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quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Médico na Estrada  

 Cyro de Mattos            

 


          Sabemos que como guardião da saúde o médico é fundamental para a vida, oferecendo em suas atividades a cura ou o alívio, no tratamento das doenças. Apresenta-se no ambiente como a manhã vestida de branco, acenando para debelar as distorções e lesões no corpo humano. Sua experiência traduz-se na doação ao outro, sem nunca recuar no duelo entre o dia e a noite. Nessa função de enfrentar a indesejada, em qualquer parte dos confins, teve no antigamente ferramentas sem os avanços tecnológicos de hoje quando então tudo era mais difícil. Ressalve-se que será sempre difícil salvar uma vida quando tudo parece que chegou ao fim.

         Não é dos médicos de hoje que pretendo tecer algum comentário nesse dia especial em que se comemora o ser-estar desses homens e mulheres de branco. Quero mostrar um pouco do que acontecia com algum deles isolado na vila quando esta servia como um burgo de penetração na conquista da terra. Tinha vida modesta, a maioria da clientela era constituída de gente com poucos recursos, donos de pequenas glebas de terra, com lavouras de milho, feijão e mandioca. Pagavam os honorários médicos com peru, galinha e porco. 

        Quando ia atender o doente que morava na fazenda com a família, a viagem era feita em lombo do burro, sequenciada por trechos íngremes da estrada, subidas e descidas com pedregulhos. Levava a maleta com o estetoscópio, seringa de aplicar injeção, bisturi, tesoura. Uma pasta com algodão, garrafa de álcool, mertiolate; linha, agulha, gaze, esparadrapo, amostras grátis de remédio e outras coisas pequenas. O guarda-sol para aparar a chuva ou protegê-lo quando o sol esquentava. Viajava cedo, saindo pela manhã, antes de o sol se levantar. Em caso urgente, viajava durante a noite. Seguia na estrada solitária, o burro cadenciado nos passos que martelavam a noite em silêncio, quase sempre picotada pelo cicrilar do grilo ou misturada com o agouro da coruja.     

       Fazia vários partos complicados. Incansável, curava, aliviava. Fosse impaludismo, crise de asma, inflamação no apêndice e vesícula. Operava o tumor intumescido como um botão grande debaixo da pele. Engessava a perna ou o braço quando o acidente era causado por um coice de burro ou queda no animal. Aplicava soro antiofídico contra picada de cobra. 

     Quando chegava à casa do pequeno lavrador, via nos olhos do doente, da mulher e filhos que o medo da morte era afastado com a sua presença. Luz da esperança estava acesa no interior da casa rústica, todos confiantes que a doença agora fosse debelada com a intervenção do médico.  Podia até ser de cor, nessas horas críticas não importava, não provocava qualquer espécie de constrangimento, rejeição por quem, em outros lugares e momentos, olhava para ele com ares superiores de indiferença. 

       Alguns desses pacientes eram também de cor como ele, outros mestiços pardos, acaboclados, poucos brancos e alourados. Até esses de cor branca não demonstravam estranheza com a sua visita porque o médico que chegava para tratar um caso de doença grave tinha a pele escura como a noite apagada de estrelas. O que importava era que ele viesse com o seu conhecimento para salvar a vida que corria perigo. 

       Esse médico pioneiro da medicina que ainda se arrastava na cidade pequena inspirou-me um poema que incluí em nosso livro Cancioneiro do Cacau, como homenagem a quem cuidou de nossos ancestrais com mãos tranquilas. Ó que lições me ensinou com seu trabalho enquanto a vida er dura e inóspita.

       Este é o poema:

 

Médico

 

Ritmando a morte

Nas terras do sem fim.

Ele no burrico

Encontra a mata

Mal o sol desponta

E a aurora acena. 

Sem pressa segue

Na estrada útil, 

Solitária, sombria. 

Na pobre valise

Onde a vida dorme

Segue para vencer 

A noite que foge

Para não escutar

O primeiro vagido 

Na clareza do dia. 

 

Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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