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quinta-feira, 27 de maio de 2021

TINHA O NÚMERO NA MEMÓRIA – Ariston Caldas

 


          Um telefonema.

          Fechou a revista e a sobrepôs à carteira, dirigindo-se depois para o aparelho, calmo, cantarolando uma cantiga do seu tempo de menino.

          “Alô”. Era Laura. “Quem?”

          Não acreditou; havia tanto tempo, anos a fio. “Não está acreditando! Sou eu mesma”.

          Por quê? Dez anos não são dez dias; nem saudade existia mais, somente algumas lembranças a esmo, soltas, sem nenhuma emoção. Até mesmo aquela raiva forte havia sumido pelo vento. Mas agora voltava a voz de Laura, autêntica, doce, quase cantante a momentos; o retorno de alguns flagrantes, o perfume que ela gostava depois do banho. “Alô, é Laura”.

          Conhecera outras Lauras, mais de duas; a que lhe telefonava, porém, fora a única, dona da vida dele, dos afazeres, de seu destino. “Volto amanhã, estou na Conselheiro Rui Barbosa, 146”.

          Pensou perguntar alguma coisa a Laura; “o quê?” Não havia nenhum assunto, nem velho nem novo, nem interesse que o houvesse não; tudo agora era outra coisa, outro mundo entre os dois. Guardou o endereço na memória, particularmente o número; pensou anotá-lo, mas confiou na memória. Lembrou do tempo de colegial quando decorava de ponta a ponta qualquer lição, com facilidade; era elogiado, assim, pela professora, por muitos colegas, invejado por outros.

          Praticamente não tinha nada agora para dizer a Laura; passado obscuro, ausência, distância. Recordou, porém, como sombra, ela encostada numa amendoeira do quintal, arrochada pelo vizinho, sujeito que ninguém o diria capaz. Até isso não passava de imagem apagada pelo tempo, uma caricatura, mesmo como causa da separação. Ia ver Laura, assim, sem nenhum constrangimento. No outro dia ela estaria voltando para a Argentina. Gostaria de vê-la.

          Encaminhou-se para a Conselheiro Rui Barbosa; rua comprida, cheia de edifícios altos, magazines de luxo, agências bancárias, lanchonetes, bancas de revistas, trânsito intenso de veículos. Avistou o prédio de número 126; “está perto”. Olhava pelo lado dos números pares; mais alguns edifícios e chegaria ao 146. Chegou.

          Era uma casa grande, em ruínas, antiga, cupim pelos postigos das janelas fechadas, dois edifícios ladeando-a; olhou para as cornijas estragadas, cheias de manchas escuras; para as soleiras de mármore sujas nas portas e janelas arqueadas como de igreja colonial. Seria ali. Laura. Não anotara o número, mas o tinha gravado na memória, claro, como o fazia com as lições no tempo do colégio; tanto que até agora as guardava na cachola, como o descobrimento do Brasil, como os nomes dos navegadores, das naus, o atracamento em Porto Seguro. “Vou bater na porta”. O fez, desconfiado, com medo de ser considerado doido; a casa antiga, suja, fechada, roída pelo cupim. Bateu algumas vezes, olhava para trás; “este sujeito é maluco”. Laura. Nem sombra de ninguém.

          Atravessou para o outro lado da rua, perguntaria numa banca de revistas em frente; “não, senhor, ali não mora ninguém”.

          Levantou a cabeça e ficou mirando um edifício à esquerda da casa velha, número 144. Quantos andares? Contou até o meio. Oito. Janelas envernizadas, vidros em cores, limpos. Junto ao edifício a casa parecia-lhe mais atarracada. “O senhor tem certeza?” O homem das revistas falou: em torno de três anos, nunca morou ninguém ali. Será que havia confundido casa com edifício? O 146 seria número de casa ou de apartamento? Acreditava na memória; “nunca falhou, desde o tempo do colégio”.

          Depois de ir e voltar, atravessar pra lá e pra cá, teve a ideia de informar-se numa lanchonete. “Não mora ninguém”.

          Lembrou que meninos de rua sabem das coisas, mas não havia nem um menino de rua no local. Mas tinha certeza sobre o número; ora, perfeitamente. Mas havia somente uma casa velha fechada, cheia de cupim. Sobre o número, nem tinha dúvida, era aquele, o sentia fresco na cabeça, através da fala sutil de Laura pelo telefone sem ruído. Impressão, nenhuma. Certo que estava esquecido dela, da fala, mas reconheceu tudo de repente, rememorou até a cena em baixo da amendoeira. No momento do telefonema estava tranquilo lendo uma revista; guardou perfeitamente o timbre da voz de Laura lhe dizendo o número.

          Por que no local havia uma casa velha, desabitada, cheia de cupim pelos postigos? “Não mora ninguém”. Insistir novamente sobre o inusitado assunto, seria inútil. No dia seguinte Laura estaria voltando para a Argentina. Não havia uma pessoa que pudesse ajudá-lo. Mesmo assim andou perambulando o resto da tarde, e à noite voltou para o escritório; antes de sair de lá o telefone tocou. Ligação errada.

          A custo conseguiu dormir. Sonhou com Laura, ele anotando num pedaço de papel o número 146. Amanheceu com a cabeça zonza lembrando da casa velha ruída pelo cupim, onde não morava ninguém, onde Laura nunca teria se hospedado. “Teria sido o espírito dela zanzando por aqui?” Pensou, em última análise.

 


LINHAS INTERCALADAS

Ariston Caldas


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