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terça-feira, 4 de julho de 2017

A CASA DE HELOÍSA PRAZERES - Cyro de Mattos

A Casa de Heloísa Prazeres
Cyro de Mattos
                                             

          Depois da estreia com Pequena História (2014), antologia pessoal, a baiana (de Itabuna)  Heloísa Prazeres retoma seu processo poético com um segundo volume, A casa onde habitamos (2016),  formado de consistente união entre inspiração e transpiração,  intuições e reflexões, imaginações  e registros. Nesse segundo volume, com a  ilustração da fotografia de  Jamison Pedra, a poeta usa a palavra simbolizada para metamorfosear o discurso da vida como resultado de trabalhos de bastidor, achados nas zonas suspensas do sonho, fiações de interiores sob o teto da terra, memórias para alcançar o  entendimento no mesmo chão de suas origens. 

            Há nos oitenta e dois poemas que compõem essa casa, tecida com o labor do sonho, um ritmo que conduz a ideia através de versos bem construídos para  o preenchimento dos vazios no mundo. Assim, nos domínios onde a atribuição a um autor é a boa literatura mesclada com instrumental crítico suficiente, o emprego de linguagem eficaz deixa  ver que aqui estamos diante de uma construção poética  segura, de signo adornado pelo som na cadência musical própria do poema,  que diz de emoções chegando da  memória ou da razão, como se fossem sensações que na imagem iluminam o ser.
   
          Numa lírica moderna ressoa o uso do vocábulo estrangeiro,  a  referência a poetas e escritores de predileção pessoal, mas  em especial o tempo que, na alma enlaçando afetos e afinidades,  busca outro tempo, marcado  através de experiências,  revelações tantas  perante a existência. Dividido em quatro partes, Trabalhos de Bastidor, Antessala de Sonho,  Sob o Teto da Terra e Mesmo Chão, podemos dizer que, nessa casa onde o eu lírico traça projetos efêmeros ante o eterno que perdura, a chave para o seu conhecimento, distribuído em compartimentos delimitados pelo assunto  ou tema, que homenageia à vida,   está na epígrafe de Sophia de Mello Breyner Andresen, tão esplêndida poeta portuguesa quanto luminosa contista, quando diz:

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo
               
         Quando a reconstrução do mundo no verso é convincente,  faz pensar logo como a vida é falha, repleta de contradições dentro de certo peso que impõe suas vozes agudas permeadas da  ambiguidade na passagem do tempo. Sendo falha, para equilibrar-se nos vazios, o poeta  recorre à   linguagem literária para inaugurar  novos sentidos, lembrando assim que na quimera  e na divagação, na pureza  de dicção superior, criativa, a vida torna-se viável. Utiliza por isso  lições plasmadas em  linguagem específica para discorrer  sobre o espanto da vida e assim prosseguir     na litania do verso,  que em si mesmo se sustenta e encanta.
 
              O poeta quer dizer com isso que o seu gesto de ler o mundo põe claridade nas partes escuras  que ocultam o mundo. O verso supre a deficiência crítica, repleta de limitações,  que envolve aos humanos perante a experiência da vida em que entra a solidão, o tédio, o azar  e a tristeza.  Embora existam as flores, sabe-se que elas somem, mal surgem. Ao  poeta Heloísa Prazeres, o  milagre para que sempre sobrevivam consiste em vê-las com a sua teimosia no deserto, em tácito entendimento das altiplanas  montanhas de Nevada,  como as encontramos no afetuoso “Poema para os meus Amigos”. Lembre-se então que, ressoando larguras e profunduras,  em  mínimas cosmovisões de ternuras, disse  Neruda que a flor da alma na alma flora.

          Na geografia íntima da casa abandonada,  Heloísa Prazeres  não sabe “dizer se havia/consentimentos, apelos/de viagens dominavam/ vontades. Seguro apenas/ o mandato da aventura.” E, porque o desafio consiste em ultrapassar a aventura do viver, o  tempo dos legítimos poetas é outro. Decide-se com os reclamos da alma, rumores urdidos  com “mala fixa e estética”,  emoções e conceitos movendo sempre a permanência de surpresas, cismas e perplexidades.  É o que percebemos, por exemplo,  no discurso singular do poema  “Trópico do Capricórnio”.

         Até mesmo no poema “Familiar”, os versos livres de Heloísa Prazeres, quase automáticos, de uma rapidez e visibilidade, síntese e concisão, como quer Italo Calvino,  fixam a cena com assunto moderno, extraído do mundo internético de hoje, o qual, instalado  no grupo, faz com que cada um fique hipnotizado no seu recurso, na cerimônia ao deus TIC - Tecnologia da Informação e Divulgação.

        Esse modo de estruturar o verso nos tempos de hoje, embalado do eletrônico  que não se ajusta ao sol  na manhã com esperança,  só comprova que  nessa casa de Heloísa Prazeres, aqui e agora, com leveza e graça,  densidade e clareza, a poesia está em tudo. O  poema não engole o poeta quando  provido de linguagem adequada e percepção  do mundo.

......

Cyro de Mattos,  escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Autor premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.

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