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sábado, 24 de junho de 2023

Uma Leitora Incrível

Cyro de Mattos

 


Ao ligar o computador hoje, recebi de tão longe um e mail que me deixou feliz. Veio de uma leitora jovem de meu livro O Goleiro Leleta e Outras Fascinantes Histórias de Futebol, que me deu o Prêmio Adolfo Aizen da União Brasileira de Escritores (Rio).  O nome dela é Mariana Schleetze (marianaschleetz09@gmail.com).

Segue abaixo o que ela disse no e-mail.

 

“Olá Cyro,

Sou a Mariana, tenho 14 anos, e moro em Três Lagoas-MS.

No meu projeto de leitura, minha professora passou para nós o seu interessante livro, O goleiro Leleta, uma obra fantástica, cheia de aventuras. 

E agora preciso fazer um trabalho sobre o senhor, e fico lisonjeada de ter a oportunidade de te mandar esse E-mail, pois gostaria de saber qual foi a sua principal influência para escrever essa obra. Li nas páginas 62 e 63 um pouco sobre, mas gostaria de saber mais, e apresentar para a turma um projeto incrível.

Desde já te agradeço muito!!”

 

Olhe o que respondi:

Prezada Mariana, que boa surpresa receber o seu e mail. Penso que não fui influenciado por algum escritor em minhas histórias que têm como tema o futebol. Em O Goleiro Leleta, a história que dá título ao livro foi invenção minha, na qual o personagem principal é um menino que agarrava no gol e que atuou na partida final e mais importante do campeonato enquanto o corpo de seu pai, o fundador do time, estava sendo velado em sua casa. É uma história triste, em que tento comover o leitor infantojuvenil. Como o goleiro Leleta, eu gostava de jogar futebol nos campinhos improvisados dos terrenos baldios espalhados em minha cidade natal, Itabuna, no Sul da Bahia. Eu não era o goleiro do time de futebol de minha rua, como o personagem Leleta, mas o ponta direita do nosso time de meninos. Já a história O Bahia contra o Brasil tem muitos lances que aconteceram comigo na vida real. Fui um menino apaixonado por futebol, um dos craques do time, bom no drible e na ultrapassagem do marcador com velocidade. Confesso-lhe que como torcedor só faço lamentar agora, ando triste, muito, com meus times Vasco da Gama e o Bahia, que não me dão mais as alegrias quando conquistavam vitórias em tempos passados. Voltando ao livro O Goleiro Leleta, a história do Goleiro Galalau foi inspirada em um goleiro de estatura alta, que jogava na Liga Amadora de Futebol de minha terra. Dizia-se que ele pegava a bola com uma só mão. Eu nunca vi essa façanha dele, mas disse isso no conto como se fosse verdade, pois o escritor nada mais é do que um mentiroso de verdade. 

“A história “O dia em que vi Garrincha jogar” é autobiográfica. O Botafogo carioca jogou contra a Seleção Amadora de futebol de minha terra. Garrincha deu um show à parte com seus dribles desconcertantes. Os torcedores iam ao delírio com as jogadas sensacionais daquele jogador, que tinha a alegria nas pernas.  Eu não parava de sorrir e aplaudir o fenomenal Garrincha, vê-lo jogar em minha cidade foi como num sonho lindo, que a gente tem e nunca esquece.

“Quer uma ajuda?  Vá no Google e busque meus livros Contos Brasileiros de Futebol, antologia, e Gabriel García Márquez e Outras Crônicas. Lá você deve encontrar resenhas sobre o que escrevo sobre o mundo fascinante do futebol. Muito obrigado por se interessar por meu livro O Goleiro Leleta e Outras Histórias Fascinantes de Futebol. Fiquei lambuzado de contente, repito.

“Antes de terminar a resposta de seu e mail, vai o abraço afetivo do autor, antigo craque de bola nas peladas com meus queridos e saudosos amigos, Tombinha, Bibico, Nei Gaguinho, Daú, Porroló, Vigário, Catroca e tantos outros, que ficaram jogando bola nos campos da fumaça do tempo. Melhor dizendo, estão jogando bola lá onde o tempo dorme e continuam fazendo a vida ser cheia de boas aventuras, tornando-a como a expressão do sonho e da liberdade.

Beijos do vô Cyro.”

 


Cyro de Mattos
é ficcionista e poeta. Publicado em inglês, francês, italiano, espanhol, alemão, dinamarquês, russo. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro titular da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. 

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MOMENTOS APÓS A CPMI

O primeiro dia do julgamento de Bolsonaro no TSE

segunda-feira, 19 de junho de 2023

Do livro ao grão

Ignácio de Loyola Brandão



Conheço desde criança, quando lia a Bibliotca Infantil o slogan que vinha no final dos livrinhos: “Do pinheiro ao livro, uma realização Melhoramentos.” Quando menino, voltando de trem para Araraquara passava por Caieiras eu via os extensos bosques de eucaliptos que eram transformadas em papel e depois em livros. Eram para mim tão encantados quanto as florestas das histórias de João e Maria.

Meses atrás, saí com minha mulher, para comprarmos grãos de variadas espécies. Castanhas do Pará ou de caju, frutas secas e oleaginosas, aveia, farelo de trigo e outras que Marcia mistura na perfeição de uma Bela Gil. Porque faz uma granola que a família inteira cobiça. Tem a mão, sabe as quantias certas, a temperatura exata, o tempo de forno. Muitos meses atrás, esperávamos um taxi passar na Teodoro Sampaio, quando vimos um espaço novo, aberto depois da pandemia. Noz da Terra, grãos. Vidros e mais vidros contendo tudo que precisávamos. Marcia, encantada : “Tem mais do que no mercado de Pinheiros.”

Estava cheio, esperávamos, quando alguém disse: “Loyola, o que faz aqui? Não se lembra de mim? Guilherme Felipe. Vendi muito livro para você. E já chegou outro: “E eu, então? Sou o Ricardo Souza.” Tinham sido livreiros na Cultura, naquele tempo áureo quando chegávamos e cada funcionário sabia tudo, orientava, propunha substituição correta, não tem esse, mas tem outro na mesma linha. Conheciam pessoalmente a maioria dos escritores brasileiros, se não tinha o que desejávamos, nos ajudavam, ligavam para deus e o mundo. Senti diferença na tarde em que dei ao caixa meu numero de CPF, ele digitou e perguntou: “Inguinácio?”. Naquele momento senti que algo estava se passando.

E passou. E infelizmente, deu no que deu. Vivi na Cultura, por mais de quarenta anos, alguns dos melhores momentos de minha vida. Nunca esqueço eu chegando ao meio-dia (ideia do Pedro) e sentado até dez da noite assinando livros. Ou os sábados com o Ives Gandra Martins servindo coxinhas e o Pedro Herz oferecendo uísque. Quem éramos? Lygia Fagundes Telles, Fábio Lucas, Ana Maria Martins, Marcos Rey e sua mulher Palma , Ivan Angelo, Mário Chamie, Tereza Collor, Gilberto Mansur, Bruna Lombardi, Ricardo Ramos, Joyce Cavalcanti.

Ou foram tardes papeando na mesa do café da livraria com Evandro Ferreira e Leo Lama.

Veio a pandemia, perdi contatos. Súbito este reencontro. E aqueles vindos da livraria me oferecendo agora grãos. Do livro, um alimento, ao grão, outro alimento. Faz meses que o empório me recebe e agora chegou também Flávia Wulf, que também mexia (como dizem os mineiros) com livros Do livro ao grão uma realização da necessidade. E da criatividade.

Estado de São Paulo, 18/06/2023

https://www.academia.org.br/artigos/do-livro-ao-grao

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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.

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quarta-feira, 14 de junho de 2023

OrlandoSilva - 30 Sucessos


        Aniversário

    Cyro de Mattos

            

              Querida filha Josefina. Sempre ouvi dizer dos mais velhos que filhos a gente cria para o mundo. É verdade. Também é verdade que os pais querem que os filhos sempre fiquem perto deles. Para os pais, o filho nunca cresce, sempre é aquela criança que a mãe tantas vezes acalentou para dormir um sono suave. Aquela mesma que balbuciava, mal dizia mamã e pá-pá. Anos depois traquinava, corria por todos os cantos da casa. O pai também substituía a mãe dedicada quando estava cansada durante a noite em que o filho acordava e demorava a pegar no sono. Chorava. Sei que esses momentos você passou com meus dois netos Pedro Henrique e Luís Fernando. A vida é um modo contínuo, seu curso de rio tem como destino o mar do inexorável.

           Sabemos que os três filhos que Deus me consentiu e sua mãe me deu não moram comigo na cidade onde nasci e resido. André é fazendeiro, nunca vi gostar tanto do campo, reside na sua propriedade rural no município de Coaraci. Você Josefina, que coloquei o nome de sua avó, como homenagem e carinho por minha mãe, reside em Conquista. O marido Anderson, genro que me dá gosto e orgulho, levou você para essa terra sertaneja do frio, assim você ficou um tanto longe de mim e de sua mãe Mariza. Ainda bem que daqui até aí onde você mora nem fica tão longe. Além disso, seu irmão, meu caçula Adriano, também está morando em Conquista. Isso é bom, a irmandade continua movimentando os laços afetivos com encontros constantes.

            Hoje você faz mais um ano de vida, intensa, afetiva e responsável no seio da família. Não estou fisicamente aí participando desse momento especial. Com 84 anos de idade o corpo reclama, mas seus irmãos André e Adriano, a sobrinha Marizinha, as cunhadas Jamile e Daiane estão aí com você. Eu estou com o coração. Quando a parentada do lado de seus pais se juntar à parentada do maridão, mais os amigos e as amigas, imagino a cantoria entusiasmada que todos vão fazer na hora do “Parabéns a você.”

         Antes dessa cantoria se fazer, na junção afetiva de corações alegres, quero que sua mãe Mariza leia agora aquela poesia que eu escrevi para você quando comemorava dez anos de existência numa infância saudável.

 

       Vejam aí.

 

Menina Josefina


Enquanto as nuvens passam

Na manhã de sol forte,

Com Miriam, Mara e Marina

Brinca de chicotinho queimado

E mexe com a cintura fina.

 

Quando está dentro de casa,

Um só minuto não sossega,

Canta alto e mexe em tudo

Na manhã muito traquina.

 

Na bicicleta azulzinha

Lá se foi dobrando a esquina,

Solta o guidão na ladeira

Como uma vez viu no circo,

Tira fino de quem passa perto,

Pede passagem e buzina.

 

Se estou cansado e triste,

Somente ela me ensina

Que a vida pula corda

E na cabra-cega diverte

Quando se tem a menina

Que se chama Josefina.

 

Vida longa, minha filha, com saúde e paz.

Bênçãos e beijos. Seu painho.

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Cyro de Mattos é contista, poeta, romancista, ensaísta, cronista e autor de livros para crianças. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.  Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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terça-feira, 13 de junho de 2023

Escritor baiano Cyro de Mattos vence prêmio internacional Casa de las Americas

 

Nascido em Itabuna, autor de 84 anos se inspirou na infância vivida no sul da Bahia, entrevista a Kátia Borges katiamacces@gmail.com


Com a serenidade de quem já acumula importantes premiações, conquistadas por uma obra construída ao longo de mais de seis décadas, o escritor baiano Cyro de Mattos, 84, recebeu, em abril último, a notícia de que seu livro, Infância com bicho e pesadelo e outras histórias, foi o vencedor do Prêmio Casa de Las Américas deste ano. Trata-se de um dos mais antigos (é concedido desde 1960) prêmios literários internacionais, contemplando obras em espanhol, português, inglês e francês, desde que tenham sido escritos por autores nascidos na América Latina e Caribe. Lançado pela Assembleia Legislativa da Bahia (ALBA), em parceria com a Academia de Letras da Bahia (ABL), o livro premiado integra a coleção Mestres da Literatura Baiana e reúne contos e novelas que giram em torno da infância e da vida na região cacaueira. Nascido em Itabuna, sul da Bahia, Cyro já publicou, apenas no Brasil, mais de 60 livros em diversos gêneros e recebeu, entre outros, o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, o APCA e, por duas vezes, o Maestrale Marengo d’Oro, concedido pelo centro italiano Culturale Maestrale di Sestri Levante. Nesta entrevista, via e-mail, conversamos sobre maturidade, leituras, referências, influências, inteligência artificial e projetos ainda inéditos. 



Sabemos que esta não é sua primeira premiação literária de relevância, mas o que o Prêmio Casa de las Américas representa em sua trajetória na literatura nesse momento pós pandêmico?

Por ser um prêmio de tradição e prestigiado na América Latina vai dar visibilidade ao meu legado, que tem hoje um autor de 84 anos, com mais de 60 dedicados à literatura,   65 livros pessoais publicados no Brasil e  16 no exterior, entre o conto, romance, poesia,  ensaio, crônica, literatura infantil e juvenil.

Infância com Bicho e Pesadelo, o livro premiado, reúne contos e novelas e sai pela coleção Mestres da Literatura Baiana (edição da ALBA e da Academia de Letras da Bahia).  Nesse sentido, poderíamos afirmar que este reconhecimento se estende, de certo modo, à sua geração? O que particulariza sua geração de autores?

Minha geração é a chamada Geração Revista da Bahia, que atuava com um grupo de adolescentes sonhadores nas páginas da Revista da Bahia, editada por Juarez Paraíso, nos idos 60, em Salvador. Na semana encontrávamos na livraria Civilização Brasileira, na rua Chile, Biblioteca Pública na praça Tomé de Sousa e, aos sábados, em alguns bares da Rua da Ajuda.  Éramos eu, Alberto Silva, Marcos Santarrita, Ildásio Tavares, Oleone Coelho Fontes, Adelmo Oliveira, Fernando Batinga, Olney São Paulo, Nacif Ganem e Ricardo Cruz. Tinha também Maria da Conceição Paranhos. Em nossas leituras estávamos ávidos para descobrir mundos e gente, o grupo tinha como guru Carlos Falk, leitor voraz, muito inteligente, adiante de todos. Alguns desses rapazes se tornaram mais tarde artistas da palavra escrita no circuito nacional, como Marcos Santarrita e Ildásio Tavares, e até da linguagem cinematográfica, como Olney São Paulo. Por motivos afetivos, de solidariedade e identidade cultural, esse Prêmio Literário da Casa de las Américas, que conquistei recentemente, se estende a todos eles.

A leveza inquietante e a maturidade literária foram alguns dos argumentos do júri para justificar a premiação de Infância com Bicho e Pesadelo. Como se alcança esse equilíbrio? Ele é possível de ser, afinal, alcançado por um escritor?

 Literatura é forma de conhecimento da vida. Equilibra-nos entre os vazios e os medos. Expressa bem a vida com arte e engenho quanto consegue o equilíbrio entre inspiração e transpiração. É um processo constante em que entra a experimentação, faz-se necessário escrever, escrever, escrever, momento inseparável do ato de ler os grandes autores. O talento acentuado carimba no final o resultado proveitoso na jornada bonita de acontecer e ser. 

Pensando bem, como definimos um escritor? Como ele se faz, ao longo de décadas? Quais são seus portos, seus pontos de resistência após mais de 60 livros?

O sapo pula, o pássaro voa, o peixe nada. Sou escritor porque escrevo. Meu porto é meu amor pela literatura, ela tem mostrado que está contente com o meu trabalho.

E o leitor-escritor? Muito se fala sobre a questão do número “modesto” de leitores, em contraponto à volumosa quantidade de livros lançados a cada ano. Há, em sua opinião, uma relação de causa e consequência? Como vê essa questão?

 Verdade, escreve-se mais para o menos. Uma enxurrada de livros passa por debaixo da ponte, mas não fica. A literatura não teve antes a concorrência de outros meios, como o teatro e o cinema, hoje é e a tecnologia avançada com a linguagem visual, abrangente e instantânea. O autor tinha mais prestígio no antigamente. Não me parece é que o livro vá desaparecer em seu formato físico, sabemos onde existe o ser humano está o sonho, a questão e a incerteza, que a palavra escrita gera. A ferramenta visual da internet, que tem lá seus vícios e virtudes, agora possibilita nova leitura da vida, às vezes a narrativa ganha muito mais leitores, não se pode negar isso, às vezes traz prejuízos. Deixando fora esse tipo de competição massificada, não se pode deixar de considerar que a linguagem da arte é sempre específica e exige um leitor íntimo dos problemas estéticos, que têm a ver com a criatividade em si e a recepção do texto.   

Como solucionar, a seu ver, o grande enigma, o nó górdio da leitura no Brasil?

O problema é complexo, mas não impossível de ser pelo menos atenuado. Falta seriedade e boa vontade dos governantes, dirigentes e administradores culturais. Somos um país de iletrados, sem hábito de leitura, um povo com poder aquisitivo baixo.  Sem virar a chave fica difícil mudar o quadro. É preciso projetos que solucionem primeiro problemas estruturais de nosso sistema político organizado. Há anos editoras em Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife ampliam seus catálogos editoriais fazendo com que o autor circule em outras praças. As obras desses autores são distribuídas no circuito nacional de livrarias e espaços de cultura. O autor baiano quase sempre para publicar precisa bancar o livro. Publicar um livro de literatura no Brasil é sempre difícil, mesmo quando se tem uma obra consolidada. É caso raro o do autor que reside em Salvador ou no interior baiano quando consegue publicar sua obra em editora de grande porte situada no eixo do Rio e São Paulo, com circulação nacional. Nesse conjunto de falhas falta uma política institucional pública mais arrojada para fornecer meios e fazer com que a editora baiana já no nascimento tenha assim algum suporte, estímulo para sobreviver e crescer. É preciso também uma legislação que obrigue as universidades e colégios estudarem o autor baiano, no vestibular e na sala de aula. É preciso criar novas estratégias com os programas de apoio ao livro.  A Bahia tem de sobra bons autores. Com raras exceções, falta é o editor com espírito empresarial para esse tipo de atividade econômica. E uma política pública institucional que o estimule, com mecanismos eficazes para que ele progrida. Desenvolva e fortaleça um complexo editorial abrangente e ideal.

Como se descreveria, pessoalmente, como leitor? Quais autores contribuíram para a sua formação? Em que medida estes influenciaram o seu desenvolvimento como escritor, desde a estreia com Berro de Fogo, em 1966?

 Já fui um leitor voraz, o que foi natural. O corpo hoje reclama, a mente hesita, mas resisto, literatura é minha crença. O bom escritor ensina, provoca, surpreende, acrescenta.  Dostoiévski, Tchecov, Kafka, Faulkner e Fernando Pessoa com os heterônimos fizeram-me ganhar cancha como escritor, deram-me visões largas sobre meu ser-estar no mundo, profundidade no fazer literário, auscultações argutas na criatividade e consciência crítica na técnica moderna de elaborar o texto. Quanto ao Berro de Fogo, contos, minha estreia em 1966, está riscado de minha bibliografia, há muitos tempos. Seu texto aconteceu com  mais defeitos do que virtudes.  Isso não aconteceu só comigo. Lígia Fagundes Telles e Assis brasil, para citar dois autores importantes, eliminaram de seu legado os livros de estreia. Guimarães Rosa foi um impacto em nossa literatura com Sagarana, seu segundo livro. Seu primeiro tirou o segundo lugar em concurso da Academia Brasileira de Letras.  Quem venceu o concurso foi Luís Jardim com Maria Perigosa, longe de ser uma obra fundamental em nossas letras. Nem todos têm a sorte de fazer a estreia literária por cima, como foi o caso de Graciliano Ramos, Clarice Lispector e José J. Veiga, por exemplo.  Cacau, O País do Carnaval e Suor, primeiros romances de Jorge Amado, são frágeis, obras de autor imaturo. Machado de Assis se torna grande na prosa de ficção a partir de Papeis Avulsos.  Considero minha estreia Os Brabos, contos e novelas, que me rendeu o Prêmio Nacional Afonso Arinos da Academia de Brasileira de Letras, em 1978, por unanimidade, numa comissão julgadora constituída por Alceu Amoroso Lima, o relator, Herberto Sales, José Cândido de Carvalho, Adonias Filho, Afonso Arinos e Bernardo Elis. É o livro que me lançou em nível de autor nacional.  

Falamos no início sobre maturidade literária como uma qualidade sentida em sua obra pelo júri do Casa de las Américas, sente que a maturidade o afetou como escritor de algum modo? E os últimos acontecimentos sociais, sanitários e políticos do país? Como a realidade atinge a alma e a rotina do ficcionista?

O importante é ser pujante e denso no que se escreve, rico no que imagina e expressa, inaugurando novos sentidos. Minha literatura toca também nas feridas sociais e questões políticas. Basta ler meus livros de poesia motivados pelo rio Cachoeira, meu Cancioneiro do Cacau, história da civilização do cacau em verso, desde a conquista da terra até a decadência com a vassoura de bruxa, o romance Os Ventos Gemedores, em que a vitória pende para o lado dos despossuídos, e o romance transgressivo República Pinapá do Piripicado, condado que criei e tem a ver com o Brasil das corrupções e mazelas dos regimes políticos recentes.

O senhor transita com desenvoltura entre os gêneros literários, contos, romances, poemas, crônicas, ensaio e literatura infantil. Como se dá o seu processo criativo. Em geral, os formatos são definidos a partir das tramas ou, ao contrário?

Tudo é resultado de uma experiência de vida que se expressa no sistema verbal. O assunto vivenciado ou imaginado determina a linguagem para melhor expressá-lo. Não se trata de um comportamento mecanicista, mas compulsivo, que se encaixe melhor ao que pretendo dizer no texto proposto com alma e vida. Procuro dar sempre o máximo de mim, embora saiba que sou um grão no deserto onde tudo arrisco.

Uma questão central da contemporaneidade é a literatura em tempos de Inteligência Artificial, quando máquinas “pensam” e produzem textos cada vez mais subjetivos. Em sua opinião, qual o desafio dos escritores hoje?

A Inteligência Artificial não cria sentido, é digital.  O que sabe sobre o amor? O inexorável? De Deus?  Vê nascer e vê morrer sem nada poder fazer?  Se não tem a razão e a emoção como pretende decifrar o peso de tantos enigmas?  Tem seus ganhos, utilidade, mas por enquanto fico no meu canto, escrevendo o meu tanto, com espanto e encanto.

Quais os projetos inéditos na gaveta e/ou no prelo neste momento?

Já está sendo preparada a tradução para o espanhol de Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias pelo Fondo Editorial da Casa de las Américas, em Havana, Cuba, com vistas à edição da obra na coleção Premio Literario Casa de las Americas. Assinei contrato de edição com a Almedina, matriz de Portugal e matriz Brasil, São Paulo, para dentro de cinco meses publicar o livro premiado. Aguardo o último parecer do Conselho Editorial da EDUEM, editora da Universidade Estadual de Maringá, Paraná, para possível publicação de O Mundo é uma criança com palhaço e lambança, infantil, capa e ilustrações de Ângelo Roberto.

Ao olhar para trás, sente que valeu a pena ter insistido na literatura?

Viver sem a literatura é impossível, sem a emoção e a razão a vida fica uma farsa.  Se tudo é logro, melhor é sabê-lo. Viver como ficcionista e poeta é transitar com os outros no reino da palavra metamorfoseada, vestido de nossa mentira verdadeira, que provoca o sofredor do ver, também diverte.

 

Fonte: Jornal Tribuna da Bahia, 12/6/2023

https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/escritor-baiano-cyro-de-mattos-vence-premio-internacional-casa-de-las-americas/

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quarta-feira, 7 de junho de 2023

O SIGNIFICADO DA VERDADEIRA FELICIDADE


 



 

 

 

" Eu quero lembrar do seu rosto para que quando eu te encontrar no céu, eu possa te reconhecer e te agradecer mais uma vez. "

 

Quando o bilionário nigeriano Femi Otedeola, em uma entrevista por telefone, foi perguntado pelo apresentador de rádio: "Senhor, o que você se lembra que fez de você o homem mais feliz da vida?"

Femi disse:

 "Passei por quatro estágios de felicidade na vida e finalmente entendi o significado da verdadeira felicidade."

 A primeira etapa era acumular riqueza e meios.  Mas nesta fase eu não consegui a felicidade que eu queria.

 Então veio a segunda etapa de coleta de objetos de valor e itens.  Mas percebi que o efeito dessa coisa também é temporário e o brilho das coisas valiosas não dura muito.

 Então veio a terceira etapa de conseguir grandes projetos.  Foi quando eu detinha 95% do suprimento de diesel na Nigéria e na África.  Eu também era o maior proprietário de navios na África e na Ásia.  Mas mesmo aqui não consegui a felicidade que imaginava.

 A quarta etapa foi quando um amigo meu me pediu para comprar cadeiras de rodas para algumas crianças deficientes.  Apenas cerca de 200 crianças.

 A pedido do amigo, comprei imediatamente as cadeiras de rodas.

 Mas o amigo insistiu que eu fosse com ele e entregasse as cadeiras de rodas para as crianças.  Eu me preparei e fui com ele.

 Lá eu dei essas cadeiras de rodas para essas crianças com minhas próprias mãos.  Eu vi o estranho brilho de felicidade nos rostos dessas crianças.  Eu os vi todos sentados nas cadeiras de rodas, se movimentando e se divertindo.

 Foi como se eles tivessem chegado a um local de piquenique onde estão compartilhando um prêmio acumulado.

 Senti uma alegria REAL dentro de mim.  Quando decidi sair, uma das crianças agarrou minhas pernas.  Tentei soltar minhas pernas suavemente, mas a criança olhou para meu rosto e segurou minhas pernas com força.

 Abaixei-me e perguntei à criança: Precisa de mais alguma coisa?

 A resposta que essa criança me deu não apenas me deixou feliz, mas também mudou completamente minha atitude em relação à vida.  Esta criança disse:

 "Quero lembrar do seu rosto, para que, quando eu o encontrar no céu, possa reconhecê-lo e agradecê-lo mais uma vez."


Pergunto: 

Pelo que você será lembrado depois de deixar essa vida?

Alguém desejará ver seu rosto novamente onde tudo importa?

 

(Recebi via WhatsApp sem menção de autoria)

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sábado, 3 de junho de 2023

Ode à Biblioteca

Marco Lucchesi



Quando meus olhos não falhavam, em noites de impiedosa insônia, eu apontava o telescópio para o céu. Mirava as nebulosas na distância, e o brilho antigo e novo das estrelas. Matéria de abandono, sintaxe e conjunção. Um repertório a cada nebulosa: o trânsito dos astros e o rumor de fundo. Eu colimava lentes, verbo e coração. E me perdia na fuga das galáxias, na espiral da Via-Láctea, reconhecida nas aldeias como Caminho das Antas. Cem bilhões de galáxias e quase o mesmo número de estrelas. Cifra assombrosa, incogitável. E, todavia, estranhamente próxima, se comparada à quantidade de neurônios. Carregamos um céu dentro de nós, o clarão da linguagem e das sinapses. Importa conjugar o transfinito, em patamares cada vez mais altos. E sem perder a humana condição. Lembro o convés do Raposo Tavares, quando subi o rio Negro, rumo a Novo Airão. Provei as extensões do Rio-Babel, a biblioteca viva da Amazônia, acervo do sistema Gaia, palimpsesto de múltiplos extratos (carbonífero e devoniano), a cuja coleção de obras raras correspondem quatrocentos bilhões de árvores. Quem sabe até – senão – o mesmo número de deuses? Estrelas. Árvores. Neurônios. As dimensões possíveis de um sistema. Como quem doma o Caos e faz uma defesa do infinito. Como quem sai do dicionário para a prosa, do arquivo aos metadados. Talvez, assim, a biblioteca de Babel, com alto brilho e densidade, seja a fornalha de uma estrela, volume líquido e gasoso, de livros vegetais e de xamãs, Apolo e Olorum.

Trata-se de um conceito universal, mosaico e labirinto: a geometria de Perec e Osman Lins. Talvez o delírio de Brás Cubas. Livros futuros, imaginários, Bolaño e Rabelais. E livros que podiam ter sido e que não foram. Suportes de papel ou nato-digitais, de verbo e de silêncio revestidos. Estrelas jovens e azuis. Ou mortas, cujo brilho não se apaga. A Biblioteca nasce de outro céu e de outra selva. É marca de um saber plural, sob o rigor da lógica do acréscimo. Lembra o famoso Hotel de Hilbert (do n + 1 às potências de números primos). E se mais mundo houvera, lá chegara. Não há, porém, limite algum. Somente o débito de espaço, pago a longo prazo. O mais do mundo aqui se encontra. A Biblioteca Nacional é dos mais belos ecossistemas do Brasil. Floresta de exemplos, natureza e cultura, memória social, que cada geração buscou guardar. Entre as bibliotecas do Oriente e do Ocidente, do Vaticano ou do Mali, todas subscrevem, sem hesitação, as palavras de Richard Bury: “O tesouro do conhecimento e da sabedoria, a que todos os homens aspiram, por instinto natural, supera em muito todas as riquezas do mundo reunidas; perto dele, as pedras preciosas se degradam, a prata se oxida e o ouro, areia fina, vira lama. Comparado ao seu esplendor, o Sol e a Lua são eclipsados, à sua doçura o sabor do mel e do maná tornam-se amargos”

Viajantes nos limites desse espaço, a bem de todos, para sempre inacabado. A biblioteca vive da soma dos tempos. Nutre-se de uma adição épica. Mais do que eterna, é sempiterna. Antes de ser lugar, é um conceito; antes de ser depósito, um sistema. Onívora, incontida. Seus muros se tornaram transparentes. Capítulo inovador, segundo Darnton, a “biblioteca sem paredes, acessível em toda a parte, contendo a quase totalidade do que se encontra nos acervos da cultura humana.” A Biblioteca Digital é um divisor de águas. Trata-se de uma conquista admirável. Precisamos ampliá-la, criando um robusto centro de dados, um centro de tecnologia da informação e comunicação. Cem milhões de acessos ano passado. A biblioteca é uma assembleia interminável, centro de cultura e difusão, que se renova com os leitores-cidadãos. Não há distância entre leitura e democracia. Não pode haver. A Biblioteca Nacional é um dos maiores bastiões da liberdade. Está no seu DNA, na vocação ecumênica, inimiga da censura, voltada aos metadados. Não admite a pós-verdade. Imune às fake News, Incapaz de rechaçar os próprios dados.

Eclipse do Sol e da Lua. Nosso maior tesouro e capital simbólico chama-se Biblioteca Nacional. A sexta cidade dos livros da Terra. A nossa mais antiga casa de cultura. Eis a razão pela qual a Biblioteca não é órgão de governo, mas de Estado; usa o plural, não se apequena em partes ou fração; não é trincheira ideológica, nem deve promover a parte contra o todo. Seu estatuto é a acolhida. Índices e motores de busca são lentes poderosas, que sondam a máquina do tempo e da leitura. Esta Casa possui 72 quilômetros de prateleiras. Seus hóspedes aumentam dia a dia. Não é pequena a taxa demográfica, que vai além de dez milhões. O mundo dos livros e o livro do mundo coincidem. Modelos de Universo inflacionário. Melhor dizendo: Multiverso. A travessia da Biblioteca é uma viagem terrestre e celeste: nas infovias, mapas e armazéns. Como disse J.L; Borges, bibliotecário de Babel: “Se um eterno viajante atravessasse, em qualquer direção, verificaria ao longo dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, repetida, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão se alegra com essa elegante esperança.”

Avalista de um horizonte generoso, não fragmenta seu tempo e discurso, não cancela a matéria-prima da alteridade. Não perde o contexto, o pano de fundo informativo, não quebra a comunicação, não abandona uma razão estrutural.

Universo conjuga todos os tempos. A nostalgia do todo não permite desidratar o presente ou sequestrá-lo. Seu algoritmo trabalha a favor da pesquisa e da emancipação. Seu ofício transparente apura o trânsito informático, a pertinência e o valor da esfera pública. Nenhuma concessão à infocracia. Os algoritmos desta Casa possuem uma finalidade virtuosa. Instrumentos de acessos. E de conhecimento radial. Tesauros, ontologias. A Biblioteca não perde seu caráter multicêntrico. Sociedade de iguais, centrada no viés do bem comum, na conjunção da diferença. Não se limita ao curto prazo. Namora a longa duração. O presente infinito não esgota suas forças. O passado distante não é exílio e o futuro pode-se apressar. Projeto de igualdade, construção de paz e saber. O papel do bibliotecário se renova, sempre mais estratégico, num um paradigma aberto, segundo a Bibliotech, de John Palfrey, nova mundivisão e formas de pesquisa. Outros regimes de memória e mídia. A biblioteca anfíbia, virtual e analógica, duplicou as tarefas da preservação. Se antes era a química do papel e o ambiente – umidade, acidez, tinta ferrogálica –, agora são hackers, perda de dados, migração de tecnologia. O delicado olhar entre átomos e bits. Porque o digital não é eterno e imutável. A inteligência do processo deverá contemplar as novas materialidades. A nossa meta é a conquistar do espaço. Mais apetite à fome de guardar. Protocolos internacionais de cooperação. Transmitir o conhecimento entre gerações de profissionais que formam esta Casa. Levar a Biblioteca ao seio da República. Promover seminários nacionais e internacionais, mostras, publicações. Leitura em todos os quadrantes. E recuperar o acervo de obras perdidas.

Tempo de diálogo, com o Brasil e o Sul Global. A delicadeza como princípio ativo. A diplomacia do livro. Ouvir os agentes públicos da Casa, avalistas da memória, embaixadores do futuro. Ativos e aposentados. Permitam citar Zé Basto, cliente da Casa das Palmeiras: “O livro deve entrar no coração”. Frequentei bibliotecas mundo afora. Antes da crise sanitária, fui a aldeias e comunidades, escolas prisionais e terras quilombolas. Dou testemunha do gênio de nosso povo, diante da riqueza das dificuldades e a escassez de recursos. Todos imersos no cosmos – da língua materna, da biblioteca –enquanto organismo vivo, heterodoxo. Continuarei a visitá-los, sempre que possível. O presidente da Casa precisa testemunhar um sentimento solidário e democrático, a partir da república dos livros. A Biblioteca deve ser o espelho do país. Guardar todas as línguas e cosmogonias. Ninguém pode ficar de fora. A Compadecida e Diadorim, Paulo Honório e Policarpo, grafites urbanos e literatura de cordel, Lampião no Inferno e a massa flutuante de esperança. Espelho. Verbo. Imagem. Travessia. Para a terceira ou quarta margem fluvial. Futuro do pretérito e agora do passado, buscando diálogos: Sócrates e Ọ̀rúnmìlà, Isabelle Stengers e Davi Kopenawa. Harpas sonoras do sul.   

Antes do convite da ministra Margareth Menezes, planejava regressar ao Brasil para ficar dois meses navegando no Amazonas, com as gramáticas tikuna e nheengatu. Eu me via entre os volumes da selva, a visitar caciques nas aldeias. E, no entanto, aqui me vejo, na floresta dos livros, na missão de reconstruir o diálogo e o respeito da diversidade. Meu telescópio é o acervo. Essa é a minha constelação, meu atlas celeste. E a partir dessa confederação de luz, abrir um dos capítulos essenciais da história: aperfeiçoar os instrumentos da democracia e reconstrução do país.

 

Discurso de posse na Biblioteca Nacional, 30/05/2023

 

Marco Lucchesi - Sétimo ocupante da cadeira nº 15 da ABL, eleito em 3 de março de 2011, na sucessão de Pe. Fernando Bastos de Ávila , foi recebido em 20 de maio de 2011 pelo Acadêmico Tarcísio Padilha. Foi eleito Presidente da ABL para o exercício de 2018, 2019, 2020 e 2021.

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