Graças à arte somos eternos
Ela ignora o espaço e a morte. O combate pela eternidade terá um
final exitoso se houver uma verticalização na vida, um mergulho na alma, ali
onde, justamente, nasce a chama artística.
Os escritores não ignoram que ao encontrar a “ voz interior” o
texto sai com mais densidade e literariedade. A partir desse momento, não
é mais propriamente o autor, aquele com o nome na capa do livro, a escrever;
antes um narrador travestido de autor, agora o novo dono da caneta ou das
teclas do computador. Uns vão chamar isso de concentração, outros de encontro
com a alma, outros de encontro com o divino, outros ainda de “ possessão”
por um escritor já desaparecido, outros , simplesmente, de técnica inerente ao
ofício de escritor. Todos têm consciência, porém, que o resultado daquele
esforço cognitivo será atemporal.
Equacionar o conflito entre razão e emoção alojado na nossa mente é
encontrar o humanismo. Se não houver o freio da razão só viceja a animalidade.
A emoção deve sair dosada, como passando por um magnífico giclê dosador; muito
afoga, pouco não pega. Ao artista traçar essas linhas demarcatórias ! Linhas
que têm um jogo de cintura de artista para artista. A arte bamboleia sobre essa
demarcação. Para esse traço não há tempo nem espaço.
Ao escrever, em 1516, o seu Sobre o melhor Estado e sobre a nova
ilha Utopia, Thomas Morus cria um lugar diferente daqueles conhecidos por
seus leitores, uma ilha onde não há desequilíbrios sociais e onde reina a
igualdade. Morus retoma o estado ideal de Platão. A fabricação de um outro
mundo basta para revelar os poderes incomensuráveis da arte e , por tabela, da
condição humana. A fabulação de Morus é atemporal. No Sítio do Picapau
Amarelo não se vê um patriarca a dar ordens. A personagem principal é
Dona Benta. Não havia - e nem há, é pena - sociedade assim estruturada, com as
mulheres no leme , pouco importa, vale a imaginação de Monteiro Lobato. O
genial autor hoje padece das opiniões racistas que, por tabela, maculam a
sua obra. Seu Jorge, o iniciante escritor do conto “ O
triunfo”, primeiro conto publicado pela Clarice, bem sabia das dificuldades, do
balizamento, das impossibilidades, da finitude. Mas sabia da possível
eternidade.
Machado de Assis trabalha bastante essa ansiedade advinda das limitações
da condição de homens e mulheres diante do tempo. É que descobrir o real e a
verdade equivale a achar um passaporte para a eternidade, por isso a fixação em
relógios e olhares.
Em Dom Casmurro, por exemplo, a busca da verdade ou do real
levam o narrador a sobrevalorizar os olhos da Capitu na esperança de que
eles sejam objetivos e frios, mas eles também são armas da emoção, por
isso mentirosos. Lembremo-nos que o olhar da Capitu era “oblíquo e
dissimulado”. E até no enterro do “amante”,versão de Bentinho: “Capitu olhou
alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não
admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas.” O tempo também poderia
desvelar a verdade. Daí que o narrador de Memórias Póstumas de Brás
Cubas, do mesmo Machado, não seja “propriamente um autor defunto, mas um
defunto autor, para quem a campa foi outro berço”, como se lê no primeiro
capítulo do admirável e engenhoso romance que, para os historiadores da
literatura, iniciou a fase realista do fundador da Academia Brasileira de
Letras. Ora, para rever a sua vida com objetividade, o narrador se posicionou
fora do tempo e do espaço. Porque ambos relembram com dureza aos seres humanos
a sua finitude.
Como sair então desse impasse angustiante? Lendo o Dom
Casmurro, por exemplo. É que através da arte leitor e autor são atemporais,
logo, eternos.
Facebook/Redes Sociais, 17/07/2023
https://www.academia.org.br/artigos/gracas-arte-somos-eternos
-------------
Godofredo de Oliveira Neto - Sexto
ocupante da Cadeira nº 35, eleito em 9 de junho de 2022, na sucessão de Candido
Mendes de Almeida e recebido em 2 de setembro de 2022 pela Acadêmica Ana Maria
Machado.
* * *