A Casa de Heloísa Prazeres
Cyro de Mattos
Depois da
estreia com Pequena História (2014), antologia pessoal, a baiana (de
Itabuna) Heloísa Prazeres retoma seu
processo poético com um segundo volume, A casa onde habitamos (2016), formado de consistente união entre inspiração
e transpiração, intuições e reflexões,
imaginações e registros. Nesse segundo
volume, com a ilustração da fotografia
de Jamison Pedra, a poeta usa a palavra
simbolizada para metamorfosear o discurso da vida como resultado de trabalhos
de bastidor, achados nas zonas suspensas do sonho, fiações de interiores sob o
teto da terra, memórias para alcançar o
entendimento no mesmo chão de suas origens.
Há nos
oitenta e dois poemas que compõem essa casa, tecida com o labor do sonho, um
ritmo que conduz a ideia através de versos bem construídos para o preenchimento dos vazios no mundo. Assim,
nos domínios onde a atribuição a um autor é a boa literatura mesclada com
instrumental crítico suficiente, o emprego de linguagem eficaz deixa ver que aqui estamos diante de uma construção
poética segura, de signo adornado pelo
som na cadência musical própria do poema,
que diz de emoções chegando da
memória ou da razão, como se fossem sensações que na imagem iluminam o
ser.
Numa lírica moderna ressoa o uso do vocábulo
estrangeiro, a referência a poetas e escritores de
predileção pessoal, mas em especial o
tempo que, na alma enlaçando afetos e afinidades, busca outro tempo, marcado através de experiências, revelações tantas perante a existência. Dividido em quatro partes, Trabalhos de
Bastidor, Antessala de Sonho, Sob o Teto
da Terra e Mesmo Chão, podemos dizer que, nessa casa onde o eu lírico traça
projetos efêmeros ante o eterno que perdura, a chave para o seu conhecimento,
distribuído em compartimentos delimitados pelo assunto ou tema, que homenageia à vida, está na epígrafe de Sophia de Mello Breyner
Andresen, tão esplêndida poeta portuguesa quanto luminosa contista, quando diz:
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo
Quando a
reconstrução do mundo no verso é convincente,
faz pensar logo como a vida é falha, repleta de contradições dentro de
certo peso que impõe suas vozes agudas permeadas da ambiguidade na passagem do tempo. Sendo
falha, para equilibrar-se nos vazios, o poeta
recorre à linguagem literária
para inaugurar novos sentidos, lembrando
assim que na quimera e na divagação, na
pureza de dicção superior, criativa, a
vida torna-se viável. Utiliza por isso
lições plasmadas em linguagem
específica para discorrer sobre o
espanto da vida e assim prosseguir na
litania do verso, que em si mesmo se
sustenta e encanta.
O poeta
quer dizer com isso que o seu gesto de ler o mundo põe claridade nas partes
escuras que ocultam o mundo. O verso
supre a deficiência crítica, repleta de limitações, que envolve aos humanos perante a experiência
da vida em que entra a solidão, o tédio, o azar
e a tristeza. Embora existam as
flores, sabe-se que elas somem, mal surgem. Ao
poeta Heloísa Prazeres, o milagre
para que sempre sobrevivam consiste em vê-las com a sua teimosia no deserto, em
tácito entendimento das altiplanas
montanhas de Nevada, como as
encontramos no afetuoso “Poema para os meus Amigos”. Lembre-se então que,
ressoando larguras e profunduras,
em mínimas cosmovisões de
ternuras, disse Neruda que a flor da
alma na alma flora.
Na geografia
íntima da casa abandonada, Heloísa
Prazeres não sabe “dizer se
havia/consentimentos, apelos/de viagens dominavam/ vontades. Seguro apenas/ o
mandato da aventura.” E, porque o desafio consiste em ultrapassar a aventura do
viver, o tempo dos legítimos poetas é
outro. Decide-se com os reclamos da alma, rumores urdidos com “mala fixa e estética”, emoções e conceitos movendo sempre a
permanência de surpresas, cismas e perplexidades. É o que percebemos, por exemplo, no discurso singular do poema “Trópico do Capricórnio”.
Até mesmo no
poema “Familiar”, os versos livres de Heloísa Prazeres, quase automáticos, de
uma rapidez e visibilidade, síntese e concisão, como quer Italo Calvino, fixam a cena com assunto moderno, extraído do
mundo internético de hoje, o qual, instalado
no grupo, faz com que cada um fique hipnotizado no seu recurso, na
cerimônia ao deus TIC - Tecnologia da Informação e Divulgação.
Esse modo de
estruturar o verso nos tempos de hoje, embalado do eletrônico que não se ajusta ao sol na manhã com esperança, só comprova que nessa casa de Heloísa Prazeres, aqui e agora,
com leveza e graça, densidade e clareza,
a poesia está em tudo. O poema não
engole o poeta quando provido de
linguagem adequada e percepção do mundo.
......
Cyro de Mattos,
escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual
de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do
Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Autor
premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.
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