A poesia de um rio enfermo
Denise Emmer
O rio
do menino poeta, de águas claras e translúcidas, onde de peito nu ele nadava
impetuoso, a se imaginar um herói, peixe do vento, ou mesmo uma ave aquática,
hoje padece da enfermidade que assola a natureza. A poluição, por abandono e
descaso com a vida. De sua juventude solar ele nos conta, logo na última parte
deste Trilogia do Rio, que é para ler e pensar:
Houve a
expressão livre do sol lavando meu rosto, a vida se desvendava com a magia das
cores.
Esse
rio de inúmeras pedras pretas, espalhadas nos peraus e no raso, divide a cidade
de Itabuna em duas partes, no interior da Bahia. Foi o rio das lavadeiras, que
de lavar as roupas de gente abastada ganhavam o sustento e coloriam as pedras
quando nelas colocavam as roupas para secar ao sol de manhãs claras. Era um rio
de águas límpidas e peixes em abundância. O poeta nos diz em comoventes versos
sobre o rio do seu passado quando as correntes brilhavam na diáfana pureza.
Havia
as lavadeiras nas pedras, havia borboletas no barranco, havia o sol na canoa,
havia as fotos da lua.
Ele nos
conta uma triste história, em versos de onda em onda, que nos fazem sentir
outras águas, verter lágrimas e lamento, ao saber que esse rio hoje é um doente
sem cura, ao invés de reger barcos ou levar em seus braços os nadadores meninos
transporta dejetos e vômitos, qual um depositário de restos. Mas Cyro revela em
poesia, como só os poetas sabem, essa trágica realidade que nos comove e
alerta. Transcrevo então outro trecho do livro, de rara beleza poética.
Sem
mergulhos agora, competente abundância, espumas se escondem pastosas nos
vômitos para que serves enfermo sem brilho nas escamas, sem teus cachos de água
que sempre inventavas?
Diante
do cenário triste, que se revela o mais nefasto como acontece na finitude das
coisas puras, o poeta prossegue seu navegar por entre as chagas e os restos.
Vômitos
e excrementos no funeral das águas eliminaram a paisagem clara.
Tal
qual o rio Amazonas, onde flutuam doses químicas jogadas por mãos humanas, o
Cachoeira da infância do poeta, de águas puríssimas, lugar de mergulhos solares
dos meninos de Itabuna, agora integra outra paisagem, de negações e tristezas.
Como consequência dos abusos terrenos faz parte do funeral do mundo e de toda a
natureza. Antes deslizava com suas águas claras, hoje se mostra agônico, que dá
pena a quem vê. Como ocorre com o rio de Heráclito, a pessoa não vai poder se
banhar nele duas vezes. Há tempos, como se fosse um esgoto a céu aberto, sofre
com a transformação que o tempo lhe impingiu. Entre as ocorrências do universo,
que em seu devir está sempre em transformação, esse rio generoso “se desvendava
/ com a magia das cores / (...) em que “viver era aventura/ desenhada pelas
mãos da infância”. Há tempos desce desfigurado quando então “espumas se
escondem / pastosas nos vômitos”.
Apesar da crueza descrita nesse poema denúncia, o poeta
Cyro de Mattos – nome essencial da moderna literatura brasileira – nos traz
nesse livro a poesia pura e genuína de quem sabe que o “fazer poético” é
vocação e trabalho. A poética líquida de Cyro de Mattos, é, portanto,
fundamental por sua temática universal, bem como pela rica e plena poesia de
invenções imagéticas e ritmo encantatório, como o do rio de outrora que hoje
padece no terminal. São poemas para reler e pensar sobre o que fizemos com o planeta.