo 20,19-23
Na oração: “O Espírito urge!” Para abrir-nos a este “Sopro”,
de modo que possamos experimentá-Lo no nosso “eu” mais profundo, precisamos
calar a mente, abrir-nos diretamente ao que é, e perceber, com prazer, que
podemos descansar sempre nisso. “Descanso” é outro nome do Espírito.
No silêncio da mente o Espírito se revela a nós, não como
uma presença separada, mas como presença interna de tudo o que é: Cuidado,
Descanso, Dinamismo... Vida em plenitude. E isso é o que somos todos.