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quarta-feira, 24 de novembro de 2021

O DIREITO À CULTURA – Efson Lima


O Direito à Cultura

Efson Lima

 

          Os seres humanos dotados de capacidade reflexiva têm o raciocínio como um demarcador que os coloca em um patamar privilegiado entre os seres vivos. Essa capacidade de elaboração se manteve ao longo da trajetória humana, mas exige compromisso com o acesso aos bens culturais, estabelece limites para usufruí-los e a necessidade de ser compartilhado. Para essa discussão, faz-se necessário esboçar o que possa ser cultura, segundo o Dicionário Aurélio entre alguns conceitos, cultura é “o conjunto de características humanas que não são inatas, e que se criam e se preservam ou aprimoram através da comunicação e cooperação entre os indivíduos”.

          O direito à cultura deve ser compreendido como “… aqueles afetos às artes, à memória coletiva e ao repasse de saberes, que asseguram aos seus titulares o conhecimento e uso do passado, interferência ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão de opções referentes ao futuro, visando sempre a dignidade da pessoa humana”, segundo Humberto Cunha Filho. Portanto, o direito cultural é um campo que se apresenta como uma necessidade da natureza humana. Próprio de uma sociedade que deseja preservar seus valores e colaborar com o progresso da humanidade. É a afirmação da soberania por meio da valorização das produções de seu povo. É a autodeterminação de sua gente no plano internacional.

          Vários temas têm perfilhado o direito cultural. Por sinal, o direito cultural não é uma ilha. Ele estabelece interface com outros ramos do direito. Ao tratar de tombamento, precisa-se recorrer ao direito administrativo; o próprio arcabouço jurídico sobre cultura está previsto na Constituição Federal ao prevê, no art. 215, que o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. Ainda na Constituição é possível encontrar alguns exemplos do que a doutrina especializada tem concebido como espécies de direitos culturais: o direito autoral (artigo 5º, XXVII e XXVIII); o direito à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação (artigos 5º, IX, e 215, §3º, II); o direito à preservação do patrimônio histórico e cultural (artigos 5º, LXXIII, e 215, §3º, inciso I); o direito à diversidade e identidade cultural (artigo 215, caput, § 1º, 2º, 3º, V, 242, § 1º); e o direito de acesso à cultura (artigo 215, §3º, II e IV).

          O direito municipal se ocupa também do debate cultural por meio das leis orgânicas, o financiamento da cultura tem dialogado com o direito tributário seja no plano federal seja no estadual, assim como o debate na seara do direito educacional. O patrimônio cultural é uma das faces do direito ambiental. O próprio direito à cultura decorre de um direito humano. Há quem também advoga na defesa do direito humano à literatura, visto que […] a literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob a pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos sentimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza.”

          Defender o direito à cultura é também reconhecer a cultura popular e as suas diferentes manifestações, inclusive, no tocante aos aspectos religiosos. Perpassa por um estado laico, mas também um Estado que não permita seu patrimônio religioso sucumbir, assim como os terreiros. A laicidade estatal não pode ser impeditiva para a restauração do patrimônio religioso.

          O direito cultural tem recebido cada vez mais um tratamento específico, mas precisamos de mais pessoas dedicadas ao estudo do campo. As instituições universitárias precisam incorporar nas suas grandes de ensino. Uma sociedade que se ocupa do direito cultural significa que ela está preocupada com a sua memória e como o seu povo acessa essa memória e faz uso dela. Não há democracia sem o acesso e a usufruição dos bens culturais, inclusive, com a valorização das expressões populares. A comunidade também é produtora de cultura, talvez, cuidamos de negá-la ao direito da reflexão, assim é mais fácil impor as ordens e os valores. Até quando? Não nos interessa uma sociedade subserviente, interessa-nos uma sociedade questionadora e propositiva. Os déspotas e populistas estarão mais distantes dos nossos cenários eleitorais. A área jurídica não pode ser conservadora no debate do tema quanto ao direito à cultura. Estamos aquém quando comparado com outras áreas.

 

Efson Lima - Doutor e mestre em direito/UFBA. Advogado, professor universitário, escritor, organizador do Festival Literário Sul-Bahia (FLISBA) e membro da Academia Grapiúna de Letras (AGRAL). E-mail: efsonlima@gmail.com

http://www.jornaldireitos.com/#/artigo?p=16979


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OS PINGOS NOS IS - 24/11/2021

O GRAFITEIRO POETA – Cyro de Mattos



O Grafiteiro Poeta

Cyro de Mattos

 

          Ultrapassada a fase criativa sob o domínio da inspiração e da transpiração, um dia o autor imagina que o primeiro livro está pronto para ser editado. Vai ser útil ao outro na leitura do mundo. Ainda não sabe como é complicado publicar um livro por editor no circuito nacional, principalmente quando se trata de poesia. Com o mineiro Ney Mourão não foi diferente. Durante vinte anos, o poeta de Notas dispersas pelas paredes vinha   batalhando a publicação de seu primeiro livro. Chegou a ter uma ideia desesperadora nesse desejo de vê-lo finalmente editado. Começou a grafitar poemas nos muros da cidade.

            Assinava-se “poeta à procura de editor”. Ante o espanto de alguns e indiferença de muitos, grafitou cerca de duzentos poemas. Andou quilômetros, em três anos, a pé e de ônibus. Cobriu quase todos os bairros da cidade. Várias vezes foi preso e humilhado. Serviu como tema de redação nas escolas. Foi dado como morto. Souberam que o poeta estava vivo. Foi entrevistado e virou notícia na mídia. Mas nada de encontrar até então o editor de seu livro de estreia.

            Em seu destino de ser poeta, com a marca da vida e do sonho nos muros, nunca desistia. Fazia, no itinerário das madrugadas de um homem só, que Belo Horizonte amanhecesse riscada de versos comoventes. Como estes do conhecido poemeto “Lampejo”: “Apague/a rua/que a lua/tá linda!”. Ou ainda estes de “Light”, de conotação surrealista:Às vezes / de tão feliz/ ela acorda/ e sai por aí/ a t r o p e l a n d o b o r b o l e t a s”. Ou também nestes de “mercadolivrepontocom”: “Troco/ um apito de fábrica/por um canto de pássaro”. Entre tantos poeminhas, que lembram o haicai, pela síntese construtiva, intencionalidade de grande beleza imagética, não posso deixar de citar estes versos primorosos de “Litúrgico”: “Grafite de Deus/é arco-íris/ no horizonte!”.

            Em sua composição técnica e estética, como numa peça sinfônica, o conjunto destas gritantes Notas dispersas pelas paredes reúne poemas curtos na maioria das vezes. Acordes no elétrico emocional do espírito para iluminar o ar. Repercutir nas ruas e invadir as casas. Coexistem, em sua partitura musical, como elementos constituintes do discurso terno quase sem o liame entre o poeta e o leitor, leia-se ouvinte, eliminando-se o que se considera ser tão-somente um formalismo desnecessário, na esperança de aumentar em suas conexões sensoriais o poder emocional que emerge em cada verso.

Mas esse mineiro criador de uma poesia nas paredes e tapumes também se sai bem quando escreve o poema com desdobramento da razão emotiva. Nesse particular, anotem como fatura exemplar do eu lírico os textos denominados “Inventário”, “Poema Musical para Roer as Unhas” e “Indo”. Neles o poeta não pretende explicar a vida, o que para o poeta Drummond, o trivial lírico de Itabira, é inexplicável. Sob aspectos pungentes, transmite a beleza inevitável da poesia na vida, também inexplicável, em momentos de chuva, lágrima e solidão colados em nossa condição humana, nestes agudos ritos de passagem no sempre.

            Trata-se de uma poesia de captação fácil, como talvez deva ser nos tempos atuais de velocidade, como quer Calvino. Seu discurso articula-se com rapidez para ser ouvido pelo outro mais o mundo, seduz com a enunciação sensitiva de seu conteúdo. O leitor vai encontrar nessas estridentes Notas dispersas pelas paredes o andamento da beleza com motivações múltiplas no exercício da vida.

            Nos tempos de hoje, em cujo ritmo uma sociedade pós-industrial impele-se pela automação, pela massificação e pelo consumo, vale a pena tomar conhecimento da estreia desse poeta mineiro. Sua voz de grafiteiro poeta lateja emoções lindas. Em nervura e cumplicidade de palavras polivalentes, mostra o quanto o homem tem de grandeza em sua consciência grafitada com razão e emoção.

 

Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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