Anotações sobre o Dois de Julho
Cyro de Mattos
Eu era aluno
do curso clássico no colégio da Bahia (Central) quando escutei de meu professor
Luís Henrique Dias Tavares que a Bahia e o Brasil são inseparáveis. Meu
professor era um homem de estatura pequena, mas que carregava no coração um
forte amor e na razão um grande saber pelos caminhos históricos da Bahia.
Observara em sala de aula, naqueles idos de 1956, que essa união insuperável
procedia do fato de que o Brasil exerceu sua verdadeira independência em solo
baiano. Os mares da Bahia de Todos os Santos por sua vez deram seu abraço no
entorno deste solo para que os baianos se libertassem do jugo do império
português.
O movimento
social e militar, iniciado em 19 de fevereiro de 1822, teve seu desfecho
vitorioso em 2 de julho de 1823. O Dois de Julho tornou-se data importante para
o povo baiano, que a festeja todos os anos com alma, força e vida. Celebra um
movimento desejoso de incorporar a então província na unidade nacional
brasileira. Um movimento assim veemente com o qual o sentimento federalista latejava
verdades no espírito emancipador do povo baiano.
A
independência do Brasil na Bahia não foi feita em gabinetes e salões, aconteceu
nas ruas, nos campos de batalhas, com mortos e feridos. Contou com a
participação decisiva do povo como protagonista. Indígenas, escravos libertos,
gente humilde das classes baixas. Figuras de comando tiveram performance
significativa no desenrolar da pugna. Sobressai o general Labatut como
comandante de nossas forças militares no seco, enquanto Lord Cochrane foi o
responsável pela guarda da Baía de Todos os Santos.
É imperioso
mencionar a figura da mártir Joana Angélica, morta ao impedir que os
portugueses tomassem o convento da Lapa. E a de Maria Quitéria, valorosa mulher
que combateu os adversários portugueses no Recôncavo. Vestida numa farda de
soldado, com a arma na mão, lutou com coragem incomum contra os portugueses na
barra do Paraguaçu, em Santa Amaro e Cachoeira. Houve também Maria Felipa, uma
negra catadeira de marisco, a mulher que comandou mulheres negras para seduzir
os portugueses enquanto outras queimavam suas embarcações.
Fala-se que,
na batalha final, João das Botas, um marinheiro português que aderiu à
autoridade do príncipe Pedro, com o seu conhecimento instruiu Cachoeira, Santo
Amaro e São Francisco do Conde na armação e comando dos barcos para combater a
frota portuguesa. Foi singular sua atuação como trunfo na guerra.
Noutros
falares, de como exatamente o corneteiro Luís Lopes tenha ficado no coração dos
baianos ninguém sabe ao certo. Se a versão da história contada é verídica ou
não, tudo se torna mais intrigante e ao mesmo tempo nebuloso. Sobre o assunto o
que se sabe é que ele participou do conflito conhecido como a Batalha de
Pirajá. Propaga-se no imaginário popular que em vez do toque de “recuar”, deu o
sinal de “cavalaria avançar” e, em seguida, o de “degolar”. E quem acabou
partindo em retirada foram as tropas lusitanas, imaginando que os brasileiros
tinham recebido reforços.
O movimento
que deflagrou a independência do Brasil na Bahia motivou a Castro Alves, o
poeta mais amado dos baianos, a escrever um poema de versos magníficos. O poema
“Ode ao Dois de Julho” vem expresso com o discurso eloquente, versos nas
imagens candentes da esperança e da liberdade, aparecendo juntas numa só voz
que evoca a peleja da treva e do clarão. O libertário construtor de uma poética
solidária sobre a escravidão dos negros africanos, agora com versos
incandescentes de esperança, canta a liberdade como o sentimento mais valoroso
que envolve os baianos no palco do confronto. Como noiva do sol a liberdade,
essa peregrina esposa do porvir, faz-se motivo de inspiração ao estro do poeta
de alta voz condoreira.
Transcrevemos
abaixo, como o final dessas anotações sobre O Dois de Julho, o poema do genial
poeta baiano.
Ode ao Dois de Julho
Era no Dois de julho. A pugna imensa
Travara-se nos cerros da Bahia...
O anjo da morte pálido cosia
Uma vasta mortalha em Pirajá.
"Neste lençol tão largo, tão extenso,
"Como um pedaço roto do infinito...
O mundo perguntava erguendo um grito:
"Qual dos gigantes morto rolará?!...
" Debruçados do céu... a noite e os astros
Seguiam da peleja o incerto fado...
Era a tocha — o fuzil avermelhado!
Era o Circo de Roma — o vasto chão!
Por palmas — o troar da artilharia
Por feras — os canhões negros rugiam!
Por atletas — dois povos se batiam!
Enorme anfiteatro — era a amplidão!
Não! Não eram dois povos, que abalavam
Naquele instante o solo ensanguentado...
Era o porvir — em frente do passado,
A Liberdade — em frente à Escravidão,
Era a luta das águias — e do abutre,
A revolta do pulso — contra os ferros,
O pugilato da razão — com os erros,
O duelo da treva — e do clarão!...
No entanto a luta recrescia indômita...
As bandeiras — como águias eriçadas —
Se abismavam com as asas desdobradas
Na selva escura da fumaça atroz...
Tonto de espanto, cego de metralha,
O arcanjo do triunfo vacilava...
E a glória desgrenhada acalentava
O cadáver sangrento dos heróis...
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Mas quando a branca estrela matutina
Surgiu do espaço... e as brisas forasteiras
No verde leque das gentis palmeiras
Foram cantar os hinos do arrebol,
Lá do campo deserto da batalha
Uma voz se elevou clara e
divina:
Eras tu — Liberdade peregrina!
Esposa do porvir — noiva do sol!...
Eras tu que, com os dedos ensopados
No sangue dos avós mortos na guerra,
Livre sagravas a Colúmbia terra,
Sagravas livre a nova geração!
Tu que erguias, subida na pirâmide,
Formada pelos mortos do Cabrito,
Um pedaço de gládio — no infinito...
Um trapo de bandeira — n'amplidão!...
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Publicado por várias
editoras na Europa. Premiado no Brasil, Itália, Portugal e México. Membro da
Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de
Santa Cruz (UESC).
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