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domingo, 25 de outubro de 2020

FLÁVIO E ELZA – Dinah Silveira de Queiroz


Cobria-se a Serra de flores. Correu primeiro um balbucio de primavera. Seria já a florada? Botões, aqueles pequenos sinais? No meio dos bosques escondidos entre os montes, o amarelo e o vermelho salpicavam, abriam no verde sorridente espanto. Em lugares mais resguardados, mais favorecidos, em breve surgia a neve florida cobrindo as pereiras e transformando, enriquecendo a paisagem. E logo também floriram os pessegueiros. Junto das favelas, nos parques dos sanatórios, rodeando os bangalôs, à beira das águas mansas, a florada em rosa e branco apontou finalmente, luminosa, irreal.

Perto do pequeno lago em que se debruçavam as pereiras alvas, encantadas, o pintor armou o cavalete. Tocados de primavera, os galhos roçavam a água que reproduzia a fila das árvores. Amarrada à margem, a pequena canoa envernizada, vazia, estava juncada de flores que o vento carregara.

Elza surpreendeu Flávio pintando com aquele entusiasmo e fervor. Tocou-lhe no ombro.

Espere um pouco.

- Você pediu licença para pintar aqui?

- Claro, disse Flávio sem olhá-la. Deixe-me acabar uma coisa.

Elza passeou uns momentos pelas alamedas, depois voltou, esteve a contemplar Flávio de costas. Vestia malha acinzentada descobrindo a nuca vermelha. As mangas arregaçadas deixavam ver o braço queimado de sol, com veias salientes. Elza aproximou-se, olhou-o de perfil. Sempre aquela maneira nervosa de morder o lábio! Antes lhe dava ele tanta impressão de força, de saúde. Mas agora apreendera o desmentido daquele empastamento, daquelas rugazinhas quase invisíveis junto dos olhos, daquela curva dos ombros cansados precocemente.

- Que é que você olhando?

- Você.

Levantou-se, desarmou a tela, guardou a tinta e pincéis, vagarosamente, limpou os dedos. Enxugou o rosto suado.

- É mesmo maravilhosa a florada aqui. Você tinha razão.

Elza apanhou um pequeno galho, fez uma coroa, colocou-a em cima da cabeça.

- Você já viu grinalda mais linda?

- Linda, disse ele, olhando-a muito sério. Tão linda que receio que desapareça. Parece que a estou vendo, coroada de flores, subindo um altar...

Apanhou um galho, outro, outro mais, fez um imenso ramo, encheu-lhe os braços de flores.

- Não se mova. Assim.

Esteve a contemplá-la. Depois, subitamente, mudou de humor, encostou-se a um pinheiro com um repentino enervamento.

- Que é que você tem, Flávio?

Atirou as flores ao chão. Chegou-se a ele, muito perto. O rapaz desviou os olhos.

- Nada, disse por entre dentes. Nada a não ser um cansaço... Cansaço de mim mesmo, que de vez em quando me vem. É preciso muito esforço para construir uma lenda e viver dentro dela... Já estou cansado.

- Lenda por que, Flávio? Se a doença o impediu de seguir a carreira escolhida, também não criou em você um artista, que com certeza não teria existido, se não tivesse esta vida isolada?

- Artista...

A sua voz soou amargamente.

- Artista... Viver aqui sonhando que faço obras-primas. Prodígio de auto-sugestão! E ainda mais...

Riu um pouco fino.

- Construir em você uma outra criatura, afeiçoar-me a ela sem querer olhar, ver afinal a verdadeira...

Os lábios de Elza tremeram. Esperara sempre por aquilo, mas apesar disso, fugiu-lhe a calma.

- Por que não quer a verdadeira? Será assim tão cheia de defeitos, tão incompleta para ser querida?

Sentiu-se atingida dolorosamente no íntimo. Com voz aguda prosseguiu:

- Tudo porque sarei. Desde que o Dr. Celso apregoou a minha cura, que vocês me detestam. Sim, não negue. Para quê?

Lágrimas queimaram-lhe as faces.

- Você e Lucília... Com toda a certeza julgam que estou cometendo uma traição. Quando falo em minha casa, no prazer de rever as minhas criaturas queridas, ofendo a vocês...

Com a ponta do sapato Flávio esmagava pequeninas plantas, num movimento obstinado.

- Elza...

Pegou-lhe o braço.

- Quer que me alegre, me envaideça...

Riu excitado, nervoso.

- ... por mandá-la de volta para o seu noivo?

- Você nunca falou nele.

- Ah... era um perigo longínquo.

Ainda é, disse Elza, penetrando os olhos de Flávio. Está longe. Está na Inglaterra.

- Mas volta, volta breve para você. Como a imaginei há pouco... Numa igreja toda iluminada, linda como uma imagem e pelo braço dele...

Olhou-a de perto com os olhos apertados, maldosos.

Beijos não deixam marca, felizmente para você.

- Flávio!

Elza empalideceu.

- Por que mudou assim? Por que esse ódio?

Teve uma imensa vontade de fugir. Sentiu a vista turva. Voltou-lhe as costas. Encaminhou-se para o portão. Pisava um mundo fantástico e desconhecido, com uma angústia de fugitiva. Quando atingiu a saída, Flávio puxou-a pela mão. Elza resistiu. "Ouvira demais, não havia dúvida", dizia com uma voz fria que a si mesma assombrava.

- Escute... Você há de se arrepender a vida toda, se não me ouvir.

Ela resistia, procurava retirar a mão, vibrante, nervosa, toda rosada. Ele largou-lhe a mão. Elza abriu resolutamente o portão, mas, antes que passasse à estrada, sentiu-se presa pela cintura.

- Não adianta teimar, disse Flávio. Você tem que me ouvir.

Guiou-a até junto a uma pereira florida, Encostou-a nela. Com as mãos coladas ao tronco da árvore, junto dos seus braços, prendeu-a:

- Sei a idéia que fazia de mim... Um fraco. Um fraco de corpo e de espírito. E está muito admirada com a minha atitude. Então você não compreende como essa separação é cruel, é desumana? Crê que eu não tenho nervos? Vê-la de volta para retomar a mesma vida de há um ano...

- Deixe-me.

Os braços e Flávio caíram.

- Você não sabe lutar pelo que quer? Você me quer realmente? disse Elza com profunda emoção.

- Quero-lhe, como nunca foi nem será querida por outra pessoa.

A sua voz se tornava mais lenta, bizarramente pausada, e como que envelhecida.

- Toda a minha vida, toda a minha esperança eu ponho em você. Não tenho ninguém que me queira, e ao cabo de tanto tempo minha família já se distanciou de mim. Tenho amizades que duram pouco. Iludi-me a mim mesmo criando em você uma companheira de solidão. Nada lhe podia oferecer senão esse mundo de amor e de ternura disperso nos outros homens, mas que eu conservo intacto para você. Afundei-me tanto na nossa felicidade futura que a vivi quase. Agora... vejo as coisas friamente. Você curada, pronta a retomar o fio interrompido das suas relações, das suas amizades, e eu aqui... preso para sempre.

Contraiu a fisionomia, cerrou os punhos, sacudiu os ombros, encostou-se ao lado oposto da árvore, com a cabeça repousando nos braços cruzados.

Elza tocou-lhe no ombro.

- Você há de ficar bom. Há de descer um dia curado. Seremos felizes como toda a gente.

- Não sente o que diz... Não sente...

Olhou-a com os olhos vermelhos.

- Deixe-me descer com a lembrança do seu carinho, da sua companhia. Espere um tempo... Talvez possa descer, esteja curado. Talvez eu tenha que subir, adoeça de novo.

Um pequeno galho em que o vento bulira prendeu o cabelo de Elza. Ela puxou a cabeça, desprendeu-se. Uma chuva de flores caiu sobre eles. Flávio esteve a vê-la agitando os cabelos, sacudindo o vestido, atirando as flores ao chão. Tomou-a bruscamente nos braços. Inclinou a cabeça, olhou de perto, cada vez mais perto, aqueles lábios úmidos que se descerravam. Esteve assim, sentindo-lhe a respiração e contemplando o rosto adorado. Uma abelha zumbiu pertinho. Ele inclinou-se ainda mais, ia tocar naqueles lábios que esperavam o beijo, mas largou Elza subitamente.

- Não devo beijá-la. Vamos embora.


 (Floradas na serra, capítulo 39, 1939.)

 https://www.academia.org.br

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Dinah Silveira de Queiroz - Sétima ocupante da Cadeira 7 da ABL, eleita em 10 de julho de 1980, na sucessão de Pontes de Miranda e recebida pelo Acadêmico Raymundo Magalhães Júnior em 7 de abril de 1981.

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (207)


30º Domingo do Tempo Comum – 25/10/2020


Anúncio do Evangelho (Mt 22,34-40)

— O Senhor esteja convosco.

— Ele está no meio de nós!

— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Mateus.

— Glória a vós, Senhor!

Naquele tempo, os fariseus ouviram dizer que Jesus tinha feito calar os saduceus. Então eles se reuniram em grupo, e um deles perguntou a Jesus, para experimentá-lo: “Mestre, qual é o maior mandamento da Lei?”

Jesus respondeu: “‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma, de todo o teu entendimento!’ Esse é o maior e o primeiro mandamento. O segundo é semelhante a esse: ‘Amarás ao teu próximo como a ti mesmo’. Toda a Lei e os profetas dependem desses dois mandamentos”.

— Palavra da Salvação.

— Glória a vós, Senhor.

https://liturgia.cancaonova.com/pb/

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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Pe Donizetti de Brito:


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No amor, nada é obrigação, tudo é dom!

 


       “Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração...”;

“amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Mt 22,37-39)

 

Segundo o teólogo Yves Congar “a essência do farisaísmo é absolutizar coisas secundárias”. E disso todos temos experiências: muitas vezes, a nossa vivência cristã está mais focada nos ritos, nas doutrinas, nas normas morais..., e isso acaba atrofiando aquilo que é mais decisivo no seguimento de Jesus Cristo.

Quando nos afastamos do essencial, facilmente nos desviamos para os caminhos da mediocridade piedosa, do ritualismo estéril ou da casuística moral, que não só nos incapacitam para uma relação sadia com Deus, mas nos esvaziam dos sentimentos mais humanos, desfigurando-nos e nos fechando no intimismo que rompe toda proximidade e comunhão com os outros. Todos corremos este risco.

A cena relatada pelo evangelho deste domingo (30o Dom. Tempo comum) tem, como pano de fundo, uma atmosfera religiosa na qual os mestres e letrados classificam centenas de normas da Lei divina em “fáceis” e “difíceis”, “graves” e “leves”, “pequenas” e “grandes”. Impossível mover-se com um coração sadio nesta “teia” de leis.

Diante da pergunta dos fariseus pelo maior mandamento da Lei, Jesus rompe com aquilo que eles tão bem tinham aprendido. Ele acolhe a pergunta que lhe fora feita e aproveita para recuperar o essencial, descobrir o “espírito perdido”: qual é o mandamento principal? onde está o núcleo de tudo?

A resposta de Jesus parte da experiência básica de Israel, onde o coração da fé é o amor: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e de todo o teu entendimento”. 

O primeiro mandamento do decálogo bíblico, confirmado por Jesus, antes que imperativo, é revelação; antes que uma ordem, é uma proclamação. Não impõe a obrigação de amar a um “deus” separado, ciumento de sua honra, que se assemelharia a um soberano narcisista e vaidoso. Uma tal caricatura de “deus”, fruto da projeção humana e condicionada por falsas imagens míticas, se torna claramente blasfema. É um dos “deuses” que precisamos “deletar”.

O “primeiro mandamento” revela algo fundamental, do qual a Bíblia irá tomando consciência progressivamente, até chegar a proclamar com intensidade: “Deus é Amor” (1Jo 4,8). Deus, na sua essência, é puro Amor. Daqui se derivam, como em cascata, toda uma torrente de consequências.

Crer é uma questão de amor, e isso significa que, antes de qualquer outra coisa, o fiel se percebe, em seu núcleo mais íntimo, ser e proceder do Amor. Aquele “em quem vivemos, nos movemos e existimos” (Atos 17,28) é Amor. A fé é, antes de mais nada, experiência de ser amado, que leva a deixar-se alcançar e impregnar mais e mais por esse dinamismo do amor, para descansar nele e possibilitar que ele flua e circule, compassiva e eficazmente, para os outros. Portanto, o essencial da vida é o amor.

O que define o cristão não é dizer “Senhor, Senhor”, mas viver a prática compassiva do “vá e faça o mesmo”. Essa é a razão, também, pela qual a vida e a mensagem de Jesus se condensam na prática do amor. 

O amor (ágape) que Deus tem pelo ser humano é totalmente desinteressado, gratuito e livre. Deus envolve a vida de cada um, banhando-a toda de seu amor. O amor nasce em Deus como um rio imenso que envolve o ser humano, iluminando e transformando sua existência; este não se encontra submetido a uma espécie de exigência tirânica, obrigado a cumprir, no limite de suas forças, alguns mandatos alheios a seu ser. O que lhe é pedido consiste, justamente, no que previamente é oferecido a ele: ele é chamado a ser livre e capaz de corresponder ao amor.

Não é o ser humano que é amável; é Deus que é amor. Esse amor é absolutamente primeiro, ativo e criativo, absolutamente livre: não é determinado pelo valor de quem Ele ama. Todo ser humano encontra-se, assim, envolvido pelo amor criativo e providente de Deus.

Esse amor, ativo e primeiro, suscita na pessoa a gratidão, levando-a a corresponder com um amor-serviço. A paixão por Deus implica compaixão pelo ser humano.

Talvez, o que não tem sido totalmente compreendido é que não são dois mandamentos, mas um só: uma mesma realidade, um mesmo amor e um só mandamento. Aliás, se damos um passo mais além, não precisa existir mandamento algum quando há verdadeiro amor.

O amor é raiz e fruto do coração. S. Irineu convida a nos deixar fazer, a permitir que o amor brote do mais profundo de nós mesmos, a ser homens e mulheres unificados e centrados em Deus.

Característica desse amor: voltado para o serviço; o amor sempre se faz serviço, assim como todo serviço é inspirado e sustentado pelo amor. Trata-se da mística do “serviço por puro amor”. 

Sabemos que o amor é uma das palavras mais desgastadas e, no entanto, continua sendo a palavra fundante e mais importante do vocabulário humano; mais importante que a palavra fé. Segundo Mateus, os que se salvam não são aqueles que creram, mas aqueles que amaram (Mt 25). “No entardecer da vida seremos examinados sobre o amor”, dizia S. João da Cruz.

Criados à imagem e semelhança do Deus Amor, trazemos este mesmo amor gravado nas profundezas do nosso ser. Podemos dizer que o selo mais profundo na pessoa é o “selo do amor”. Logo, o que precisamos é ativar esse selo interior do coração que carrega os estigmas do amor. O coração de toda pessoa traz esta tatuagem de amor nas profundezas de seu ser. Mas, é necessário reativá-lo, atualizá-lo... ajudar cada pessoa a configurar-se como tal, pois cada um chega à maturidade de si mesmo quando compreende que, vivendo esse amor, que leva gravado em seu coração, realiza o amor.

O amor evoca energia, atitude, sentimentos positivos, proximidade, solidariedade, compaixão, empatia, amizade, erotismo... O amor tem muitos registros e, por isso, também muitas linguagens que vão configurando atitudes, hábitos do coração: surpresa, louvor, respeito, ação de graças, união, serviço...

O amor não é algo abstrato, uma palavra oca, gasta de tanto ser usada, mas algo pertencente à atitude relacional, à experiência, à comunicação, às atitudes, aos gestos, aos atos e às palavras. Quando o experimentamos, sabemos de seu dinamismo em nossas vidas e direção em nossas condutas. 

O amor em nossa vida, portanto, é um dom e uma missão. Como dom, é fruto da árvore que cresce em nossa natureza como possibilidade que quer ser atualizada (a maçã é a linguagem amorosa da macieira).

Como missão, o amor é aprendizagem, internalização, maturação e crescimento. A arte de amar é o cume de um processo que flui, dando à pessoa uma das características mais essenciais de sua maturidade.

O amor não é uma lei que se impõe de fora, mas uma resposta pessoal Àquele que é em nós. “Um amor que responde a seu amor”. O amor é “mandamento” porque “emana” de dentro, brota da dimensão mais profunda do nosso ser, morada do Deus Amor. Amar é deixar Deus amar em nós. Pois o Deus que vem ao nosso encontro é amor sem medida e não nosso rival; se o cristianismo tem um sentido – viver o amor - este consiste em tornar mais leve o peso da nossa existência.

Textos bíblicos:   Mt. 22,34-40 

 Na oração: Faça uma leitura das “marcas” do Amor de Deus em sua vida; crie um clima de ação de graças.

- Peça a graça de descobrir profundamente o amor em sua vida. Imagine-se com um cantil ou uma lamparina de azeite percorrendo os caminhos de sua vida, de sua biografia. Ilumina-os, desvelando o amor plantado nos rincões de sua existência: no mais profundo e na superfície de sua história. Pessoas, experiências, circunstâncias, gestos ... Olhe o detalhe, mas também o conjunto de sua existência: você está vivo(a); foi e é amado(a), permanentemente.

- Tome consciência que o Senhor, ao lhe criar, colocou em seu peito um coração capaz de amar. Quê você faz com esse amor, semeado em seu interior?

Peça-lhe que sua presença e seu ser lhe permitam amar mais e melhor. Expanda seu coração: você foi feito para amar. Acolha o amor que recebe e no qual acredita, maior do que você possa pensar, e torne-se canal do amor para os outros, para você mesmo, para Deus.


Pe. Adroaldo Palaoro sj

https://centroloyola.org.br/revista/outras-palavras/espiritualidade/2166-no-amor-nada-e-obrigacao-tudo-e-dom

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