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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

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MUSEU GUARDADOR DE AMORES FUGAZES – Cyro de Mattos


 

Museu Guardador de Amores Fugazes

Cyro de Mattos*

 

              É preciso ter viajado muito e respirar outros ares para saber o quanto pulsa dentro o que se traz de longe e vem das origens, antes que tudo acabe, fique disperso pelo inexorável, sob o sopro do vento na poeira marcada de saudade e solidão. Infelizmente.  As pessoas, as coisas, os bichos, as plantas, tudo que entra numa paisagem que acena   na distância diz mais do que o que encontramos em outros longes quando deixamos nos levar por novas mundividências, pensando-se que estamos desligados de seres e coisas que não voltam mais. E sempre sabemos que vivemos com as lembranças, os mortos voltam de novo, pois se cabem em sonhos e tremuras nos recônditos da alma perante os mistérios da existência. 

             Só a arte da palavra pode operar o milagre de fazer renascer o que se foi, dolorosamente. Com a poesia marcada de versos no reverso, sem evasivas românticas, é capaz de revelar a alma invisível nas rupturas drásticas dos seres e das coisas para que seja visto o quanto cada um de nós é um ser do tempo, que não muda, e dessa forma mudamos nós, na travessia dos amores fugitivos que acontecem submissos a certo senhor soberano.  Indiferente é como esse cavaleiro no galope absoluto tudo dá e toma.  E ela, a poesia, leal amada necessária, luz e bálsamo, então acontece com todos os bemóis do sentimento para acender a alma lírica, com suas tonalidades humanas e sons do coração batendo em dó, e acorda-nos nos apelos de tanto estarmos na ânsia do amor, e nos socorre e ilumina nas zonas obscuras de tudo que guardamos.

              Esse museu de emoções, que Raimundo Gadelha compôs com versos críticos na lembrança, confinados em áspera travessia e nos cômodos ´com os elementos de tempos temerários, reflete a alma tantas vezes sofrida do seu criador. Nesse museu de emoções, que agora se abre para visões e revisões dolorosas da vida, o visitante fica sabendo como nele é que escutamos o quanto cada um de nós conta pelos cantos o seu tanto, suas verdades que entristecem a passagem dos anos no soluço.

              O nordestinado Raimundo Gadelha, radicado há anos em São Paulo, onde desenvolve suas aptidões como editor de livros de literatura, no seu trânsito por ruas e campos de solidão trouxe os quadros necessários para habitar esse museu banhado de gritos em tudo que expõe. Não é um museu composto de quadros exóticos, fotografias curiosas, mas constituído de emoções que atormentam na cobrança do custo alto pela visita, expõe em salas povoadas de duras recordações o sal dos sonhos em que se banha por entre paralelos e meridianos do existir.

 

É inconteste que a geografia e as emoções

tão intensamente vividas no Nordeste

transformaram-se em afetivos elos

que carrego com orgulho por todos esses anos...

          

              Nesse museu, de pungente lirismo, com versos densos armados com o ritmo da saudade incandescente, ciente do que fala seu guardador ressalta que “a família é sempre/ lenta desintegração de nós mesmos.” E nos apresenta, na viagem imaginária que se cruza com o real, lugares que vão ficando para trás. O visitante em pouco tempo toma conhecimento que as vozes do pai do dono do museu desdenhavam das regiões fora do mapa de sua afetividade enraizada no agreste do sertão, do exterior nem queria que falassem. Em sua inquieta passagem por uma paisagem particular, elencada de relações profundas com a vida, ordenava que se pusesse nela os anúncios de empoeiradas estradas avistadas da boleia de um caminhão.

              Vínculos e dilacerações, inquietações de natureza grave mostram como a vida é aqui insone, não se compraz com o romantismo que simula o real tecido e acontecido nas desilusões. Há no autor poeta desse museu, assim imerso em tempo, vida e solidão, certa   unidade de corpo viajante gotejado de suor e alma inteirada de verdades, crenças e desvivências, que emergem sem máscaras de um mundo agudo com as impressões fincadas na saudade, que por sua vez se amolda ao som e à fúria de uma poética que fere e não cura, como se fosse só tristeza batendo no tambor da excursão que deixou tudo para trás. Noutro lance, o visitante, leia-se leitor, também vê pendurado no armário do velho guarda-roupa o vestido que o dono do museu distante enviou para a mãe no Natal. Doeu-lhe a oferenda. Era estranho imaginar como a mãe ficou no Natal no vestido que nunca viu e que nem mesmo sabia a cor, com o seu dinheiro foi a irmã que o comprou.  

             Em “Cigano”, poema como de resto escrito com a alquimia sensitiva do verbo que nos une aos sonhos, o visitante tem a oportunidade de constatar que o arquiteto desse museu por entre solidões imaginadas e a realidade dura que se esvai nos anos está partido em dois como um ser ambulante do tempo que em tudo permanece.    

 

Um é o ser que se foi e hoje é só memória

e este outro presente e preso,

a todo instante ao passado estanque

vislumbrando o obscuro futuro.

 

           Todos os seus propósitos guardados na nostalgia como alento, o poeta Raimundo Gadelha, guardador de tristezas e tormentos, na miragem reinventa.  Coisas com o respiro da memória, seres que não descansam na formação de ideais, expectantes esperanças dissolvidas nos sentidos, intuições na alma como simulações perfeitas, capas espessas nas camadas com achados certeiros, tudo isso nesse museu com as suas vozes debatendo-se na paixão como se fosse “centopeia de abismos grafados no espelho”. Visível assim nesse museu com suas circunstâncias vitais o mundo fugaz surge transformado em ausências, solidões que adormecem sem carinho. Beijos na memória acendem o coração no esquecimento do viver, tudo que em verdade se foi, e possivelmente será.

         

Num instante a tarde se vai e vem a certeza

de que o mundo que existe lá fora encolheu.

Triste faço da casa museu de mim mesmo

e nele coloco pedaços do que fui

para melhor entender quem sou.

 

              Com esses versos afixados na parede de uma das galerias, o visitante percebe, em sua passagem por tantas miradas do sofrer, que viver é como morrer a cada instante, tudo se resume nesse vento que passou aqui e logo desapareceu no mistério com a dureza das ausências. O que foi, o que é, o que será esvaem-se nas horas com a duração de um mesmo instante. A propósito é preciso uma explicação a essa altura da visita. Não se espere, numa  visita de ausência e nostalgia, um museu com o tempo habitado de ternuras na cadência generosa da vida, pois não terá êxito o visitante, se vozes, sons e cores foram diluídos com pesares onde viveu a esperança. Os gritos que permanecem como mudos gemidos no tempo-espaço ecoam no salão onde foi erguido o sonho impossível em transe, como nuvens manchadas de sentimentos delirantes, atormentados, que dissimulando feridas fazem chover os dias como dores incansáveis. 

               De fato, esse museu não está estagnado, é um espaço onde se cabem outras porções de poesia, fazendo-nos pensar. Através de fortes desenhos da vida, expressa todo o peso terrestre do que está escurecido nos porões e nos desvios com as horas intranquilas. Nesse aspecto, o peso que ele traz com o seu luto faz com que o visitante encontre por trás de negras camadas espessas de solidão o que existiu outrora na brancura. Por isso esse museu que revela agruras agudas com a palavra fervorosa veste-se também na roupagem dos desenhos de outro poeta, dono de um timbre impregnado de tristeza, discurso sustentado por solidões solidárias, sensibilidade apurada que ressoa na beleza das letras brasileiras. As ilustrações de Álvaro Alves de Faria, agora como poeta do desenho, permitem adivinhar que há nesse museu a noite de estrelas apagadas, o dia ausente de amores, que assim se cobriu com um sol de feição obscura. Um sol que não mais pinta os desertos com as cores do mundo iluminado. Empretecido, tudo nele é como fuga, que faz sumir ternuras, num só tempo é sem afagos quando os seus raios deviam ser o amanhecer em vento ameno para cobrir os seres e as coisas com a sua flor enorme.

              A vida refugiou-se na memória que faz pulsar o coração desse museu. Apresenta-se vestida com a túnica versátil dos rumores encobertos por essas ilustrações imersas no negrume silente do seu forte simbolismo, destacando que ele possui uma alma que resvala no espelho oculto: com suas considerações e pulsações de tudo que serve de alimento da alma não brilha de alegria, embora enriqueça a parte noturna do que somos. Pode até ser dolorosa a mensagem que se encontra nesse museu do poeta Raimundo Gadelha, revestido com as figuras obscuras manchadas de saudade e solidão nos desenhos pesados de Álvaro Alves de Faria, mas quem nele adentra não pode deixar de considerar as surpresas produzidas por grave poesia, temperada com adeuses soprados com os ventos da angústia.  Fica o proveito em quem o visita e sabe que sem esses ventos, versos viáveis nos amores tantos, apesar de doloridos, não há o sentido que queremos ter da existência.      

             Não se logra respirar circunstâncias vitais que se juntam e apontam para estes bramidos constantes, de dúvidas e silêncios, enredos em subterrânea melancolia do tempo migrado para o que fica guardado em nossos anos de pesar. No condicional possível que come os desejos, no colosso obsessivo da certeza de que todos somos um, pleno de incompletudes e contradições, nos diálogos frequentes com a vida movimentada no caos ordenado por estrofes amalgamadas de solidões, entre sonhos e abismos. 

 

*Cyro de Mattos é ficcionista, poeta e ensaísta. Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia)

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