Alexandre Cachorro
Cyro de Mattos
Os meninos de minha rua gostavam muito dos beijus que o
Alexandre Cachorro fabricava. O vendedor de beiju era um homem magro, alto, a
cara com marcas da bexiga, que quase o levou para a cova. Tinha poucos dentes
na parte superior e inferior da boca, as gengivas empretecidas, devido ao vício
que tinha de fumar o cigarro Yolanda Azul.
O cigarro quase não saía de sua boca.
Seu Isaías, um homem
de bigode cheio, cabeça sem um fio de cabelo, o melhor consertador de bicicleta
na cidade, era um dos fregueses do Alexandre Cachorro. Sempre comprava o seu
beiju quando ele passava vendendo no beco onde ficava a oficina de consertar
bicicleta. Certa vez, Seu Isaías disse que Alexandre Cachorro passou a ter esse
apelido depois que ficou sem o seu cão de estimação.
Sansão era um amigo
fiel que acompanhava seu dono quando cedo vinha vender beiju no balaio pelas
ruas principais da cidade. Era um cão grande, pelo negro brilhante, que não
fazia mal a ninguém. Tinha a mania de correr atrás do carro, latindo seguidas
vezes, quando pressentia que o veículo passava na rua sacolejando, buzinando,
como se fosse um bicho de outro mundo prestes a fazer algum dano ao vendedor de
beiju. A cena provocava riso entre algum menino que tinha a sorte de
presenciá-la, vendo naquele cão o melhor amigo do dono, tendo o melhor salto,
sendo o melhor abraço e o melhor guardião. Qual o menino na cidade que não
gostaria de possuir um cão como aquele, um protetor fiel de seu dono?
Quando chegava perto do dono, tinha olhos de bicho pidão, o
rabo inquieto. Então Seu Alexandre jogava o beiju para cima, sorrindo assim que
via que no salto preciso a guloseima era abocanhada pelo cão. Tinha a mania de
correr latindo atrás do carro, que passava em velocidade normal pela rua,
tentando morder nessa hora uma das rodas do veículo. Um dia, disparou atrás de
um carro latindo mais que de costume, tentando morder desesperado uma das rodas
dianteiras do veículo. Foi pego pela roda traseira. O motorista não teve tempo
de frear o carro e evitar a colisão com o animal, que com o impacto desferido
pela roda traseira foi lançado para o passeio. Ficou com a cabeça fendida, a
boca emborcada na poça de sangue. Horrorizado, não querendo acreditar no que
seus olhos estavam vendo, o dono do animal ficou com a expressão cabisbaixa no
rosto triste. Sabia que daquele momento em diante Sansão não seria mais o amigo
que o acompanhava quando descia com o balaio cheio de beiju para ser vendido de
porta em porta.
Morava no casebre de paredes de adobe, cobertura de folha de
flandres velho, erguido perto do matagal onde descia um córrego de águas
escuras. No fogão a lenha, sem pressa, costumava preparar os beijus arrumados
na frigideira em forma de um tabuleiro grande.
Sansão quieto em um dos cantos da sala, atento aos movimentos do dono no
casebre acanhado. Ele fazia todos os dias o beiju seco e o molinho com um gosto
adocicado, que era enrolado na palha de banana.
Dava água na boca do menino só de pensar no beiju molinho e doce
produzido por Alexandre Cachorro. Nem no
céu havia outro igual àquele que ele fazia na frigideira quadrada sob o calor
do forno.
Na refeição matinal,
o menino tinha os olhos de gula em cima das iguarias que a mãe trazia nas
tigelas, postas com cuidado à mesa: cuscuz, requeijão assado, banana fritada,
batata doce cozida, mugunzá, pão de milho amanteigado, quentinho, aipim
molinho. Entre essas guloseimas prazerosas, nenhuma ganhava do beiju molinho e
doce que o Alexandre Cachorro produzia.
Passou uma semana, duas, mais outra, um mês. De repente
Alexandre Cachorro deixara de aparecer nas ruas da cidade para vender seu beiju
apreciado pela freguesia enorme, sem que alguém conseguisse explicar o que
havia acontecido com ele. Estaria doente lá no seu casebre onde vivia sozinho,
desde que a mulher falecera de uma doença perigosa, que lhe atacou o pulmão?
Onde às vezes se dizia que ele latia, rosnava e uivava igual a um cachorro
perdido no mundo, à procura do dono, mas que nunca achava? Toda a cidade logo
passou a saber que ele dera para imitar os latidos de cachorro quando ia vender
seu beiju pelas ruas principais desde que ficou sem a companhia do amigo
Sansão.
Um dia, sua ausência demorada pelas ruas principais quando
vendia seu beiju anunciado por ele mesmo como o melhor do mundo foi esclarecida
por seu Isaías. O consertador de bicicleta informou que soube da notícia da
morte de Alexandre Cachorro pelo carteiro. Os vizinhos estranharam que o
casebre onde ele morava ficasse durante três dias com portas e janelas
fechadas. Ele tinha o costume de abrir cedo a porta e janela da frente, mal o
sol despontava no horizonte com sua flor luminosa. Chamaram por ele vezes seguidas. Bateram com
força na porta. Até que encontraram seu corpo estirado no piso de cimento
esburacado, todo duro.
Estava agora dormindo
o sono sem sonho na cidade dos pés juntos, naquele lugar onde todos chegam um
dia para não mais acordar para esse mundo de cá cheio de momentos alegres e
tristes.
Não precisava mais vender beiju pelas ruas e becos, dando
latidos igual a um cachorro.
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Premiado no Brasil,
Portugal, Itália e México. Publicado nos Estados Unidos, Dinamarca, Rússia,
Portugal, Espanha, Itália, França e Alemanha. Membro efetivo da Academia de
Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de
Santa Cruz - UESC.
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