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quarta-feira, 14 de outubro de 2020

AGORA SOU ESPERANÇA – Dinah Silveira de Queiroz



Eu venho do existir mas não ainda da Esperança, e agora sou Esperança. Do infinito painel da Eternidade, do ontem, do hoje, do amanhã, eis que amanheço. Há quantos séculos, há quantos milhares de anos me esperavam aqueles seres nas regiões a que chegavam, depois da morte? Vinham, volteavam. Moviam-se lentos, obscuros, uns agarrados a outros, no cinzento de suas meias vidas, como esboços de homens. Eu lhes trazia a cor, a Esperança. Eles seriam desatados e partiriam para sempre à convivência da mansão de meu Pai, onde há moradas para todos os justos. Eles não sabiam do tempo. Eles se moviam num plano em que se entrelaçavam todas as vidas e todas as gerações. Mas eles sofriam da fome e da sede da vida eterna, da qual eram apenas sombras físicas, como o princípio da vida no seio da mãe. E se tornariam coloridos, vivos e amanheceria nessas regiões do Limbo, àquela hora em que lá estivesse, em suas moradas, para levá-los ao Pai. Eles vinham do negro, do cinzento, para o amarelo, o vermelho e o branco refulgente. Eles vinham para mim e haviam guardado a liberdade em seu mimado mundo que os vivos desconheciam. E lhes entreguei a salvação; e puderam participar do banquete e da alegria de tornar à casa do Pai. Haverá maior felicidade do que a volta à casa de onde viemos, com amor?

Eu pertencia à vida dos anjos, ao mundo que está além das sombras. Mas eu devia voltar e cumprir minha promessa. Desfiz-me da comunhão estreita das almas, do enlace supremo; eu desceria novamente à Terra, mas já não seria como dantes. E eu voltei ao lugar onde me haviam amortalhado: o sepulcro de José de Arimatéia.

Já rompia o sol e uma jovem mulher, aquela a quem curei em corpo e espírito, avançava em direção do sepulcro do qual eu emergia. Para trás, ficavam suas companheiras. Abriu Maria de Magdala a porta do jardim que os guardas do túmulo haviam fechado. Ela caminhou até o subterrâneo, ao fundo do qual deveria estar meu corpo destroçado. Um pouco de luz filtrava pela abóbada da construção, mas, para ela, que desconsolo! O corpo de quem chamara sempre de Mestre, aquele a quem houvera seguido por caminhos e pregações, já não estava mais lá. Como suas companheiras ainda não haviam chegado, para elas voltou:

- Levaram o Senhor! Levaram o Senhor!

Desarvoradas, as mulheres agora comprovavam o que Maria de Magdala havia dito: sobre a lousa já não estão mais meus despojos. Mas os olhos dessas mulheres de repente se alargam de espanto. Ali, com a luz da madrugada, luzes outras envolvem visões sobrenaturais. Agora, eles, os anjos, bem aparecem em cada lado do lugar onde repousava meu corpo flagelado. E as minhas testemunhas - pois eram dois os mensageiros, e para meu povo só valiam dois testemunhos ou mais - bem lhes perguntavam:

- Por que buscais entre os mortos aquele que está vivo? Ressuscitou, conforme predisse. Recordai as palavras ditas na Galileia: - É preciso que o Filho do Homem seja entregue às mãos dos homens, seja crucificado e ressuscite ao terceiro dia. Ide pois e dizei a Pedro e aos demais discípulos que ele mesmo aguardará na Galileia. Ali o vereis, segundo sua promessa.

E vieram os discípulos e viram vazio o meu sepulcro. João e Pedro acreditaram, então, firmemente na Ressurreição, e saíram daquele lugar meditando nas palavras a eles transmitidas pelas mulheres. E talvez não tenham, no momento, dado atenção, ali no jardim, a uma criança chorando pelo pai, guardando a sepultura, a mais humilde entre todas. Estava ali a mulher que um dia vi elevar-se e purificar-se: Maria de Magdala. estava trespassada por sua dor imensa e queria estar ali, gemendo e chorando, bebendo o seu pranto, como o fazem as crianças, quando não são acalentadas. Pelo jardim, agora ela vê um homem vestido de branco a atravessar um pequeno caminho. Agrada-me surpreendê-la:

- Mulher, por que choras? A quem buscas?

E já era tão modificado o meu todo que Maria não me reconheceu, supondo que eu era o jardineiro. Eu a conhecera criança, ela me vira e acompanhara por todos os anos de pregação, mas ali meu semblante tinha marcas desconhecidas de sua convivência.

- Senhor, disse-me ela, - se o haveis tirado daí, dizei-me onde o pusestes e eu irei buscá-lo e o levarei comigo.

Então, eu a nomeei por seu próprio nome: Maria. Seu rosto se transtornou. Sua entrega ao momento quase a abateu. E me reconheceu e arrojou-se a meus pés:

- Meu Senhor! Meu Senhor!

E me beijava os pés.

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Perguntariam mais tarde os apóstolos por que à Maria de Magdala eu apareceria em primeiro lugar, na reconciliação e na redenção do pecado. Fi-la levantar-se:

- Não pertenço mais à Terra. Em breve me distanciarei de todos para voltar a meu Pai que é também vosso Pai. A meu Deus que é também vosso Deus.

E ela não mais me viu. E o horto ficou deserto e só o canto dos pássaros lhe fizeram companhia, o bulir das árvores e a graça da manhã, manhã de Páscoa, a que me recebera.

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Porque eram homens, havia entre eles o ciúme dos homens. E meus discípulos levariam muito tempo a perguntar: - "Por que, por que, o Senhor, à Maria Magdala apareceu primeiro?" E se a seu lado, de Pedro, de João, de Tiago, de André, eu estivesse em pessoa, na carne que vesti, poderia responder, como agora vos digo a vós em meu Memorial:

- Porque no jogo infinito do amor eterno existe a mesma natureza de qualquer amor humano, que perdoa, e tanto mais ama quanto mais perdoa.


(Memorial de Cristo II, Eu, Jesus, 1977.)

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Dinah Silveira de Queiroz
- Sétima ocupante da Cadeira 7 da ABL, eleita em 10 de julho de 1980, na sucessão de Pontes de Miranda e recebida pelo Acadêmico Raymundo Magalhães Júnior em 7 de abril de 1981.

 

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