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terça-feira, 19 de julho de 2022

Médicos e Remédios

Helena Borborema

 


          Itabuna sempre teve excelentes médicos. Em épocas passadas, quando não havia ainda hospital na cidade, nem pronto-socorro, os médicos que aqui se estabeleceram realizaram maravilhas, verdadeiros milagres quando não contavam com os muitos recursos que existem hoje na área da medicina. Um médico sozinho desempenhava todos os tratamentos, tanto em adultos como em crianças. Não havia especialidade para isso ou aquilo. Um médico fazia partos, tratava de febres, doenças infantis, varíola, gripes epidêmicas, fraturas, pequenas cirurgias de emergência e, o que era de espantar, apesar da falta de recursos no meio e na própria medicina, quando não se falava aqui em antibióticos, eletrocardiogramas, ultrassom, radiografias e recursos outros, ele lutava para atingir o melhor com a sua competência e conhecimento.

            Em tempos difíceis como aqueles primeiros de Itabuna como vila e como cidade nascente, sem meios de transporte a não ser o burro, o médico estava sempre pronto para atender a qualquer chamado de emergência, a qualquer hora do dia ou da noite, na cidade e na zona rural, indo a pé, se a casa era perto, percorrendo ruas escuras e becos perigosos pelas tocaias, ou montado a cavalo, se a casa era afastada. Às vezes tinha de atravessar pedaços de cacauais, iluminado pela candeia do acompanhante, ou atravessar de canoa ou balsa um rio cheio, pondo em risco a própria vida, apesar de saber que não receberia nenhum pagamento, mas sabendo que uma vida estava a depender dele: uma mulher que se esvaía em trabalho de parto difícil sem que a parteira pudesse fazer mais nada, uma criança ardendo em febre, um pai de família prostrado por algum mal, sem socorro, sem nenhuma assistência. Às vezes a remuneração era uma carga de milho verde, um caçuá de laranjas, ou uma leitoa, um peru. Sei que a lembrança deles ficou gravada na memória e no coração de muita gente de Itabuna. Há o caso do Dr. Soares Lopes, que aqui clinicava, e teve de atender a um homem trazido da roça dentro de uma rede, em situação crítica, com o corpo várias vezes perfurado pelas balas de dois jagunços. A salvação seria uma cirurgia de emergência. Mas onde, se não havia hospital? Naquela situação  difícil, pediu o Dr. Soares Lopes que lhe arranjassem uma sala vazia ou um galpão e uma mesa, e a operação foi feita com toda aquela precariedade. Um braço foi amputado acima do cotovelo. Os ossos de uma perna e um queixo quebrados pelas balas foram consertados, e ou outros orifícios de tiros, tratados. Eu, menina, conheci o homem muitos anos depois do fato, já envelhecido, puxando de uma perna, um braço amputado, com duas fundas cicatrizes no peito, andando na rua e trabalhando ativo numa banca de jogo na praça Adami, como eu o vi numa noite de Natal. Isto graças à presteza e coragem de um médico do interior, que guardava sob a sua modéstia a alma de um santo e a competência de um grande profissional da medicina.

            Houve em Itabuna outra figura de médico um tanto diferente dos demais por sua extrema simplicidade. Era o doutor Ápio Lopes, muito procurado pela confiança que a clientela tinha em suas receitas. Modesto, pouco ligava para a sua aparência pessoal e do consultório. Não sei quando chegou a Itabuna, nem de onde veio, já o conheci bem velho. Tinha consultório numa das ruas do centro, a Oswaldo Cruz. Branco, rosto corado, fanhoso, era querido e respeitado pela clientela. Alguns diagnósticos ele dava só examinando a língua, os olhos e a tonalidade da pele. Creio que acertava em cheio, porque eu, menina, só ouvia elogios à eficiência do bom doutor.

            Ótimos médicos prestaram os seus serviços a Itabuna naqueles tempos difíceis de atentados à vida, epidemias e doenças várias que assolavam a população. A cidade pode se orgulhar de seus médicos, que dignificaram e enobreceram a profissão, no presente e no passado.

            Além do tratamento médico, havia a medicina caseira, muito aplicada. Esta, muitas vezes, era para as crianças um terror. Se o menino não queria comer, andava pálido, sem apetite, a primeira providência era chamar a rezadeira. Podia ser “olhado”. Esta era convocada e já chegava trazendo seus ramos de arruda ou pinhão-roxo. Ainda vejo nitidamente as figuras de dona Maria e dona Bertolina, muito procuradas e acreditadas. Feita a reza, às vezes uma só não bastava, eram três ao todo, aguardava-se a melhora. Se a falta de apetite continuava era sinal de vermes, as lombrigas. A sorte da criança estava lançada. Eu, no caso, entrava em clima de terror, porque sabia não ia demorar muito meu pai chegar em casa com o vidro de “Lombrigol”. A data era marcada: no minguante ou lua nova, caso contrário os vermes não morriam. Era um óleo grosso, intragável, de cheiro repugnante. No dia escolhido eu era acordada bem cedo, ainda no lusco-fusco. A cena que meus olhos viam, metia medo; minha mãe, de pé, com o vidro de remédio numa mão e a colher na outra, e meu pai ao lado, para dar reforço. Eu fazia horrores, chorava, trancava a boca, até por fim ser dominada e obrigada a engolir a colherada da droga. Depois disso vinha o resguardo: trancada no quarto o dia inteiro, sem ver a luz do sol e nenhuma cor verde. Se ocorresse olhar uma planta ou a claridade do sol, as lombrigas não morriam. A alimentação era bem fraca: chá preto e torradas para enfraquecer os vermes. No segundo dia, podia comer umas mantinhas de carne grelhada, com arroz, quase sem sal.

            O óleo de rícino era outro pavor da meninada. Não sei por que muito usado naqueles tempos. Se uma comida fazia mal, tinha um problema digestivo, se curava com chás. Se persistia o problema, não havia dúvida, entrava em cena o óleo de rícino. Era outro desespero. Minha mãe amenizava a minha angústia convencendo-me a segurar uma chave na mão – ajudava a não sentir o gosto do remédio, me dizia ela -, enquanto com a outra mão segurava uma banda de laranja, para chupar assim que engolisse o óleo grosso de cheiro repugnante que descia pela minha garganta.

            Nos casos de gripe forte, o remédio era um chá de sena com maná, comprado na farmácia. Era tomado frio, e tinha gosto intragável. Se aparecia o sarampo, para o tratamento buscava-se a flor do sabugueiro. Havia grande variedade de folhas para chás e para banhos, indicadas nos mais diversos males.

            Um tratamento muito usado era a “Emulsão de Scott”. Creio que toda criança de Itabuna, da minha geração,  a conheceu; era indispensável se tinha tosse ou após uma gripe. Muitos a tomavam para ajudar no crescimento. Se a criança andava magra ou anêmica, o remédio era “Capivarol”.

            Antigamente o resguardo era fator importante para consolidar a cura de qualquer enfermidade; para a parturiente, então, ele era importantíssimo: sete dias no quarto em repouso, pés calçados com meias de lã para evitar friagem, e algodão nos ouvidos para não ouvir barulho; alguém da família vinha para tomar conta da casa: a mãe, a tia, a irmã, e, em último caso, uma comadre. Para a alimentação da parturiente só canja de galinha nova ou frango. Tudo o mais era vetado. Verduras que davam em ramagens, como o maxixe e a abóbora, eram considerados veneno. Limonada, nem falar. Peixe de couro era proibido; peru ou pato só podia comer um ano depois da criança nascida. Era com todas essas precauções que as senhoras enfrentavam os nascimentos de cinco, oito, doze, quinze filhos. Como não havia hospital nem maternidade, os partos eram feitos em casa, geralmente por parteiras eficientes pela prática e dedicadas pelos cuidados. Itabuna teve boas parteiras como dona Joventina, dona Glicéria, dona Guilhermina, e mais tarde, as diplomadas dona Otaciana, Olga Couto, e dono Júlia.

            O pior tratamento a que uma criança era submetida era o dentário. Não havia dentista só para crianças, como hoje. Quando se entrava num gabinete dentário, a primeira coisa que se via era um armário de vidro, e, nas prateleiras, bem arrumada, a exposição da aparelhagem toda, instrumentos que pareciam de tortura, agressivamente à vista. O meu drama começava logo que olhava para eles. Era assustador; desatava a chorar e a tremer. Assim, quando sabia que seria levada ao dentista, a minha primeira reação era esconder os sapatos; até que fossem encontrados, já tinha passado o horário, e assim, ia me safando daquela ameaça e da dor. Em casa, quando eu tinha dor de dentes, esta era aliviada com a “Cera do Dr. Lustosa”, então muito usada.

            Na minha infância, um dos cuidados que as mães tinham com os filhos, era a proteção contra o “vento sul” que, conforme eu ouvia falar, causava doenças. Quantas vezes eu estava brincando fora de casa, quando chegava a ordem: “entre; o vento sul está soprando, ele trás doenças“. – Que vento era aquele que minha mãe tanto temia? De onde vinha? Muito mais tarde fiquei sabendo que era o vento frio que soprava do Sul, vindo das matas próximas, carregado de umidade; como a cidade era mais aquecida, ele provocava uma queda repentina de temperatura e isso causava gripe, resfriado, alergias, etc.

            Sob os aspectos da saúde, as crianças de hoje são muito mais felizes do que as de anos atrás, porque desconhecem o pavor do consultório dentário que eu conheci, desconhecem as regras draconianas da medicina caseira, o cheiro e gosto horríveis da sena, do óleo de rícino e do “lombrigol”.

 

(RETALHOS)

Helena Borborema

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