“As bem-aventuranças” (1436-1443), Fra Angelico, afresco
do convento de San Marco, em Florença.
Plinio Maria Solimeo
Diz São Mateus em seu Evangelho que Nosso Senhor Jesus Cristo “percorria toda a Galileia […] grandes multidões seguiam-no da Galileia e da Decápole, e de Jerusalém e da Judeia”. O Divino Salvador, “vendo a multidão, subiu ao monte, e quando se sentou, aproximaram-se dele os discípulos. E, abrindo a boca, Ele os ensinava dizendo, bem-aventurados…” (4, 23-25; 5, 1 e ss.), iniciando assim o que ficou conhecido como o famoso Sermão da Montanha.
São Lucas põe esse episódio logo depois de Nosso Senhor ter
escolhido seus 12 discípulos e, descendo do monte em que estavam, curou muitos
doentes e expulsou vários demônios. Em seguida, “levantando os olhos sobre os
discípulos, Ele dizia: bem-aventurados…”.
Esse evangelista cita apenas quatro das oito
bem-aventuranças mencionadas por São Mateus. Sobre isso comenta a revista Permanência:
“[São] Lucas narra que o sermão do Senhor foi feito às turbas. Por isso enumera
as bem-aventuranças conforme a capacidade delas, que só conheciam a felicidade
voluptuosa, temporal e terrena”. As quatro citadas por ele são:
“Bem-aventurados os pobres, porque vosso é o reino de Deus; Bem-aventurados os
que agora padeceis fome, porque sereis fartos; Bem-aventurados os que agora
chorais, porque rireis; Bem-aventurados sereis quando vos odiarem os homens,
vos excomungarem, e vos maldisserem e proscreverem vosso nome como mau, por
amor do Filho do Homem. Alegrai-vos naquele dia e regozijai-vos, pois grande
será a vossa recompensa no Céu”.
Entretanto, vamos comentar as oito bem-aventuranças citadas
por São Mateus, porque elas englobam também as acima.
Sobre as bem-aventuranças ou a felicidade que elas supõem,
afirma o erudito diácono e teólogo Douglas Mcmanaman, do Catholic
Education Resource Center:
“O filósofo grego Aristóteles apontou que a felicidade
genuína (eudaemonia) é completa e suficiente em si mesma. Isto é, não é
precária e depende de fatores externos como o clima ou o mercado de ações.
Assim, a verdadeira felicidade perdura. Mas a felicidade não era possível para
todos, segundo Aristóteles, e aquela sobre a qual ele fala é a felicidade
natural, o resultado da estabilidade emocional proporcionada pelas virtudes e a
alegria da contemplação natural das coisas mais elevadas. Mas Jesus é Deus em
carne, e Deus se fez homem para que o homem pudesse ‘se tornar’ Deus, por assim
dizer, isto é, para que ele pudesse ser elevado pela graça divina, que é uma
participação na vida sobrenatural de Deus; é entrando na Pessoa de Cristo que
entramos em sua alegria”.
O saudoso arcebispo de São Paulo D. Duarte Leopoldo e Silva,
comentando em sua célebre Concordância dos Santos Evangelhos essa
passagem de São Mateus, diz:
“O Sermão da Montanha é chamado o epítome, ou resumo do
Cristianismo, o símbolo do Evangelho, o texto da Nova Lei. Ele é para a Igreja
o que são as tábuas do Sinai para a Sinagoga. É a lei do amor sucedendo à lei
do temor. O Deus feito homem a promulga sobre uma montanha verdejante, cercado
de seus discípulos e de grande multidão de povo. A palavra de Deus escapa-lhe
dos lábios fluente e acessível ainda aos mais ignorantes. Ela diz toda a
verdade que os homens devem saber, ensina tudo o que é preciso fazer para a
salvação, anima, fortifica, dirige e eleva. Ocupa-se dos pequeninos e dos
pobres, tem consolações e esperanças ainda para os mais abandonados. É
profunda, e ao mesmo tempo simples e suave. É o mais belo e mais tocante
ensinamento que ainda ouviram os homens. Enfim, para assinalar um lugar no
reino do Céu com a autoridade com que o faz Jesus neste belíssimo discurso, é
preciso ter descido do Céu, é preciso ser Deus”.
As oito bem-aventuranças que constam nesse apóstolo e
evangelista no início do Sermão da Montanha, segundo o Catecismo da Igreja
Católica, “nos ensinam o fim último, ao qual Deus nos chama: O Reino de Deus, a
visão de Deus, a participação na natureza divina, a vida eterna, a filiação
divina e o repouso em Deus”. E o Catecismo chamado de São Pio X acrescenta:
“Jesus Cristo propôs-nos as Bem-aventuranças para nos fazer detestar as máximas
do mundo, e para nos convidar a amar e praticar as máximas do seu Evangelho”.
Passamos a apresentar essas bem-aventuranças, segundo os
comentários de vários teólogos e estudiosos do assunto.
Primeira bem-aventurança: Bem-aventurados os
pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus. (Versículo
3)
Em sua edição da Bíblia, o Pe. Matos Soares comenta que a
expressão “pobres de espírito” traduzir-se-ia melhor como “pobres pelo
espírito”, pois para ele “são os pobres voluntários e os que têm o coração
desapegado das riquezas, E, segundo o sentido da Sagrada Escritura no Antigo
Testamento, os humildes, os que confiam unicamente em Deus”.
Ao que D. Duarte Leopoldo acrescenta: “Pobres de espírito
não são os tolos, os idiotas, os ignorantes etc., como erradamente entendem
alguns. São os humildes, os que não têm apego aos bens da Terra, os que
voluntariamente renunciaram a ele para mais de perto seguirem a Jesus Cristo.
Assim, pois, um pobre mal satisfeito com a sua sorte, dominado pela ambição e
pelo orgulho, é um rico de espírito; não é para ele o reino do Céu. Do mesmo
modo, no seio da abundância e na prosperidade, pode um rico ser pobre de
espírito pelo nenhum apego aos bens da fortuna, pelo espírito de caridade e
submissão à vontade de Deus. O santo homem Jó é um dos mais belos exemplos
desta verdade”. Porém, “não basta produzir frutos; é preciso produzi-los na
paciência. A paciência é a vida de provação, não é o sentimento de uma hora,
mas a perseverança na força, nascida de um princípio permanente e sobrenatural:
é um ato repetido até o fim da vida, é a virtude em estado de hábito”.
O Terceiro Catecismo da Doutrina Cristã, conhecido como
Catecismo de São Pio X, diz a respeito da primeira bem-aventurança: “Os pobres
de espírito, segundo o Evangelho, são aqueles que têm o coração desapegado das
riquezas; fazem bom uso delas, se as possuem; não as procuram com solicitude,
se não as têm; e sofrem com resignação a perda delas, se lhes são tiradas”.
Pelo que afirma o teólogo e diácono Mcmanaman: “Essa é a
primeira e mais fundamental condição para pertencer a Cristo e, portanto, a
primeira condição para entrar na alegria do Reino de Deus. Aqueles que são
pobres em termos de riqueza material estão profundamente cientes de sua
carência. Da mesma forma, aqueles que são pobres de espírito estão cientes de
sua carência espiritual, isto é, estão cientes de sua necessidade absoluta de
Deus; assim, eles se abrem para Ele. O resultado desse simples ato de abertura
é o presente do reino dos céus”.
Por sua vez, a respeito dessa primeira bem-aventurança, diz
o célebre jesuíta Cornélio a Lápide: “A fim de que o espírito, ocupado tão
somente com os bens temporais, não ponha menos cuidado em possuir os bens
eternos, o cristão deve ter tanta confiança na divina Providência,
diz São Gregório, que, ainda quando não se possa procurar o necessário para a
vida, deve estar bem convencido de que o necessário nunca lhe haverá
de faltar”.
Segunda bem-aventurança: Bem-aventurados os
mansos, porque eles possuirão a Terra. (Versículo 4)
O diácono Mcmanaman comenta a respeito desta segunda bem-aventurança:
“Um espírito manso é um espírito gentil. Os pobres de espírito que choram a
miséria dos outros porque realmente conhecem essa miséria e são movidos a
compartilhá-la, são gentis para com os que sofrem. Os mansos não se ofendem
rapidamente com os outros; são muito pacientes com eles porque sabem que Deus
sempre foi paciente com eles. Os mansos são controlados, controlam suas
emoções, em particular a paixão da ira. Mansidão, entretanto, não significa a
supressão da ira. Lembre-se de que Jesus ficou zangado com os cambistas no
templo e os expulsou. A ira que é governada pela razão e é uma resposta à
verdadeira injustiça, não é pecaminosa, mas virtuosa; a decisão deliberada de
manter a ira viva em um espírito de falta de perdão, entretanto, é pecaminosa”.
Pelo que o grande pregador francês do século XVII, Bossuet —
citado pelo Pe. Royo Marin, O.P. em sua Teologia da Perfeição Cristã
—,completa: “Podemos dizer, se observamos o que se passa dentro de nós, que
nossas paixões são todas redutíveis de amor, que engloba e suscita todas as
outras. O ódio por algum objeto não surge a não ser por causa do amor que temos
por alguma outra coisa. Eu odeio a doença porque amo a saúde. […] Aversão e
tristeza são um amor que afasta alguém de um mal que o privaria de seu bem. […]
A ira é um amor que se irrita ao ver que alguém o quer privar de seu bem, e se
levanta para defendê-lo. Em uma palavra, reprimi o amor, e não haverá paixões;
suscite o amor, e todas as outras paixões nascerão”.
Acrescenta o Pe. Royo Marin na obra citada: “Quando nos
deixamos levar por um impulso desordenado, sentimos imediatamente a dor do
remorso. Se, pelo contrário, resistimos a esse impulso, experimentamos uma
sensação de satisfação do dever cumprido. Isso é uma prova convincente do fato de
que somos agentes livres com relação ao impulso das paixões, e que seu controle
e governo está em nossas mãos. […] Não há dúvida de que há graves dificuldades
e obstáculos no começo, mas gradualmente a pessoa pode obter perfeito controle
de si mesmo. […] Primeiro, é necessário estar firmemente convencido da
necessidade de combater as paixões desordenadas por causa da grande perturbação
que causa em nós. As paixões perturbam nosso espírito, impedem a reflexão,
tornam impossível formular um juízo sereno e balanceado, enfraquecem a vontade,
exaltam a imaginação, provocam uma mudança nos órgãos corporais, e ameaçam
destruir a paz de espírito e a tranquilidade de consciência. […] Do ponto de
vista psicológico, não há dúvida de que o melhor remédio contra as paixões
desordenadas é a firme e decidida vontade de vencê-las. Mas uma vontade
puramente teórica ou desejo platônico não é suficiente; tem que haver uma
decisão enérgica e determinada, que se traduz em ação pelo uso dos meios
necessários de obter a vitória, e especialmente se é o caso de combater uma
paixão que está profundamente enraizada por um longo período de mau uso”.
Nesse sentido, adverte Cornélio a Lapide: “Cuidai de que não
desapareça jamais a mansidão de vosso coração, diz Santo Agostinho: De
corde lenitas non recedat (Medit.).Não vos vingueis por vossa própria
conta, mas dai lugar a que passe a cólera, diz São Paulo” (Rm 12,
19). Deixai passar a ira, isto é, guardai silêncio, cedei àquele que se
enfurece, sede dóceis, sofrei com paciência a injúria, não digais nada até que
a calma tenha modificado vosso coração para que caiba nele a doçura e a
caridade. Jesus Cristo, diz Santo Agostinho, pronunciou estas palavras: ‘Aprendei
de Mim’, não a fazer um mundo, não a criar as coisas visíveis e
invisíveis, não a criar outras maravilhas aqui na Terra, nem a ressuscitar os
mortos; mas, sim, aprendei de Mim como ser manso e humilde de coração. A mansidão e
a humildade são irmãs, como a ira é irmã
do orgulho. O homem não pode ser manso se não é humilde e se o sopro das
paixões não se acalma em seu coração. O mar está tranquilo somente quando os
ventos cessam”.
Porque, como diz D. Duarte Leopoldo: “Os mansos — isto é, os
que não murmuram nem se irritam, os que evitam a discórdia, os que sabem
perdoar com generosidade as ofensas alheias, aqueles, enfim, que suportam o
peso da vida conformados com a vontade de Deus — possuirão a Terra, isto é, a
Terra dos vivos, o Céu. Todavia, mesmo neste mundo, a paciência é uma arma
poderosa para vencer ainda as maiores resistências”.
Terceira bem-aventurança: Bem-aventurados os que
choram, porque eles serão consolados. (Versículo 5)
O Catecismo de São Pio X diz desta bem-aventurança: “Os que
choram e todavia são chamados bem-aventurados, são aqueles que sofrem com
resignação as tribulações, e que se afligem pelos pecados cometidos, pelos
males e pelos escândalos que se veem no mundo, pela ausência do céu, e pelo
perigo de perder a fé”.
A esse respeito, comenta o diácono Douglas: “Parece um tanto
paradoxal que o enlutado possa ser chamado de ‘feliz’ [bem-aventurado], mas
essa bem-aventurança se refere a um tipo especial de luto. Se amamos a Deus,
amaremos todos os que pertencem a Deus, e todo ser humano, sem exceção, vem de
Deus e é amado por Deus com um amor incompreensível. E assim, quanto mais
entramos no coração de Deus, mais descobrimos nosso próximo ali, e então somos
movidos a voltar à Terra, por assim dizer, e vamos procurá-lo, porque sabemos
que lá iremos encontrar o Deus que começamos a amar: descobrimos nosso próximo
em Deus e redescobrimos Deus em nosso próximo. Porque os amamos como ‘um outro
eu’, o sofrimento deles também se torna nosso. Choramos por eles, pois é tão
difícil permanecer indiferente ao sofrimento dos outros depois que descobrimos
e entramos no coração de Deus. São os pecados do homem, a fria indiferença dos
outros para com Deus e o próximo que nos enchem de tristeza. Esta, porém, é uma
tristeza abençoada, uma tristeza que não é incompatível com a alegria, mas
existe com ela, pois é a alegria de ter sido convidado para a tristeza de
Cristo, que é uma tristeza cheia de alegria”.
Ao que acrescenta Cornélio a Lapide: “A compaixão e
uma terna amizade são um bem que está em contrapeso ao mal causado
pela dor. Aquele que se compadece proporciona ao coração lastimado um alívio
proporcionado a seus sofrimentos: toma a metade das aflições que pesam sobre o
desgraçado; e este, fortificado, sofre com mais facilidade e resignação aquelas
provas a que está sujeito. Uma carga dividida faz-se menos pesada. […] Quem
está enfermo que eu não esteja enfermo com ele? — pergunta aquele grande
Apóstolo aos Coríntios: ‘Quis infirmatur, et ego non infirmor?’ (2
Cor 2, 29). Se um membro padece, todos os membros se compadecem: ‘Si quid
patitur unum membrum, compatiuntur omnia membra’(1 Cor 12, 26).Sede todos,
diz São Pedro, de um mesmo coração, compassivos, amorosos para com todos os
irmãos, misericordiosos, modestos, humildes, não pagando mal com mal, nem
maldição com maldição, antes, pelo contrário, bens ou bênçãos, porque a isto
sois chamados, a fim de que possuais a herança da bênção celestial (cf. 1 Pd 3,
8-9)”.
D. Duarte Leopoldo observa: “Bem-aventurados os que choram
os seus pecados e os dos seus irmãos. Santas lágrimas que tanta consolação
merece no Céu. Também as lágrimas que, todos os dias e com tanta abundância,
caem dos olhos dos pobres, dos aflitos, dos doentes e abandonados têm
bem-aventurança. ‘Lázaro só teve males na vida’, diz Abraão ao mau rico, ‘agora
ele é consolado’”.
Falando sobre a razão pela qual devemos chorar e sofrer por
nossos pecados, diz o Pe. Royo Marin: “Cada pecado, mesmo que pareça
insignificante, é uma desordem, e por isso mesmo é uma deformidade e feiúra da
alma, uma vez que a beleza da alma consiste no esplendor da ordem.
Consequentemente, qualquer coisa que por sua natureza tenda a destruir o pecado
ou apagar sua marca na alma deve, por isso mesmo, embelezá-la. Por essa razão o
sofrimento purifica e embeleza a alma. […] É impossível medir o poder redentor
do sofrimento oferecido à justiça divina com uma fé viva e um ardente amor
através das Chagas de Cristo”.
Quarta bem-aventurança: Bem-aventurados os que
têm fome e sede de justiça porque eles serão saciados. (Versículo 6)
Comenta o Pe. Royo Marin: “A palavra justiça é
frequentemente usada na Escritura como sinônimo de santidade; mas como uma
virtude especial é um hábito sobrenatural que inclina a vontade constantemente
e perpetuamente a render a cada qual o que lhe é estritamente devido. […] Sua
importância tanto na vida social quanto pessoal é evidente. Ela põe as coisas
em sua reta ordem, e desse modo prepara o caminho para a verdadeira paz, que
Santo Agostinho define como a tranquilidade da ordem, e a Escritura como obra
da justiça”.
D. Duarte explica que “fome e sede de justiça é a
necessidade que sente toda alma boa e reta, todo coração bem formado, de fazer
a vontade de Deus, essa vontade de que Jesus fazia o seu alimento. O meu
alimento é fazer a vontade daquele que Me enviou. Bem-aventurados os que
devoram com prazer o pão que Jesus lhes apresenta, e bebem com delícia a água
que Ele ofereceu à Samaritana”.
O diácono Mcmanaman observa: “Os indiferentes não sofrem
pelas feridas dos outros. […] Muitos, na verdade, se deleitam secretamente com
os infortúnios dos outros, razão pela qual as más notícias se espalham
rapidamente. Muitos simplesmente não se irritam com as injustiças ao seu redor
e, embora eles sejam muito apaixonados por seus objetivos, essas ambições
geralmente têm pouco a ver com tornar este mundo mais justo, e mais a ver com
sua própria realização individual. Aqueles que entraram em Cristo sofrerão
muita fome e sede, porque há muita injustiça ao nosso redor. Quanto mais
intenso for o seu amor, mais intensa será a sua fome e sede; bem-aventurado se
você vive com este tipo de fome e sede, porque isso significa que você entrou
na fome e sede de Cristo”.
Quinta bem-aventurança: Bem-aventurados os
misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia. (Versículo 7)
Comenta o saudoso Arcebispo de São Paulo, “Os
misericordiosos, isto é, os que perdoam, os que se compadecem das misérias do
próximo, os que choram com os que choram, os que curam as feridas do corpo e da
alma daqueles que sofrem; enfim, os justos, bons e dedicados, no último dia
Nosso Senhor será também misericordioso para com eles”.
“Um dos modos de se ser misericordioso é praticando a tão
esquecida virtude da afabilidade”, como diz o Pe. Royo Marin: “Há numerosos
atos ou manifestações da virtude da afabilidade, e todos eles derivam da
amizade por nossos próximos. Benignidade, polidez, simples louvor, indulgência,
sincera gratidão, hospitalidade, paciência, mansidão, refinamento de palavras e
atos etc. Essa preciosa virtude é de extrema importância, não somente na associação
com amigos, vizinhos e estranhos, mas de um modo especial dentro do círculo da
própria família, onde é muitas vezes negligenciada”.
A isso acrescenta o diácono teólogo: “Cristo revelou Deus
como misericórdia absoluta. Ele veio para morrer por nós e cancelar a dívida do
pecado, que não pudemos pagar. A palavra latina para misericórdia é
‘misericordia’ (miser, cor, dia). A palavra significa o coração (cor) de Deus,
tocando nossa miséria (de avarento). Deus entra em nossa miséria tornando-se
homem na Pessoa de Cristo. Ele o faz para injetar o conforto de sua presença
nas profundezas de nossas trevas para que, quando a vida se torna escura para
nós, não tenhamos que sofrer sozinhos. Quando somos tocados por sua
misericórdia, também nos tornamos misericordiosos; segui-lo é nos tornarmos
canal da sua misericórdia”.
Comentando a virtude da concórdia, afirma Cornélio a Lapide:
“Em três coisas compraz-se o meu coração, diz o Eclesiástico, as quais são da
aprovação de Deus e dos homens: a concórdia entre os irmãos e parentes, o amor
dos próximos, e um marido e mulher bem unidos entre si (Pr 25, 1-2). A
concórdia entre irmãos é a paz, diz São Agostinho; a concórdia entre irmãos é a
vontade de Deus, a alegria de Jesus Cristo, a perfeição da santidade, a regra de
justiça, o fundo da doutrina, a zeladora dos costumes, e em todas as coisas um
a disciplina digna de louvor: ‘Pax concordia fratrum, concordia fratrum
voluntas Dei est, juncunditas Christi, perfectio sanctitatis, justitiae regula,
matéria doctrinae, morum custodia, atque in rebus omnibus laudabilis
disciplina (Sentent.)’. Ali onde há a concórdia, ali está Jesus
Cristo, ali está Deus, ali está toda a Santa Trindade, formando, de certo modo,
naqueles que vivem bem unidos, uma trindade na unidade, isto é, a união dos
espíritos, dos corações e das ações”.
Sexta bem-aventurança: Bem-aventurados os limpos
de coração, porque eles verão a Deus. (Versículo 8)
Eis o comentário que faz John P. Van Kasteren em The
Catholic Encyclopedia sobre essa bem-aventurança: “De acordo com a
terminologia bíblica, ‘pureza de coração’ (versículo 8) não pode ser encontrada
exclusivamente na castidade interior, nem mesmo, como muitos estudiosos
propõem, em uma pureza de consciência geral, em oposição à pureza levítica ou
legal, exigida pelos Escribas e fariseus. Pelo menos o lugar apropriado para
tal bênção não parece ser entre a misericórdia (versículo 7) e a pacificação
(versículo 9), nem depois da virtude aparentemente mais abrangente da fome e
sede de justiça. Mas frequentemente no Antigo e no Novo Testamento (Gn 20: 5;
Jó 33: 3, Sl 23: 4 (24: 4) e 72: 1 (73: 1); 1 Tm 1: 5; 2 Tm 2:22) o ‘coração
puro’ é a boa intenção simples e sincera, o ‘olho são’ de São Mateus (6:22). E,
portanto, oposto às consequências não confessadas dos fariseus (Mt 6: 1-6,
16-18; 7: 15; 23: 5-7, 14) Este ‘olho são’ ou ‘coração puro’ é mais do que
necessário nas obras de misericórdia (versículo 7) e zelo (versículo 9) em
favor do próximo. E é lógico que a bênção, prometida a esta contínua busca pela
glória de Deus, deve consistir na ‘visão’ sobrenatural do próprio Deus, o
último objetivo e fim do reino celestial em sua conclusão”.
A esse respeito, comenta o citado diácono Douglas que “O que
é puro não se mistura. Por exemplo, falamos de xarope de bordo puro que não é
misturado com qualquer outra coisa. Ser puro de coração é ter um amor indiviso
por Deus, um coração não misturado com qualquer outro amor competitivo. Algumas
pessoas amam a criação mais do que o Criador; eles amam as coisas; eles adoram
coisas, riquezas, os prazeres da Terra, a glorificação do eu etc. Eles podem
amar a Deus, mas seu amor está misturado com um amor desordenado de si mesmo”.
Por sua vez, observa D. Duarte: “Os corações puros,
desprendidos dos sentimentos carnais e sensuais que mancham o corpo e a alma;
os corações abertos a tudo o que é nobre, santo, justo, amável e virtuoso, a
tudo o que é louvável nos bons costumes, como diz São Paulo. Esses corações
verão a Deus neste mundo, através das sombras da fé, e no Céu O contemplarão
face a face. Pelo contrário, a impureza de coração é o maior obstáculo, e quase
sempre o único, que encontram as verdades da Religião”.
Sétima bem-aventurança: Bem-aventurados os
pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus. (Versículo 9)
Sobre esta bem-aventurança, diz o citado diácono: “A palavra
latina para paz é ‘pax’, que significa unidade. Conforme profetizou
Ezequiel, o Senhor reunirá seu povo de todas as nações; pois o amor une, o ódio
divide. Um pacificador é aquele que se esforça para unir, para manter uma
harmonia genuína entre as pessoas. Um pacificador não é um ‘pacifista’; antes,
ele está disposto a ‘fazer’ a paz, a trabalhar por ela, até mesmo a lutar por
ela. Um agressor injusto, que pode incluir uma nação inteira, tem a intenção de
destruir a paz; portanto, um verdadeiro pacificador está até disposto a pegar
em armas e lutar, talvez morrer pelo pax da nação, como fizeram
nossos veteranos de guerra. Portanto, não há exigência de que alguém se torne
um pacifista se for um cristão”.
Já John P. Van Kasteren afirma: “Os ‘pacíficos’ (versículo
9) são aqueles que não apenas vivem em paz com os outros, mas também fazem o
possível para preservar a paz e a amizade entre a humanidade e entre Deus e o
homem, e para restaurá-la quando for perturbada. É por causa desta obra
piedosa, ‘uma imitação do amor de Deus pelo homem’, como São Gregório de Nissa
o denomina, que eles serão chamados de filhos de Deus, ‘filhos de vosso Pai que
está nos céus’ (Mt 5 : 45)”.
Por outro lado, diz D. Duarte: “Os pacíficos, os
que odeiam as discussões, dissensões e demandas injustas; os que buscam, de
preferência, tudo o que une e aproxima os corações; os que têm, por assim
dizer, o culto dos direitos alheios. Filhos da paz, eles
preferem ceder o seu direito, para não defendê-lo com quebra da caridade”.
Oitava bem-aventurança: Bem-aventurados os que
sofrem perseguição por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus.
(Versículo 10)
Escreve a revista Permanência: “A oitava
bem-aventurança é uma confirmação e manifestação de todas as precedentes. Pois,
quem está firmado na pobreza do espírito e na mansidão e nas demais
bem-aventuranças, não se afasta, por isso mesmo, desses bens por nenhuma
perseguição. Por outro, a oitava bem-aventurança concerne, de certo modo, às
sete precedentes”.
“Esta bem-aventurança final — diz o diácono MCManaman —
implica claramente que existe uma diferença real entre alegria e prazer; pois
não há prazer em ser perseguido, mas encontramos uma alegria secreta nos
próprios recessos da alma, pois nos demos conta de que recebemos o dom de ser
atraído para o próprio coração do silêncio dele. Cristo é alegria, e é sendo
perseguido por causa dele que realmente O conhecemos. O silêncio de Cristo é
mais alegre do que as maiores alegrias que a Terra tem para oferecer, e é isso
que a perseguição por causa de Cristo faz por nós, nos tira do barulho do mundo
e nos leva ao descanso profundo de seu outro silêncio mundano . Jesus pode dar
bem-aventurança àqueles que sofrem por pertencerem a ele, porque ele não é um
mero homem; ele é totalmente Deus e totalmente homem, e como Deus escolheu
juntar-se à natureza humana para injetar no sofrimento humano a própria alegria
de sua vida sobrenatural, que é tão diferente de qualquer outra alegria que de
fato nos deixa em silêncio. Nós descansamos nele; pois encontramos tudo o que o
coração humano procura, mas não pode encontrar fora dele”.
Ao que afirma Van Kasteren: “Assim, por uma inclusão não
incomum na poesia bíblica, a última bênção remonta à primeira e à segunda. Os
piedosos, cujos sentimentos e desejos, cujas obras e sofrimentos são
apresentados diante de nós, serão abençoados e felizes por sua participação no
reino messiânico, aqui e no além. E visto nos versos intermediários parecem
expressar, em imagens parciais da única bem-aventurança sem fim, a mesma posse
da salvação messiânica. As oito condições exigidas constituem a lei fundamental
do reino, a própria essência e medula da perfeição cristã. Por sua profundidade
e amplitude de pensamento, e sua influência prática na vida cristã, a passagem
pode ser colocada no mesmo nível do Decálogo no Antigo, e do Pai Nosso no Novo
Testamento, e superou ambos em sua beleza poética de estrutura”.
Concluímos com D. Duarte Leopoldo: “A justiça é a causa de
Deus. Os perseguidos combatem por Ele, e Ele se encarrega de os recompensar
como merecem, e ainda mais do que merecem”.
https://www.abim.inf.br/as-bem-aventurancas-e-a-gloria-celeste/
* * *