Médico na Estrada
Cyro
de
Mattos
Sabemos
que como guardião da saúde o médico é fundamental para a vida, oferecendo em
suas atividades a cura ou o alívio, no tratamento das doenças. Apresenta-se no
ambiente como a manhã vestida de branco, acenando para debelar as distorções e
lesões no corpo humano. Sua experiência traduz-se na doação ao outro, sem nunca
recuar no duelo entre o dia e a noite. Nessa função de enfrentar a indesejada,
em qualquer parte dos confins, teve no antigamente ferramentas sem os avanços
tecnológicos de hoje quando então tudo era mais difícil. Ressalve-se que será
sempre difícil salvar uma vida quando tudo parece que chegou ao fim.
Não é
dos médicos de hoje que pretendo tecer algum comentário nesse dia especial em
que se comemora o ser-estar desses homens e mulheres de branco. Quero mostrar
um pouco do que acontecia com algum deles isolado na vila quando esta servia
como um burgo de penetração na conquista da terra. Tinha vida modesta, a
maioria da clientela era constituída de gente com poucos recursos, donos de
pequenas glebas de terra, com lavouras de milho, feijão e mandioca. Pagavam os
honorários médicos com peru, galinha e porco.
Quando ia
atender o doente que morava na fazenda com a família, a viagem era feita em
lombo do burro, sequenciada por trechos íngremes da estrada, subidas e descidas
com pedregulhos. Levava a maleta com o estetoscópio, seringa de aplicar
injeção, bisturi, tesoura. Uma pasta com algodão, garrafa de álcool,
mertiolate; linha, agulha, gaze, esparadrapo, amostras grátis de remédio e
outras coisas pequenas. O guarda-sol para aparar a chuva ou protegê-lo quando o
sol esquentava. Viajava cedo, saindo pela manhã, antes de o sol se levantar. Em
caso urgente, viajava durante a noite. Seguia na estrada solitária, o burro
cadenciado nos passos que martelavam a noite em silêncio, quase sempre picotada
pelo cicrilar do grilo ou misturada com o agouro da coruja.
Fazia vários
partos complicados. Incansável, curava, aliviava. Fosse impaludismo, crise de
asma, inflamação no apêndice e vesícula. Operava o tumor intumescido como um
botão grande debaixo da pele. Engessava a perna ou o braço quando o acidente
era causado por um coice de burro ou queda no animal. Aplicava soro antiofídico
contra picada de cobra.
Quando chegava à casa do
pequeno lavrador, via nos olhos do doente, da mulher e filhos que o medo da
morte era afastado com a sua presença. Luz da esperança estava acesa no
interior da casa rústica, todos confiantes que a doença agora fosse debelada
com a intervenção do médico. Podia até ser de cor, nessas horas críticas
não importava, não provocava qualquer espécie de constrangimento, rejeição por
quem, em outros lugares e momentos, olhava para ele com ares superiores de
indiferença.
Alguns desses pacientes eram também de cor como ele, outros
mestiços pardos, acaboclados, poucos brancos e alourados. Até esses de cor
branca não demonstravam estranheza com a sua visita porque o médico que chegava
para tratar um caso de doença grave tinha a pele escura como a noite apagada de
estrelas. O que importava era que ele viesse com o seu conhecimento para salvar
a vida que corria perigo.
Esse médico pioneiro da medicina que ainda se arrastava na cidade pequena inspirou-me um poema que incluí em nosso livro Cancioneiro do Cacau, como homenagem a quem cuidou de nossos ancestrais com mãos tranquilas. Ó que lições me ensinou com seu trabalho enquanto a vida er dura e inóspita.
Este é o poema:
Médico
Ritmando a morte
Nas terras do sem fim.
Ele no burrico
Encontra a mata
Mal o sol desponta
E a aurora acena.
Sem pressa segue
Na estrada útil,
Solitária, sombria.
Na pobre valise
Onde a vida dorme
Segue para vencer
A noite que foge
Para não escutar
O primeiro vagido
Na clareza do dia.
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70
livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior.
Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem,
há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em
Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou
o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e
outras histórias.
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