Total de visualizações de página
sexta-feira, 19 de agosto de 2022
O Comilão
Cyro de Mattos
Era um comilão incorrigível. Não passava um dia em que não comesse
por quatro vezes um prato fundo com uma comida apetitosa. Insaciável, constante.
Quando não tinha dinheiro para fazer uma merenda no restaurante, que constava
de um prato fundo com a iguaria farta, vestia a roupa maltrapilha, de pés
descalços, saía para a rua, pedindo, clamando aos transeuntes por um dinheirinho
para comprar alguma coisa, estava se esvaindo de tanto passar fome.
- Um dinheirinho, moço, ainda não comi hoje.
Apertou a barriga com uma cinta de compressão para não dar
na vista que estava com a pança estufada, armazenada de comidas várias.
O bigodudo homem sisudo respondeu:
- Dou-lhe dinheiro grande pra comprar um prato fundo de
comida, se você morder essa pedra e mostrar que está de fato faminto.
Arregalou os olhos, a proposta vinha em boa hora da fome impiedosa.
Prontamente mordeu a pedra como se fosse
um pedaço de carne, bem temperado, refogado no arroz gostoso. Voou da boca
dentes para todos os lados. Cuspiu sangue, deu um grito lancinante. Ficou
chorando, ui, ui, quebrei meus dentes, meu Deus, me socorre, que vou dar um
troço!
De agora em diante passou a ser um comilão mais comedido,
sem farsa nem artimanha.
Fazia apenas duas refeições modestas, diariamente. Não
queria correr o risco de perder a dentadura nova, paga em dez prestações, com
sacrifício do que recebia da aposentadoria modesta.
Cyro de Mattos,
***
A PAIXÃO SEGUNDO CONY - Marco Lucchesi
A Paixão segundo Cony
Li de uma só vez, com duas pausas, se muitas, da
madrugada ao amanhecer, o romance póstumo do inquieto e fascinante Carlos
Heitor Cony. Como quem descobre uma carta não enviada, perdida numa
gaveta entreaberta, sem destinatário – a todos e ninguém –,
consignado, muito embora, o remetente, num jogo de espelhos remissivos.
Faltou pouco para escoimar uma e outra parte, cortes e acréscimos, como
deixou claro, na última revisão, suspensa em 2005, através de um
movimento pendular: frontal e irresoluto, áspero e compassivo. Acenos de
utopia e desencanto, estrela e solidão, no céu escuro deste século.
Livro que flui para o leitor, na lisa superfície da narrativa, mas
que se escreve sob dura condição, áspera e irregular. Legato que
repousa na soma de staccati.
Se a intenção do autor não atinge a totalidade que
impôs a seus papéis – crítico feroz –, a intenção da obra resulta compacta
e orgânica. Diria mesmo autossustentável. Entre as duas intenções, da obra e do
autor, é privilégio de quem lê discernir os domínios da reta e o pontilhado, o
que podia ter sido e o que ficou, na matéria verbal, na música do pensamento. A
última parte, quando cresce a tensão entre ato e potência, surge como
plano-piloto ou diário das personagens, na translúcida beleza, de que cada
fragmento é portador.
A potência de Cony, feita de rocha e magma, segue
irrefutável. O estilo firme, castigado, objetivo. Corte nervoso, dicção
poética. A Paixão é romance de sabor carioca, erudito e popular, sem
linhas divisórias. Vila Isabel, Gávea, Alto da Boa Vista. Cidade que remete a
um programa literário, entre Lima Barreto e Machado de Assis. A rua e o
seminário. Os delírios de Brás Cubas e Policarpo incidem no sonho de
Mateus, não importa se de olhos abertos ou fechados, com deslocamento de
planos, pontos de vista flutuantes, desejos e figuras. Texto primoroso, de
conteúdo latente, que avança, e retrocede, segundo o índice do mistério da
iniquidade, autêntico motor de sua ficção, base de sua razão existencial.
Cony jamais renunciou à dúvida metódica, ao entrechoque do
novo com o antigo, mas sem querelas inúteis: sagrado e profano, utopia e
distopia, Roma tropical, encarnada no Rio, e a outra, latina e metafísica,
segundo uma deriva necessária. Esse entrechoque deu-lhe o sal da rebeldia,
recusa e adesão. Sic et Non, podia ser o seu mote. Sentinela da noite
e dos sentidos: “cuidar do estilo, mantendo unidade da primeira parte, ou
preferir uma incursão declarada ao estilo misterioso e potente das duas
introduções finais, do Orto e do Deserto”. Isto e aquilo, a revisão em
processo, a uni- dade da escrita e o capítulo tomista, aquele da unidade,
ferido, todavia, pelo mistério.
Não faltam hipóteses para explicar a reserva do autor sobre
o romance e sua adesão aos véus do silêncio. Importa referir, contudo, que o
mérito de vir a público é todo de Regina Cony, que tomou a sábia decisão no
auge da pandemia, de publicá-lo. Não como preito restrito à memória do autor,
mas como quem enriquece a literatura brasileira, pela força imanente da paixão,
que é de Cony e de Mateus.
Jornal de Letras de Lisboa, 27/07/2022
https://www.academia.org.br/artigos/paixao-segundo-cony
Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL, eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila , foi recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito Presidente da ABL para o exercício de 2018, 2019, 2020 e 2021.
* * *