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quarta-feira, 30 de setembro de 2020

ÚLTIMA NOITE EM PETROGRADO – Igor Palykh


     
 
Lizaveta Ivanovna olhou curiosa aquela figura empertigada. Homem persistente esse Oleg Ardalionovitch. Será que agia assim com todas, ou ela era mesmo digna de tanta atenção, tanto assédio... Livros, flores, presentes para o pequeno Feodor, convites para o Teatro, e não sabia mais o que...

            - Então, Lizaveta Ivanovna, - Oleg fixou-a bem no fundo dos olhos – às nove em ponto. Está bem?

            - Ótimo, está certo.

            Lizaveta tentou aparentar algum entusiasmo, mas as palavras saíram insossas, gélidas quase.

            Subiu lentamente a escada, contando os degraus. Pensava no marido. Pobre Mikhail, tão gordo e principalmente tão longe... fizera questão que ela viesse com o garoto passar uns dias em Petrogrado. Ele não poderia ficar, viria apenas buscá-los. Depois, o Hotel era ótimo e não faltariam oportunidades para ela e Feodor divertirem-se um pouco, mudarem de ares...

            Abriu a porta do quarto, deixou-o na penumbra. Deitou-se vestida mesmo. Um leve torpor invadiu-a. Estava bom ali. Quente, agradável. Deslizou as mãos pelo corpo, pela cintura, pelas coxas; subiu vagarosamente até os seios, duros, bem duros ainda; capazes de fazer inveja a muitas mocinhas de dezessete anos.

            Levantou-se. Acendeu a luz. Começou a despir-se. Olhava com carinho, quase com cobiça as próprias formas. Tirou a blusa. Estava branca, muito branca, alva, cor de leite. Desapertou o espartilho. Os seios saltaram rebeldes, volumosos, eretos, para fora. Deixou cair a saia, jogou com um gesto cheio de coqueteria a camisa no espaldar daquela horrível cadeira negra. Sorriu da própria audácia. Estava quase nua. Volteou em frente ao espelho. Corpo bem feito. Coxas bem torneadas, penugens escuras sobressaíam embaixo da calcinha clara e teimosamente mostravam suas pontas irreverentes junto à junção das pernas.

            Apenas mais algumas horas em Petrogrado e depois de novo a vidinha melancólica e triste da Província. O “samovar” de sempre e os indefectíveis mexericos de todas as tardes... Até que o empertigado Oleg Ardalionovotch não parecia tão horrível naquele momento. Se essa noite, a última noite na cidade grande ele ousasse... Talvez... Quem sabe... Se fosse nesse mesmo momento, não teria dúvidas. À noite... Bem, tudo seria uma questão de tato...

            Passavam às margens do Neva. Tudo gelado. Doía a vista a brancura do gelo. O porto todo duro. Os guindastes parados formavam figuras grotescas, sombrias, furando a névoa cinzenta. A velha e magnífica Catedral de Kazan surgiu imponente, à direita; a névoa respeitava seu aspecto senhorial e mantinha-se à distância, aureolando-a apenas...

            Lizaveta sentiu a mão de Oleg Ardalionovitch pousar, a medo, sobre a sua. Olhou-o e não retirou a mão. A carruagem estacou um momento, uns transeuntes passavam, depois prossegui mais rápida.

            Oleg pensava depressa: “Se entrarmos no Teatro, quase tudo estará perdido. O trem parte bem cedo e ela não poderá recolher-se muito tarde; depois, existe o garoto, e acho que a sua resistência não está suficientemente minada; é preciso agir já”.

            Ordenou ao cocheiro que parasse um minuto. Abriu a janelinha da carruagem:

            - Você aí, “paizinho”, quer ir ao Teatro? Tome duas entradas. Tome. Não tenha medo. É presente. É de graça. Pegue, homem, pegue.

            A carruagem seguiu. Lizaveta olhava-o interrogativamente. Oleg explica de um só fôlego:

            - Não é mesmo a Pavlova quem vai dançar hoje. Ademais, fiquei com pena daquele “paizinho”. Deve ter sido a maior surpresa de sua vida. Depois Lizaveta, você parte amanhã. Deus sabe quando poderei vê-la de novo. Hoje é um dia especial. Merece algo melhor. Inesquecível... Vamos cear em...  minha casa?

            Lizaveta não se perturbou. Hesitou um segundo e assentiu com a cabeça. Afinal, se de fato, não era mesmo a Pavlova...

            A cabeça doía muito. Estava enjoada a mais não poder. Que estúpido aquele Oleg, enchê-la de bebida. Como se fosse preciso. O trem afastava-se velozmente. Petrogrado ficara para trás. Não existia. Oleg também não. Tudo voltava à calmaria de sempre. Olhou Feodor. O menino dormia recostado em seu braço. Sentiu náuseas de novo. Maldito Oleg. Procurou recordar...

            - Chega, Oleg, já bebi muito. Parece que esse vinho não combina com caviar... – Lizaveta empurrou o copo. – E estas ostras, nessa época! Você tinha certeza de que eu viria aqui. Preparou tudo, não?

            Oleg encheu outro copo. Vinho branco dessa vez.

            - Nem tanto; em último caso, ficaríamos passeando pela cidade. Petrogrado é sempre linda, especialmente à noite. Experimente esse vinho branco. Só um pouquinho. Prove só.

            E colou o copo nos lábios da mulher. Lizaveta riu. Como ele parecia vulgar, grosseiro, até. Mas já chegara.

            Tudo girava. Nem notou quando Oleg Ordalionovitch, a levou, quase carregada para o quarto. Sentiu umas mãos ávidas despindo-a. apalpando-a sofregamente. Quase arrancando as peças do seu vestuário.

            Viu-se nua, mole, zonza e cheia de náuseas...

            O homem parou um instante. Admirou aquele corpo maravilhoso. A perfeição e a horizontalidade dos seios, a curva embriagadora dos quadris, as covas perfeitas, levemente saltadas para fora... Atirou-se sobre a presa. Procurou os lábios de Lazaveta, mordeu-os. Sentiu um gosto estranho na boca, Ácido. Um líquido viscoso, nojento, molhou seu rosto, esguichou sobre seu peito. Afastou-se e apoiando a cabeça de Lizaveta ajudou-a a... vomitar.

            O trem deixava Petrogrado cada vez mais para trás. Fora melhor assim. Lizaveta Ivanovna acariciou a cabeça do menino que dormia. Afinal, ela não tinha certeza de que não fora mesmo a Pavlova que dançara...

           

 (CONTOS DE ALCVOVA)

Compilados por Yves Idílio

............

IGOR PALYKH

 

          O autor de “Última Noite em Petrogrado”, desponta como uma das maiores figuras no moderno ficcionismo russo. Filho da Georgia, região onde os homens são marcados por indelével tristeza, Igor Palykh, não obstante, possui uma temática leve e saborosa.

          Sem embargo de sua inconteste notoriedade nos estados da União Soviética, não alcança no mundo ocidental a mesma projeção devido à exígua divulgação de suas obras.

           Não querendo privar os leitores de tão agradável conhecimento, inserimos um de seus contos mais característicos, nesta coletânea. Nele afloram todas as constantes individuadoras de sua obra. O estilo leve, colorido. A discrição minuciosa, exata. A frustração sempre tisnando os desejos humanos. Desígnios estranhos intervindo para a não concretização de vontades conjugadas. O final sempre imprevisto. E o autor, colocado como impotente espectador, enquanto os fatos, os acontecimentos, as situações, insinuam e apregoam a limitação humana.


* * *

 

                                                   

terça-feira, 29 de setembro de 2020

QUARESMA – Ariston Caldas

 


         Na quaresma, quando eu era menino, duas figuras esquisitas apavoravam meu juízo: o lobisomem e a Mula-de-padre. Minha mãe cobria os espelhos com panos escuros, a máquina de costura, as vidraças, os quadros pelas paredes e as imagens dos santos. Era uma manifestação de fé e pesar pelo sofrimento de Jesus, da Virgem Santíssima.

            As estórias fantásticas repetiam-se de boca em boca, as pessoas religiosas impunham penitências rigorosas; não se podia cantar na Semana Santa, a não ser rezando, e quem pronunciasse um nome indecente seria logo repelido.

            Minha cabeça ficava povoada de vultos estranhos e sombrios, pressentindo a todo instante a imagem do lobisomem que se assemelhava a um cachorro gigante e negro, alumiando, olhos vermelhos e incandescentes, os dentes enormes e pontiagudos capazes de devorar qualquer vivente. A mula-de-padre era sem cabeça e só aparecia depois da meia noite, portando chocalhos estridentes; tinha as patas enormes com os peadores atados por correntes pegando fogo. Afirmavam que o estranho animal originava-se de padres pecadores que não respeitavam a abstinência sexual. Eu achava tudo isso confuso e uma vez tentei uma explicação de meu pai que resmungou: “tudo é mentira”. Apesar dessa afirmativa, continuei a temer a mula e o lobisomem.

            Quando anoitecia, as famílias recolhiam-se para meditações, o lugar ficava silencioso como se fosse um cemitério. Não existia iluminação elétrica e as residências eram clareadas por candeeiros que fumaçavam as paredes e o nariz das pessoas. Minha mãe, quando falava qualquer coisa, o fazia em sussurros e qualquer ruído pela rua me deixava temeroso. Vinham as imagens do lobisomem, da mula-de-padre; meus irmãos se entreolhavam.

            O vento pelo telhado era como um presságio e lembravam as cenas da Paixão contadas por minha mãe. “Hoje começou o sofrimento de Jesus, preso e açoitado, crucificado e morto”. Ela falava de Pilatos, Herodes, Madalena e dois ladrões, um bom e outro mau, também crucificados ao lado de Jesus. 

            Em minhas ponderações, essas figuras citadas pareciam com pessoas de minha rua; Herodes seria semelhante a seu Edésio, coletor do estado, que residia na esquina, numa casa bonita; Pilatos parecia com o filho do doutor Márcio Coelho, que gostava de camisas coloridas, rapaz vistoso e sisudo; Madalena era toda Abgail que morava parede-meia à nossa casa, moça de cabelo vermelho, caracolado, namorada de um tal Ranulfo, ponta esquerda do Ipiranga local. Assim eu ia configurando os personagens do Novo Testamento com pessoas minhas conhecidas.

            Meu pai contava estórias da quaresma de seu tempo de menino, mencionando penitências absurdas de pessoas que se cortavam com cacos de vidro açoitados na ponta de um cordão; os penitentes terminavam as obrigações retalhados, o sangue escorrendo pelo corpo. Quando chegava a Sexta-feira Santa, eu me encontrava com a cabeça confusa diante de tantas informações terríveis. Minha esperança consistia no Sábado de Aleluia quando me libertava de tanta assombração, como da mula e do lobisomem.

            Eu voltava a brincar com os meninos da vizinhança, despreocupado, ouvindo música alegre, vendo gente andando sem medo pela rua; à noite assistia a queima do sujeito que traiu Jesus, no meio da praça apinhada de pessoas. Em minhas ideias, Judas parecia com um tonto maltrapilho que perambulava pedindo coisas pelas portas, correndo atrás dos meninos que o atormentavam; era apelidado de Papo-de-Rola. O Sábado de Aleluia clareava minha cabeça.

            Acabava a Semana Santa e com ela sumiam as figuras que assombravam meu juízo. Pela manhã, o coletor-Herodes passava metido numa roupa de linho branco, gravata preta, sapatos de duas cores; o filho do doutor Márcio Coelho aparecia na varanda exibindo uma camisa estampada de azul, com pose de Pilatos; Abigail surgia à janela, ajeitando o cabelo caracolado e vermelho, lembrando-me Madalena; os dois ladrões haviam-se separado – o bom, voando para o céu e o outro permanecia na cruz, sozinho. O local da crucificação aparecia em meu juízo parecendo o quintal da minha casa, - um pé de pitanga, um abacateiro, hortaliças e o canteiro onde minha mãe plantava rosas e girassóis.

 

(LINHAS INTERCALADAS – 2ª EDIÇÃO)

Ariston Caldas

* * *

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

A COLCHA DE RETALHOS - Catulo da Paixão Cearense


A Colcha de Retalhos

(Dos “URUPÊS”)

                                                 A Monteiro Lobato

 

Naquela manhã nevada,

de neve toda caiada,

banquei-me em cima do Crista,

e fui propor meu negócio

ao Tio Amâncio Queimada.

 

Para as bandas do Mojeiro,

eu tinha uns lotes de terra,

de boa terra, eu sabia,

mas tão cobertas de mato,

que não havia uma aberta

que deixasse ver um trecho

do chão, entre a mataria.

 

Seis léguas de caminhada,

eu tinha de cavalgar,

para chegar à Fazenda

do Tio Amâncio – o roceiro.

 

Tio Amâncio há muitos anos

abandonara a cidade

pelos trabalhos do campo

de vida laboriosa,

mas de vida em que se goza,

vivendo com a liberdade.

 

O negócio era o seguinte:

 

Eu dava todo o terreno

para o Tio cultivar,

e, depois de cultivado,

a fim de o recompensar,

seria dele somente

todo o dinheiro ganhado

no decorrer de dez anos,

com o produto do roçado.

 

Findo o prazo combinado,

seria o lucro, depois,

igualmente, meio a meio,

dividido por nós dois.

 

Era uma bela proposta,

que o velho amigo Queimada

chamaria: - uma surpresa!

 

Assim, montado no Crista,

n’um doce carrego-baixo,

para a vivenda do velho

lá me botei de jornada,

namorando a natureza.

 

O meu cavalo, vaidoso,

mais alvo que a luz do dia,

marchava todo garboso,

pisando a terra tão leve,

que quem passasse, diria,

que era um cavalo de leite,

rasgando a espuma da neve.

 

No princípio da viagem,

a nevada que caía,

cobria toda a paisagem

com a branquidão do seu véu.

 

Mas, enquanto pelos bosques

e florestas eu seguia,

a neve em subtil transporte,

como um velário, ascendia

brancamente para o céu.

 

Depois....................................

 

Como se muda um cenário,

sem dissensão de velário,

houve por todo o sertão

uma transfiguração!

 

O sol, que vinha brotando

lento e lento resfolgando,

fogoso, como um titã,

parecia, assim tão louro,

um sabão feito de ouro,

lavando toda a manhã.

 

Porque o sol, que era a alegria,

o sol, cheirando a sol novo,

era tal e qual um ovo

que a Ave Preta da noite

tivesse posto e chocado

no cimo da serrania,

um ovo, de onde saía,

de orvalho todo orvalhado,

um pássaro branco: - o Dia!

 

Os galhos, festivamente,

como os clarins da floresta,

saudavam o sol nascente!

 

Balançando-se na rede

de um galho todo enflorado

de uma bela Floriana,

a sabiá, doidivana,

abria a flor penarosa

do hino matutinal,

enquanto a rola, extremosa,

despenava-se, queixosa,

sob as palmas verdorosas

de um nervoso bambual.

 

Dos ramos se desnastrando,

sacudidas pelas brisas,

que vinham saudando os ninhos,

as folhas, mumificadas,

rolavam pelos caminhos,

como se fossem sambando,

ao som das cordas magoadas

das violas dos passarinhos.

 

Agora, um rio cheiroso

que, rumoroso, carpia

a sua melancolia,

e onde o meu Crista bebia,

como se fosse uma pia

d’agua benta de um Jordão!

 

Parece que aquelas águas

iam fluindo, medrosas,

(quem sabe?!...) talvez saudosas

De todo aquele sertão.

 

Viajor! Acaso já viste

coisa que seja mais triste

do que a saudade de um rio,

que em procissão, lentamente,

num coro fresco de mágoas,

vai refletindo nas águas

o céu luzente ou sombrio?!

 

Quem perlustrou solitário

pelos recessos das matas,

no que eu penso, já pensou!

 

Quem sabe se essa amargura,

que nas águas mais se apura,

não procede das endechas,

das dores, mágoas e queixas,

de tudo que em seu transcurso

o rio cristalizou?!!

 

Mas esse, que, por momentos,

foi meu guia e companheiro,

era um rio prazenteiro!...

 

Porque o rio caminhava

tão buliçoso e tão lindo,

que, pelas brisas beijado,

com o rosto todo frisado,

quem visse o rio, jurava

que o rio estava-se rindo!

 

Sob um zimbório de mato,

um riozinho, um regato

rezava uma prece d’agua,

muito baixinho e sonora!

 

Era assim tão carinhoso,

tão suave e religioso,

porque os anjos uma tarde

lavaram nas suas águas

os pés de Nossa Senhora!

 

Nas alcovas de esmeraldas

noivavam as juritis!...

 

Numa velha Timbaúba

gritava, saudosamente,

um bando de bem-te-vis.

 

Brancas, verdes, amarelas,

pardas, rubras, azuladas,

as borboletas viajavam,

como flores tresloucadas!

 

Um papagaio palreiro,

petulante e senhoril,

tagarelando, parece

que dizia, prazenteiro:

“não há manhãs tão mimosas,

como as manhãs do Brasil.”

 

Um cardeal, paramentado,

fitando o sol redourado,

com a sua lâmpada acesa,

em seus cantos, suplicava

a Deus, pela Natureza!

 

No palácio esplendoroso

de uma enorme perobeira

ouvia-se a voz da flauta

de um sabiá laranjeira.

 

Um caburé, solitário, 

gemendo dentro da moita

sua eterna “ladainha”,

ouvindo o poema das aves,

dizia em soluços graves:

“Todos cantam sua terra!

 Também vou cantar a minha!”

 

E o sapo lhe respondia:

- e eu, o cantor dos pantanos,

- que a fealdade apadrinha,

- por ser também brasileiro,

- nas débeis cordas da lira,

- hei de fazê-la rainha! –

 

Um tico-tico, que é feio,

mas que em sã brasilidade

nenhum passarinho o vence,

proclamava, com vaidade: -

eu sou um pobre violeiro,

mas sou cantor brasileiro

como o Catulo Cearense!!

 

Na cerrada mataria,

uma araponga batia

numa sonora bigorna

com o duro ferro do malho,

a Deus, alegre, saudando,

e ao mesmo tempo entoando

uma oração ao trabalho!

 

As trepadeiras floridas,

feridas nos seus verdores,

quando o Crista galopava,

sobre nós dois atiravam

a sua bênção de flores!

 

A capelinha do monte,

muito longe, esbranquiçada,

era a imagem da tristeza

de uma casa abandonada.

 

Janelas, portas, fachada,

dessa igreja pequenina,

tudo, tudo ameaçava

cair um dia em ruína.

 

Mas, na coroa do monte,

naquela hora em que vinha

o sol já se aproximando

para sondar o horizonte,

quem fosse na capelinha,

lá dentro dela ouviria

a voz de um órgão chorando

e um peito humano cantando

a prece final do dia.

 

Pois bem. Aquela igrejinha,

em cuja nave reboava

um canto de litania,

tal qual se me afigurava

a imagem triste do Poeta,

que é um templo em ruinaria!

 

Por fora, - a dor, a pobreza,

a mágoa, a luz da tristeza,

que é mãe da filosofia!

 

Por dentro, - as vozes perenes

das nove musas solenes,

cantando em órgãos celestes,

no grande altar da Poesia.

 

O sino da capelinha

em seis pancadas floria.

 

E a tarde foi fenecendo,

foi morrendo, foi morrendo,

serenamente morria,

até que, afinal, morreu,

como morre em lábios tristes

um soluço de agonia.

 

No alto de uma esplanada,

já se avistava a vivenda

do velho Amâncio Queimada.

 

Por detrás da penedia,

como uma rosa afogueada,

o sol desaparecia.

 

Tirei meu chapéu de feltro,

e fiz a minha oração,

ao som da prece que a aragem

gorjeava no templo verde

da profunda mataria.

 

Para não ser surpreendido

pela noite, dei um tope

no meu Crista vigoroso,

que, relinchando, fogoso,

pelas veredas e atalhos

se desmanchou num galope.

 

E, enfim cheguei. “Ô de casa!”

já no terreiro exclamei.

“Pode chegar!” responderam...

E eu para a casa encristei.

 

Quando o velho Tio Amâncio

viu quem era o viajor,

“disapêie”, então me disse,

e abrindo os braços nodosos,

abençoou-me com calor.

 

Depois, levando o cavalo

para as bandas do curral,

“Pingo d’Agua, Pingo d’Agua!...”

chamava alguém que já vinha

surgindo das flechas verdes

do verde canavial.

 

Era a filha do Queimada,

que eu vi, quando era criança,

e, depois de tantos anos,

via, ali, perto de mim!

 

Se os serafins são morenos,

eu juro ter visto um dia

a imagem de um serafim!

 

Era mulher só de nome!

 

Pongo d’Agua, a feiticeira,

tinha a carinha brejeira

de uma rosa carminada;

e quando se remexia,

parecia uma mangueira

moça ainda, quando sente

na frondezinha fremente

o doce pungir dos zéfiros,

que viajam de madrugada.

 

Depois de ser sertaneja,

nunca mais veio às cidades!

 

Por isso aqueles dois olhos

choravam naquele rosto,

como um casal de saudades.

 

As mãos, quando se agitavam,

transparentes, como gazas,

e uma linguagem falavam,

linguagem que eu nunca ouvi,

eram como duas asas

de um mimoso colibri.

 

Era-lhe a voz tão cadente,

tão meiga, tão redolente,

que eu só posso comparar

com a voz macia de um galo,

longínqua, terna e saudosa,

abrindo a flor sonorosa

da meia-noite, ao luar!

 

Mas eis que volta o roceiro,

que me veio interromper

 naquela contemplação.

 

Pingo d’Agua, a sua filha,

me pedindo permissão,

foi prender um cabritinho,

que estava esfolhando as flores

d’um formoso bogari.

 

Tio Amâncio convidou-me

para entrar: no que acedi.

 

Depois de uma breve pausa,

falei-lhe, sem mais demora,

sobre a proposta, em questão.

 

E ouvindo a minha proposta,

com delicada atenção,

oscilava com a cabeça,

em sinal de negação,

para, depois de falar-lhe,

responder-me, decisivo,

com esta simples frase: “Não!”

 

“Não é possível, senhor!”

 

“A mocidade esfolhou-se,

já não tenho mais vigor,

os anos, feros, tiranos,

deixaram-me sem calor!...

meus braços, debilitados,

já não podem trabalhar!

 

Noutro tempo era possível,

mas agora era risível

sua proposta aceitar.

 

Como vê, se inda trabalho

nesta Fazenda, que é minha,

(e sempre trabalharei,

enquanto a Deus aprouver...)

é por causa dessa filha,

da sua terna avozinha

e a minha boa mulher.

 

Não leve a mal a franqueza

deste rude lavrador!

cedo à lei da natureza!

não posso mais, meu senhor!”

 

 

Não insisti. Nesse instante,

Dona Branca aparecia,

Trazendo duas tigelas

Do mungunzá familiar.

 

Depois de cumprimentar

a mãe de Pingo – a formosa –

(que, pela fisionomia,

Parecia estar doente),

Sorvi semvergonhamente,

Aquela ceia gostosa,

Que veio mesmo a calhar!

 

Mas depois... Forte muxinga

tive então de suportar!

 

Mas depois... Forte muxinga

tive então de suportar!

 

Tio Amâncio, dando à língua,

não me deixou mais falar!

 

Falava-me da lavoura,

das frutas do seu pomar,

das cabras e das ovelhas,

do seu cavalo sem par,

do fino mel das abelhas,

de tanta coisa, que, enfim,

comecei a cochilar!

 

Só assim Tio Queimada

deu fim à sua eloquência,

e me deixou descansar.

 

***

A noite foi bem dormida.

 

Ao levantar-me, cedinho,

antes do nascer do dia,

quis ver a avó de Pinguinho,

que há muitos anos não via.

 

A velhinha octogenária,

que, tão velha, inda trazia

os seus cabelos grisalhos,

cosia ao pé da janela

uma colcha de retalhos.

 

E quando o velho Queimada

junto dela me levou,

depois de cumprimentá-la,

este jogo de carinhos

entre nós dois se enlaçou.

 

- Deus ajude a quem trabalha! –

 

“Deus Nosso Senhor me valha,

que inda posso trabalhar”.

 

- Vejo com muita alegria

– que inda pode costurar” –

 

“Graças a Deus Redentor...”

– que, por muitos, muitos anos,

- lhe conserve esse vigor. –

 

“Mas... queira-me desculpar,

se perpetro um desacato:

como se chama o senhor?!

 

- José Monteiro Lobato. –

 

“Tu és o grande escritor,

um doutor que há tempos fez

um belo livro de histórias,

que tem por nome: Urupês?

 

E a velha que remexia

nos retalhos da memória,

acrescentou: “uma glória

de todo o nosso Brasil!”

 

- Como me viu tão criança,

quer ser comigo gentil!

 

- “Monteiro, eu não me lembrava!

Quando viemos da cidade,

tu eras inda infantil”.

 

E a velhinha, abrindo os braços,

para abraçar-me, exclamou:

 

“Minha vista já cansou!

Perdão, meu filho, perdão!

Deixa matar a saudade

no abraço da gratidão!”

 

Depois de dar-lhe o abraço,

sentindo grande emoção,

pedindo ao velho Queimada

que o meu cavalo arreasse,

depus-lhe um beijo na face

e um beijo no coração.

 

Disse adeus à dona Branca,

disse adeus à Pingo d’Agua,

reabracei a avozinha,

e, dando um aperto de mão

na mão calosa e enrugada

do velho Amâncio Queimada,

do amigo velho de então,

banquei-me no meu cavalo,

excitei-o em leve tope,

e atirei-me pela estrada,

primeiro, em carrego-baixo,

depois... a todo o galope.

 

***

Três anos eram volvidos,

quando me veio aos ouvidos

uma notícia fatal!

 

Pingo d’Agua, que há três anos

eu tinha visto surgindo

do verde canavial,

fugira do lar paterno

com um tocador de viola,

depois que ouviu o runxóla

no samba de um festival.

 

Não me contive!... Inda mal!

Pingo d'Agua! Era impossível!

Que afetos o pai lhe tinha!

Que fora de Dona Branca?!

Que seria da avozinha?!

 

Uma flor tão bonitinha

com um coração insensível!

 

Então era uma serpente

o passarinho inocente,

que tinha a voz transparente,

veludosa e luminar,

como a voz terna de um galo,

que de tão longe, parece

uma dor, que a gente esquece,

e sai do peito, e, sonora,

pela boca do silêncio,

vai correndo noite afora,

sonorizando o luar!?

 

Não podia acreditar!


Um coração tão sensível!...


Pingo d’Agua!? Era impossível!

 

Banquei-me em cima do Crista

e para o Engenho do Amâncio

a rédeas soltas voei.

 

Ia cego! Na viagem

 nada vi!... Toda a paisagem

era um sudário de dores!

 

Nem na alegria das flores

nem nos pássaros cantores,

nem nos sonoros regatos,

nem nos verdores dos matos

os meus olhos descansei!

 

Nada disso me enlevava,

porque n’alma, que sangrava,

surdamente eu carregava

um peso, que não deixava

meu coração palpitar!!

 

Passei um dia tristonho,

um dia todo a viajar!!

 

Por detrás da penedia

o sol, roxo, se escondia

e o meu cavalo nitria

pela estrada, a galopar!

 

Era preciso chegar.

 

A noite já se envolvia

na escuridão virginal,

quando à Fazenda cheguei.

 

Perseguido dos cachorros,

abri com os pés a porteira,

galguei, de um surto, a ladeira,

e, já no pátio, num grito,

pelos de casa gritei.

 

Nem uma voz respondia!

 

Gritei!... Mas em vão, em vão!!

 

Um perdigueiro latia,

como se fosse um trovão.

 

Ouvi um leve rumor!

 

Era o velhinho, o Queimada,

que vinha da encruzilhada,

correndo, de tropelão.

 

- Pingo d’Agua, meu amigo,

- que é feito daquela flor?!

 

E, ele, triste e desolado,

n’um soluço estrangulado,

respondeu-me: “Evaporado!

“Foi-se embora, seu doutor!”

 

E com saudades da filha,

com os olhos rubros de mágoa,

lhe caíam pingos d’agua

pelas faces, já sem cor!

 

- E Dona Branca? – “Morreu!”

 

- E a avozinha – “Emudeceu!”

 

E estas palavras dizendo,

 lá foi pelo mato afora,

chamando pela filhinha,

que o lar paterno esqueceu!

 

Amarrando o meu cavalo

no tronco de um calumbi,

fiz volta pelo terreiro,

que rodeava toda a casa,

e já no portão trazeiro,

levantei a taramela,

abri a velha cancela,

e entrei, com os olhos em brasa,

pela sala de jantar.

 

A velhinha estava ao lado

de um oratório enfeitado,

com os olhos postos n’um Cristo,

que parecia falar!

 

Chegando ao canto da sala,

a fim de não assustá-la,

lhe disse aflito: - sou eu!

 

- É o velho amigo Lobato,

que inda guarda, mui grato,

aquelas doces palavras

com que há três anos volvidos

nesta sala o recebeu.

 

- É o velho amigo da casa,

 que já conhece a desgraça

do mal, que lhes sucedeu!

 

- Dizei-me, por caridade, 

se, por ventura, é verdade... - 

 

Mas a velhinha, dorida,

com uma vozinha entupida,

minha palavra cortou!

 

“Pingo d’Agua nos deixou!

 

Obedecendo os arrancos

de uma voz que se adivinha,

teve medo deste inverno...

destes cabelos tão brancos,

e, vendo um' outra andorinha,

bateu asas... Emigrou!

 

A vida é triste, tão triste,

que a morte um bem nos parece!

 

Não são os anos!... A dor

é que nossa alma envelhece!

 

O coração é o primeiro

que na desgraça fenece!

 

Parece que faz dois meses

que o senhor esteve aqui!

 

Senhor, como em poucos dias

na amargura envelheci!!!

 

Agora, que mais me resta,

se a filha e a netinha ingrata

pra todo sempre perdi!”

 

E mostrando um bauzinho

de folha, ao pé do oratório,

mais triste continuou:

 

“E a colcha? O senhor se lembra?!

 

Guardo ali, como a saudade

de meu pingozinho d’Agua

que a desventura secou!”

 

E ao perguntar-lhe se tinha

terminado a colchazinha,

mais triste me respondeu:

“Nem ficou pela metade!...”

 

E um lausperene de estrelas,

como lírios de martírios,

em seus olhos floresceu!

 

E abrindo a caixa de folha,

para a colcha me mostrar,

desdobrou-a sobre a mesa,

abrindo-a, de par em par.

 

“Estes retalhos de chita...”

me disse, “têm uma história,

seu doutor, muito bonita,

mas hoje muito tristonha,

porque a desgraça enfadonha

essa história interrompeu!

 

Meu senhor: começa a história

desde que Pingo nasceu”.

 

Depois, sempre soluçando,

os pedacinhos de pano,

um a um foi apontando.

 

“Este aqui, de azul violeta,

eu tirei da camiseta,

da primeira que vestiu!

 

Estou vendo-a nos meus braços,

quando em beijinhos e abraços

para a Minh ’alma sorriu!

O outro, o de ramazinha,

foi presente da madrinha,

que Deus levou! Faz um ano!

Nesse tempo já reinava;

dia e noite traquinava

com aquele amigo – o Bichano!

 

E mostrou-me na parede

a pelezinha do gato,

ao lado do seu retrato.

 

“Este, (veja como é lindo!!)

cor da flor do tamarindo,

foi um presente do tio:

com ele, um dia, brincando,

Pinguinho caiu no rio!

Quando a vi toda molhada,

dei a primeira palmada

naquela coisinha ruim!

E enquanto eu triste chorava,

 ela de mim caçoava,

sorrindo alegre pra mim!

 

Este outro, de cacundê,

foi um presente maior,

quando ela disse de cor

toda a carta do á-bê-cê!!!

Este aqui, todo de flores,

quem lhe deu foi seu padrinho

no dia em que o ladrãozinho

sete agostos completou!

 

Vestiu no dia de Reis,

no mesmo dia em que fez

um tutu tão gostosinho,

que ela mesma temperou!

 

Olhe! Veja!... Este, roxinho,

foi de uma saia comprida,

que a seu pedido eu lhe fiz!

ficou tão envaidecida,

tão ancha e tão presumida,

que, por vesti-la, pensava

que fosse uma imperatriz!

Com aquele cor de pinhão,

 em vinte e quatro de Junho,

dançou pela vez primeira,

na noite de São João!

Foi o vovô quem lhe deu,

no dia em que recebeu

a primeira comunhão!”

 

“Aquele, de azul celeste,

ela o vestiu... (sabe quando?!)

no dia do meu natal!

Encheu-o todo de flores

e como uma flor, sorriu,

e, quem a visse, diria

que Pingo era um roseiral.”

 

Fingindo que me lembrava,

eu lhe afirmei: - este, róseo,

é da blusa com que estava,

quando a vi, noutra visita,

formosa, fresca e bonita,

como uma tarde estival! –

 

“Enganou-se!...” E assim dizendo,

deixava cair dos olhos

sementeiras de cristal!

 

“Quando o senhor, há três anos,

- respondeu-me – “esteve aqui,

o senhor viu-a com este,

que é da cor do buriti!

Eu já estou muito velhinha,

mas inda não me esqueci!”

 

- E estezinho, este amarelo? –

 

“Este aqui, de cor funesta?!

Foi o vestido da festa

em que ela viu o bengola,

o tocador de viola,

causa desta desventura!”

 

E pondo as mãos sobre o peito,

suspirou: “Desde essa noite

aquela viola maldita

abriu-me aqui dentro d’alma

esta amargura infinita,

que há de levar-me, bem cedo,

ao fundo da sepultura!

 

E, agora, meu senhor!...

Este, veja, - o derradeiro,

 foi mais cruel!... mais traidor!...

 

Foi com este verde-claro

que ela fugiu com o violeiro!”

 

E assim dizendo, chorava,

e com a colchinha enxugava

o rosto, que era um chuveiro!!

 

“Seu doutor, esse vestido,

macio, como um veludo,

ficou-lhe tão ajustado,

que às vezes chego a pensar

que, por tão bem lhe ficar,

esse vestido encantado,

esse vestido malvado

foi o culpado de tudo!!”

 

Depois, abrindo o oratório,

e tirando o Crucifixo

e dando um beijo em Jesus,

ajoelhou-se aos pés da cruz,

soluçando estas palavras

com os lábios cheios de luz:

 

“Agora eu peço a Jesus,

que me ampare, que me valha,

e deste presentezinho,

que ficou inacabado,

deste mimo de noivado

me faça, em breve, a mortalha!”

 

E com a colchinha abraçada,

em convulsões sufocada,

pelos olhos soluçando,

hóstias d’alma derramando,

foi, pouco a pouco, inclinando

a cabeça enluarada,

para em lágrimas se ungir!

 

Relembrando-lhe a agonia

da Santa Virgem Maria,

beijei-lhe a fronte gelada

de profundas comoções.

 

Crista, com a noite fria,

 lá fora, ansioso, nitria,

com desejos de partir!

 

Banquei-me no meu cavalo

cheio de ardor e coragem,

e dei começo à viagem

por aquelas solidões,

depois de lançar, primeiro,

um triste olhar de viageiro,

para nunca mais revê-las!

 

O céu estava impregnado

 de funda melancolia!!

Mas Deus, nos céus, estendia

A sua colcha de retalhos!!

 

***

 

Vós, artistas, escultores,

poetas, músicos, pintores,

vós, ó grandes sonhadores,

argonautas do Ideal,

que, de retalho em retalho,

andais cosendo uma colcha

de quimeras... ilusória...

para o tálamo da Glória,

a vossa Noiva imortal,

haveis de ver, sonhadores,

um dia, sem dor, sem mágoa,

que ela – a Glória, a Pingo d’Agua,

(nos braços do desengano,

desse Violeiro Tirano,

o Proxeneta rufião...)

vos deixará, solitários,

como eternos visionários,

com uns farrapos de sudários,

para enxugardes as lágrimas

da vossa Desilusão!

 

(POEMAS BRAVIOS)

Catulo da Paixão Cearense

* * *