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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

RESISTÊNCIA SANTA DE FIRMINO ROCHA – Cyro de Mattos


Resistência Santa  de Firmino Rocha

Cyro de Mattos

                                        

                O épico apresenta, o lírico lembra, o dramático articula mundos interiores que resultam de atritos e conflitos na cadência crítica da vida. O lirismo e o sentimento do amor andam juntos, como  podem ser vistos na tradição da poesia ibérica. Na sua maneira íntima, de permanente emotividade, o lírico procede como quem recorda ou irrompe dos estados puros da paixão. O ouvido está atento para captar situações, auscultar seres e coisas, pulsações e frêmitos que correm no rio da vida. A mensagem é endereçada em muitos casos mais  aos ouvidos do que aos olhos. Não pretende deixar nada na escuridão e frieza. Seu estro murmura  nos acordes da  tristeza, adeus, agonia, lamento e grito.  Passado e  presente são auscultados  no presente para a sugestão r muitas vezes de um sentimento único: o amor.

                Em Firmino Rocha, poeta de expressão fácil,  verso de tonalidades leves,  um canto de amor emerge do eu lírico, ingênuo no modo de sentir o mundo. Ao fugir do real circundante, recheado de horas doloridas,  que os olhos não chegam a compreender, o transe imposto ao poeta  o impele para  outra paisagem, de aflição que atua como  âncora. Provoca uma poesia que,  mesmo dolorida na captura da vida,  flui com ternura. Acontece com forte apelo naqueles  poemas em que o fluxo lírico traduz   a angústia de ser  ante o mundo: os pesares permanecem em companhia  dos recônditos  por quem se vê ilha  em seu estar no mundo.

                De tendência intimista, no seu verso  tão somente pulsa a emoção, que acontece pelas arestas do  coração, ofendido pelo mundo áspero que fere. Os olhos tentam  colocá-lo distante, mas não conseguem. A  dor e  a saudade, no seu banimento impossível,    irrompem num facho de luz repentino para externar  a solidão, tornada queixa  no gesto que é uma profusão enorme  entre o dramático,  com seus delírios, e o lirismo,  com a  sua pureza incrementada na verdade.

                O  som como elemento necessário forma o ritmo, que emana suave e flui do verso com espontaneidade. Associada  ao som,  sua poesia tem assim  entonação musical, embora nem sempre a intuição compareça no texto verbal com  bons resultados. É ausente de síntese na reflexão crítica,  sem  tendência  conceitual, emotiva por excelência submete-se aos instantes do  eu profundo. É como o ar  que o próprio poeta respira, nesses encontros  inevitáveis  da solidão de quem, perturbado na alma,  sofre e sente, resiste e chora.

                A poesia tomada  nessa latitude não deixa de ser comoção, tornada   em linguagem condensada,  intensa e plural no seu significado.  Há quem afirme que nessa postura do sensível, com suas formas  calcadas no eu lírico,  a poesia obedeça  ao  ritual  simbólico da escrita para revelar uma ideia. Argumente  contra os que acham  que  é a razão  que faz o outro se sentir bem, conhecer o inexplicável, esclarecendo  que a poesia  através de emotiva  pulsação interior  traduz  murmúrios que estremecem,  encantam e comovem. Consegue demonstrar,  em sua linguagem aparentemente prosaica,  que um  poeta nem sempre se apoia em formas frias, não é um operador  de modelos reflexivos que buscam unir o ser humano, contraditório, finito,  a momentos  da palavra tomada  emprestada à razão para pronunciar os indícios históricos da existência.

                Poeta que marca a palavra com o abraço da paz e a lágrima do amor, Firmino  Rocha é mais um caso de resistência da poesia. Do homem que, ilhado na cidade do interior, de ambiência literária incipiente à sua época, assume em sua feição heroica e santa o lado do sonho, da loucura iluminada. Expressa  por meio de intuições  e emoções a  solidão solidária  que encontrou como maneira de exercer a  dialética do silêncio para não sucumbir ante a opressiva lei da vida.

                Para esse poeta de Itabuna, o poema é sangue e ar, calvário e canto que redime, pilastra  que sustenta a dor de si e de muitos, ponte de inquietudes que se estende  “prenhe das águas encobertas e das ramagens emudecidas.” Dostoiewsky disse que a Arte salvaria os homens, o poeta Firmino Rocha acredita que só o poema pode trazer-lhe o sonho da amada e salvá-lo, como numa prece, das paragens cegas da noite sem beijos e canções.

 Era sua crença:

 

Só um poema pode

esta angústia afugentar

esta tristeza exilar

esta escuridão espantar

 

                Defensor dos valores eternos, como a liberdade e a paz, em versos que se vestem com auroras e vertem estrelas, tem como um de seus temas preferidos o da inocência que se escondeu  com a infância. A sua lira, que sobe “o manto azul da lua cheia” e se desperta na janela pela voz de três baladas, canta a saudade, o amor, a  infância, o mistério que cerca seres e coisas nesse velho mundo impossível de ser elucidado nas  propostas íntimas de  uma canção constante. Firmino Rocha canta os mares pressentidos de angústia e pranto, o eu lírico livre e sereno aparece no verso espontâneo  “colhendo do amanhecer os  seus milagres.” Canta a morte do desesperado negro Stanley, que na terra de Tio Sam cometeu o pecado de amar uma mulher branca.

                Ânsia, lágrima, o beijo perdido para sempre, paixão, lembrança, tudo isso está na poesia de Firmino Rocha, com seus vícios  e virtudes.  Nela há sempre a necessidade de  amparar a solidão na companhia de sons e na magia de sonhos. Poesia feita de recados, desejos impossíveis, indagações sem resposta, pranto e distância. Filho do chão cacaueiro baiano, descendente de família pioneira na conquista da terra, sua poesia não  tem o som épico e dramático que impõe o tema urdido  num contexto que  ao longo do tempo implantou  uma civilização singular, portadora de valores materiais, tipos e costumes com bases na lavra dos frutos cor de ouro.    

                O poema “Deram um fuzil ao menino”, pungente canto  de ternura feito  como protesto contra a  guerra (1939-1945), tem arrebatado o brilho de toda a  poesia do autor de O canto do dia novo (1968). Há forte versão  entre os conterrâneos de  que  esse poema  encontra-se gravado, em bronze, na sede da ONU, em Nova Iorque. Figura  em antologia de poetas do mundo todo, editada pela Organização das Nações Unidas. Mas não existem  provas de que tais fatos sejam verdadeiros. Pode ser uma lenda, criada pelos seus conterrâneos e admiradores,  para  que o mito ganhe circulação internacional nos  ares locais,  com meros propósitos ufanistas.

                A poesia reunida de Firmino Rocha foi publicada numa co-edição da Editus, editora da Universidade Estadual de Santa Cruz,  e Fundação Itabunense de Cultura, na gestão do professor Flávio Simões. Iniciativa louvável porque até aquele momento, inclusive entre seus conterrâneos,  o poeta continuava inédito. Falava-se mais de Firmino Rocha  como autor do poema “Deram  um fuzil ao menino” e pouco se tinha  conhecimento  do seu legado poético.

                Certamente a publicação de sua obra, reunindo diversos poemas esparsos por  jornais e oferecidos a amigos em mesa de bar, é uma forma de perpetuar esse poeta sul baiano,  resgatar e  preservar  a memória cultural do sul  da Bahia  Poderia ser  uma boa oportunidade para inserir documentos e iconografia pertinente  no livro Firmino Rocha – Poemas escolhidos e inéditos (2008) e fazer a comprovação  em definitivo  que o poema “ Deram Um Fuzil ao Menino” encontra-se realmente   gravado na ONU, em  bronze, além de participar  de antologia importante no exterior.

                Os comentários continuarão em torno do assunto informando que  os fatos que envolvem o poema famoso com possível  repercussão na ONU são verdadeiros.   Pelo sim, pelo não, com a palavra os estudiosos de literatura, pesquisadores  e historiadores da terra do poeta.

               Um adendo. Solicitei ao meu tradutor nos Estados Unidos, Fred Ellison, professor emérito da Universidade de Austin, no Texas, para  verificar se o poema “Deram um fuzil ao menino” achava-se gravado em bronze na ONU. E se pertencia a uma antologia da paz publicada pela ONU com poetas do mundo. A busca exaustiva foi realizada por um parente de Fred Ellison, funcionário da ONU. E nada foi encontrado que comprovasse estar gravado na ONU o célebre poema do poeta itabunense. Nem antologia nem nada. Até que prove o contrário, para mim é lenda este assunto que os aligeirados gostam de propagar como verdade. 

 

Leitura Sugerida 

ROCHA, Firmino. Poemas escolhidos e inéditos, Via Litterarum Editora, Itabuna, Bahia, 2008.

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Cyro de Mattos é ficcionista, poeta, cronista, ensaísta e autor de literatura infantojuvenil. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da UESC (Bahia).  Possui prêmios importantes. Publicado no exterior.

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A MELHOR DAS ESMOLAS – Plinio Maria Solimeo

25 de novembro de 2020



  • Plinio Maria Solimeo

 

As editoras costumavam lançar pelo menos um título por mês, dada a apetência de leitura que o público tinha. Com o surgimento da TV, e sobretudo da internet, passou a prevalecer a “civilização da imagem”, e a capacidade de abstração do homem foi se reduzindo a ponto de hoje não despertar interesse senão aquilo que se dirige diretamente à fantasia. Daí a dificuldade que se tem em nossos dias da leitura de um livro de caráter doutrinário ou histórico.

Entretanto, Santo Antônio Maria Claret [fotos acima e abaixo], o grande missionário espanhol do fim do século XIX, fundador dos claretianos, ressaltava o papel preponderante da leitura para a evangelização, pois ela alimenta a alma do mesmo modo que a comida nutre o corpo faminto. Mas assim como a comida deteriorada prejudica a saúde do corpo, a leitura de maus livros corrompe a alma.

Periódicos ímpios, folhetos heréticos e demais escritos perniciosos corrompem as crenças, pervertem os costumes, extraviam o entendimento e corrompem o coração. E do coração corrompido saem todos os males, como diz Nosso Senhor Jesus Cristo (Mt 15, 19), até se chegar a negar a primeira verdade, que é Deus, origem de todo o verdadeiro: “Disse o depravado em seu coração: ‘não há Deus’” (Sl 2, 16).

Santo Antônio Claret passou grande parte de sua vida como missionário. E para que seus sermões tivessem efeito duradouro sobre os fiéis, procurava todos os meios que a sua fértil imaginação lhe sugeria. Um deles, ensinado pela experiência, que considerava o melhor e mais poderoso, era a imprensa, se bem seja igualmente a arma mais letal quando dela se abusa, acrescentou ele. Por isso, dedicou-se com afinco à publicação de bons livros e mesmo de folhetos de fundo religioso como auxiliares de sua pregação.

Em sua autobiografia diz: “Quando ia missionando, cuidava de todos os aspectos da missão; e, segundo via e ouvia, escrevia um livrinho ou um folheto. Assim, se na população observava que havia o costume de entoar cânticos desonestos, publicava um folheto com um cântico espiritual ou moral”.  Pelo que desde o início de seu apostolado publicou folhetos que continham meios para se combater a blasfêmia.

Na ocasião em que começou a pregar, constituía coisa escabrosa a quantidade e a gravidade de blasfêmias que se ouviam em todas partes. Parecia a ele que todos os demônios do inferno se haviam espalhado pela Terra a fim de fazer os homens blasfemarem. Igualmente, a impureza havia rompido os seus diques, e por isso resolveu escrever dois folhetos com instruções para combatê-la.

Segundo ele, para todos os males, é remédio muito poderoso a devoção a Maria Santíssima, assim no início dos folhetos escreveu a oração:

“Ó Virgem e Mãe de Deus, eu me entrego por filho vosso e, em honra e glória de vossa pureza, vos ofereço minha alma e corpo, potências e sentidos, e vos suplico que me alcanceis a graça de não cometer nenhum pecado [neste dia]. Amém. Mãe, aqui tendes vosso filho! Em vós, Mãe dulcíssima, pus toda minha confiança, e jamais serei confundido. Amém”.


Percebendo os bons resultados que esta publicação produzia nas almas, resolveu escrever outras, segundo as necessidades que observava na sociedade, e distribuía esses folhetos com profusão não só aos adultos, mas aos meninos e meninas que se aproximavam dele. Afirma um seu biógrafo que na Catalunha essa oração tornou-se tão popular como a Salve Rainha.

Tal foi a repercussão da ação deste ardoroso missionário, de sua pregação e de seus escritos que um periódico de Madri registrou no tempo dele: “A Catalunha se comove ouvindo a divina palavra da boca de um homem de 36 anos, e este homem é Antônio Claret. […] O Padre Claret não tem um momento de descanso. Seus sermões duram geralmente hora e meia. O confessionário lhe ocupa boa parte do dia, de maneira que rouba ao sono o tempo que consagra em escrever livros piedosos para uso do povo. […] Louvor, pois, a esse eclesiástico benemérito que soube adquirir uma justa celebridade, que como São Vicente Ferrer aparta os povos do lodo dos vícios, e os instrui na ciência da vida. Grande é a sua missão regeneradora”.

O êxito obtido em todas as camadas da sociedade foi tão grande que o próprio missionário chegou a afirmar: “Graças sejam dadas a Deus, todos os livrinhos têm produzido bons resultados; mas dos que produziram mais conversões foi O Caminho Reto, e o Catecismo Explicado”.

Principalmente o primeiro teve muita procura, não só entre a gente do povo mas igualmente das mais altas autoridades do país, observou ele. Da leitura desses livros saíram muitas conversões, e mesmo na Corte, não passava dia em que não se apresentassem almas determinadas a mudar de vida por sua leitura. Todos o buscavam, e não descansavam até obtê-lo.


Tal desejo o obrigou a fazer uma impressão de luxo [foto ao lado] para as pessoas mais categorizadas. Com efeito, o procuraram a rainha, o rei, a infanta, damas do palácio, fidalgos e toda a nobreza. Pode-se dizer que na classe alta não houve casa ou palácio onde um ou mais exemplares da edição de luxo de O Caminho Reto não tivesse penetrado, e nas demais classes, da edição popular.

Apenas um exemplo do bem que as leituras contidas em estampas religiosas ou nos folhetos operava. Narra ele que numa cidade, quatro réus aguardavam as respectivas execuções, e não queriam se confessar. Santo Antônio deu então a cada qual uma estampa religiosa, com considerações espirituais no verso. Lendo-as, eles refletiram e se confessaram, receberam o Santíssimo Viático, e tiveram morte edificante.

Considerando o grande bem que faziam seus livros e folhetos, Santo Antônio Maria Claret, para torná-los mais acessíveis, em 1848 fundou em Barcelona uma Imprensa Religiosa, colocando-a sob a proteção de Maria Santíssima de Montserrat, como padroeira que é da Catalunha, e do glorioso São Miguel.

Com a impressora fundou a Livraria Religiosa para difundir sua literatura espiritual, fazendo com que eclesiásticos e seculares se provessem de bons livros, os melhores de que se sabe, ao mais ínfimo preço, de modo que nenhuma impressora da Espanha fornece livros tão baratos como os da Livraria Religiosa.

Afirma o santo: “Em todos os livros publicados não se buscou o lucro, mas a maior glória de Deus e o bem das almas. Nunca cobrei um centavo como propriedade intelectual do que mandei imprimir; ao contrário, doei milhares e milhares de exemplares, e continuo doando e, com a ajuda de Deus, doarei até a morte, pois considero ser a melhor esmola que se pode fazer”.

Hoje fala-se muito nos pobres, mas se faz pouco por eles. Há muita demagogia sobre seu bem-estar material. Até entre eclesiásticos de todos os níveis fala-se muito pouco ou quase nada do bem-estar espiritual deles. Esquecem-se que, como diz o grande Santo Antônio Maria Claret que dedicou a vida a dar aos desprovidos dos bens materiais a “maior esmola que se pode dar”, ou seja, a instrução e assistência religiosa para lhes abrir as portas da bem-aventurança eterna.

https://www.abim.inf.br/a-melhor-das-esmolas/

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