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sexta-feira, 27 de outubro de 2023

 

O Autor e o Leitor *

Cyro de Mattos 

 


            Primeiro foi o leitor, tempos depois veio o autor, ambos os dois persistem até hoje, o segundo com mais intensidade, em diversos gêneros, a estrada a essa altura comprida. Adotado na escola e universidade. Com reconhecimento e distinções relevantes.  Primeiras leituras da infância foram em almanaque de farmácia e revistas em quadrinhos, ler era então simples passatempo. Vício entre o trivial e a aventura com os meus heróis imbatíveis: Homem Submarino, Batman, Mandrake, Fantasma, Capitão Marvel, Tocha Humana e Durango Kid. A galeria de heróis ampliava-se aos domingos, na matinê do único cinema da cidade. Na tela do Cine Teatro Itabuna: Tarzan, Falcão do Deserto, Roy Rogers, Flash Gordon e Robin Hood, dentre outros.

            Descobri Monteiro Lobato graças a seu Zeca Freire, o dono da farmácia. Ele me emprestou dois livros de Monteiro Lobato, As Caçadas de Pedrinho e A menina do nariz arrebitado. Logo percebi que aquele autor vinha para ficar no coração da garotada, com novas vozes do mundo, novas cores do sonho.

            Ao retornar das aulas do ginásio na pequena cidade, passava na livraria e papelaria A Agenciadora, que ficava na rua do comércio. Lá fui encontrando, aos poucos, Júlio Verne, Edgard Allan Poe e Charles Dickens. A leitura iniciante do menino do interior ia se enriquecer na Capital, para onde o pai o enviara sob a expectativa de ver mais tarde o filho se tornar um advogado. Lá costumava visitar a biblioteca pública do Estado e a do Colégio da Bahia (Central) e, quase todos os dias, passava na Livraria Civilização Brasileira, na Rua Chile. O estudante buscava nas bibliotecas, livrarias e “sebos” aquele espaço onírico que o prazer da leitura proporciona entre descobertas e sustos, carícia e emoção. O vício da leitura vindo da infância passava a ser um hábito, introduzindo no momento jovial uma prática social do indivíduo que é impelido a usufruir um objeto tecido com os sinais visíveis da escrita.

            O ato de ler me faz pensar numa série de observações e sensações, gradações e variações próprias da natureza humana. Ninguém escreve um livro para ficar no fundo da gaveta, por mero diletantismo, razão pela qual não se separa os dois termos da equação livro e leitor. O que pode acontecer é que o autor de livros não passa de um incompetente usuário da palavra mítica e frustrado inventor de poemas ou peças de ficção. Por isso mesmo não fica, nasce morto, não conquista prêmios literários condignos, não possui leitores, seus textos em livro não recebe a atenção da crítica especializada. Evidente que esse tipo de autor não conta.

            O livro como um objeto tecido de elementos que buscam alcançar o leitor não é uma abstração teórica para ocupar tão somente a experiência pessoal do autor numa aventura intelectual. Inventada a história ou produzido o poema, cujo texto materializa-se no objeto escrito, o autor não mais exerce domínio sobre a sua ilusão em forma de linguagem, de um código cifrado no qual entram signos e símbolos. No ato de criar buscou a si e o outro, o apelo do pensamento não pode ficar indiferente. Há que pulsar em sentimentos e gestos, armadilhas e descobertas. Porejar nesse pacto íntimo em que se manifestam situações coincidentes, lembranças, afinidades, recusas, enfim, um relacionamento forte a circular em muitos casos como paixão, ao mesmo tempo que oscila em seu vaivém intervalar entre o amor e o ódio.

            O que se espera dos que escrevem um texto literário? Domínio da língua e facilidade em organizá-la ou reinventá-la como linguagem de expressão pessoal. Habilidade no uso dos meios para a criação de uma obra de arte, no caso a obra literária.       E, ponto essencial, capacidade para repercutir no outro o que é dele próprio, pensamento e emoção. O conteúdo fica por conta do interesse suscitado pela história inventada ou sentimento de mundo sugerido na ideia fixada através de uma forma eficaz.

Por uma necessidade obsessiva de manifestar pulsões vitais profundas, para conhecer a vida e transmitir o saber inconsciente, dizer o mundo além da superfície, fundá-lo, transformá-lo, escreve-se nesse gesto de solidão solidária, de sacrifício, mas que também dá prazer.  O parto se faz sofrido, entre sombras e ânsias, numa profissão de fé e amanhecer fundamental. O fluxo criativo emerge da tensão no drama, também  da escrita  com  ternura, graça, ludismo, ritmo fácil para fazer alegrias, trazer risos, tão necessários.

            Ler é colher no texto tudo o que foi escrito. É gostar, ver e sentir. Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê. É se deixar invadir pelo espetáculo da vida posto de maneira atuante através da palavra sensível no texto cheio de significados. Há vários tipos desse personagem que sem a sua participação o livro é coisa morta. Sem circular com o leitor, o livro fica impedido de ampliar suas potencialidades de ver o mundo.

Para o leitor desavisado, comum, sem hábito e intimidade com questões estéticas, de linguagem e técnica, evidente que lhe interessa o livro  com um conteúdo de captura fácil. Este tipo de leitor é também importante, apenas difere daquele que busca os pontos essenciais da vida postos no texto.  Difere apenas no lugar que ocupa no ato da leitura. Para o outro tipo de leitor, o ato da leitura não é simples passatempo e prazer.   Decorre da própria dinâmica da vida, dado que texto e homem estão sempre rompendo os limites no prodígio do existir. Para esse tipo de leitor, agora o ato de leitura é uma maneira de escolher a finitude e a grandeza da nossa condição humana. Já não há apenas passatempo e prazer, mas percepção do mundo de forma aguda, modo de revelar-se e impor-se através de uma abertura, sondagem e direção entre infinitas possibilidades vitais, encontro com os sentidos ampliadores de sua dimensão existencial. A leitura para ele pertence a três objetivos básicos do conhecimento: a amplitude, a profundidade e a utilidade. É aliada do autor numa cumplicidade mútua, o privilégio da fruição é substituído pelo da recepção em níveis mais largos. A obra literária não é uma companhia silenciosa, mas acontecimento que repercute a seu lado. Ela abre a sua alma, fala enquanto ele se fala, lê e se lê. Sentidos imaginados e ideias compreendidas num pacto íntimo, emoção e pensamento em vários graus de intensidade, coincidentes ou não.

            Um terceiro tipo de leitor percebe-se naquele que escolhe elementos e ideias para uma operação crítica do texto. Separa, descobre, aprofunda, revela caminhos e prodígios que o leitor comum, e até mesmo o consciente de certos sentidos estéticos, não percebe na obra. Refiro-me aos críticos e aos professores de literatura. Necessários, em seus estudos e comentários, critérios explicativos e análises qualitativas, à compreensão do texto literário, através dos elementos que expressam a vida por meios de palavras polivalentes com sua feição mítica.

            A leitura de um texto literário requer uma radical modificação em nossa maneira de ver e sentir o mundo. Costuma-se dizer que o gosto pela leitura se adquire pelo hábito de ler. Lento é o aprendizado que vai capacitando a romper com limitados conceitos de vida e predispondo a aceitar outras formas de manifestar o pensamento, dizer o mundo sem ser superficial. Penso que a mais profunda finalidade da arte literária seja a de colocar o ser humano em permanente reintegração e participação com a sua humanidade.

            O ato de escrever que se completa com o de ler, enquanto concordância de verdade e beleza, vínculo de gravidade e jogo, equilibra a vida. Torna o viver suportável, essencial, útil, solidário e cativante. Digam que o fato político comanda o mundo. O econômico determina o indivíduo no seu dilema de ser animal faminto e sedento. Dado ser impossível a apreensão total da vida por qualquer forma de conhecimento, só restando captar a sua realidade por via indireta, impõe-se que para representá-la de modo mais abrangente o fato de usar as palavras polivalentes como meios de expressão. Depreende–se então que só a palavra tem o poder de construir verdades essenciais com metáforas, símbolos, alegorias e parábolas. Ou desfazer mentiras com impressões, emoções, sentimentos, que o autor logra extrair da vida.  Nessa perspectiva, das rupturas em aceno como possibilidade do amor, em diálogo consciente com o mundo, só a palavra no texto literário, como expressão do eu consciente mais o outro mais o mundo, enriquece e não toma. Com suas mentiras verdadeiras produzidas na mente do autor, na alquimia do espírito, ao leitor oferta as mais amplas possibilidades de conhecer o eu e suas circunstâncias críticas. 

            Vale a pena repetir quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê. Pouco sabe dos múltiplos significados que, sob a superfície dos seres e objetos, desvendam os lados escuros no mistério da vida.


*Resumo da palestra proferida no Projeto “Encontro com o Leitor”, no “Encontro Estadual do Programa Nacional de Incentivo à Leitura Pró-Ler”, promovido pela Fundação da Biblioteca Nacional, Casa da Leitura-MINC e Rede de Leitura da Bahia, realizada no auditório da Faculdade de Direito da UFBa., em Salvador, 1997. 

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sábado, 21 de outubro de 2023

O Amigo Jorge Amado 

Cyro de Mattos                                             .    



 

              Enviei o primeiro livro que escrevi para Jorge Amado, seguindo conselho do amigo João Ubaldo Ribeiro, companheiro de geração. Não esperava que viesse alguma opinião dele sobre o meu pequeno volume de contos, riscado anos depois de minha bibliografia por ter sido escrito por autor imaturo. O texto envelheceu cedo. Fiquei surpreso por ver um livro de autor desconhecido ser apresentado à Academia Brasileira de Letras com palavras favoráveis do consagrado romancista Jorge Amado.  

             Outros livros meus foram merecedores de artigos com elogio por parte de Jorge Amado. Eram opiniões impressionistas, mas abonadas com a sensibilidade de quem mais conhece os caminhos do fazer literário na recriação da vida. E mais: ele publicava os artigos que escrevia sobre meus livros em jornais importantes como A Tarde, Jornal de Letras (Rio), Suplemento do Jornal do Brasil, Jornal do Comércio (Rio) e Suplemento Literário de Minas Gerais.    

            Esses gestos do criador de Tocaia Grande (Record,1984) aconteceram com outros escritores, emergentes, com obra em andamento, consagrados, baianos ou não. Ele sempre enriquecia o companheiro de letras com suas opiniões, sem esperar nada em troca. Prefácios, orelhas, artigos, depoimentos, apresentações à Academia Brasileira de Letras, um legado literário da melhor qualidade está aí espalhado com o abono do escritor tão lido e traduzido em língua portuguesa sobre livros de nossos escritores. Textos que formam um valioso legado, se coligidos, servindo como importante contribuição à nossa literatura.                

               Com João Ubaldo Ribeiro era diferente. Certa vez, o autor maiúsculo do romance Viva o povo brasileiro (Nova Fronteira, 1984), disse-me que não escrevia prefácio ou   artigo para quem recorresse aos seus préstimos porque podia não gostar do livro e aí o suplicante, que certamente queria receber elogio, poderia com a sua sinceridade se tornar um inimigo dele. Além disso, não queria se desconcentrar de seu ofício, sempre estava escrevendo um livro ou texto, não ia deixar de lado o que estava escrevendo e centrar-se sobre quem devia abrir seus próprios caminhos com suas ferramentas e crenças, sem se apegar na muleta alheia, mas acreditando nas suas qualidades.  

         Neste sentido, sempre concordei e respeitei as atitudes de João Ubaldo. Ele se tornou um dos meus amigos prediletos, criatura do bem, espírito alegre, colega inesquecível da turma de 1962, na Faculdade de Direito da UFBA. Nunca quis me aproveitar de meu bom relacionamento com o consagrado ficcionista e receber dele a opinião favorável de meus escritos. Fiz minha carreira literária com os meus textos publicados em livros, meus prêmios relevantes, que tornaram minha obra com mais visibilidade. Enviei em vários casos os originais de meus livros para as editoras, sem temer que fossem aprovados ou não para publicação, depois da leitura crítica do conselho editorial.   

       Ao escrever sobre Palhaço Bom de Briga (L&PM Editores, 1993), um dos meus livros para as crianças, em artigo publicado em forma de missiva, dirigida ao romancista Josué Montelo, então presidente da Academia Brasileira de Letras, Jorge Amado chegou ao ponto de lembrar meu nome para fazer parte daquela importante instituição das letras brasileiras. Houve exagero. Só mesmo Jorge, com o seu coração doce como mel de cacau, podia distinguir assim meu nome, em gesto que comovia, servia como incentivo para que eu nunca desistisse em minha jornada literária. Embora eu já fosse autor nessa época de mais de vinte livros, entre volumes de contos, poesia e literatura infantojuvenil. Havia conquistado alguns prêmios literários importantes e, entre eles, o Prêmio Nacional Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, por unanimidade, para o meu livro Os Brabos (Civilização Brasileira, 1979), o da Associação Paulista dos Críticos de Artes para O Menino Camelô (Atual Editora, 1992, 12ª. Edição), Menção Honrosa do Jabuti para Os Recuados (Editora Tchê!1987) e várias vezes fui agraciado com o primeiro lugar nos certames  promovidos pela União Brasileira de Escritores (RJ).            

          Jorge Amado exercia a amizade como uma coisa nata, tão dele. E me mostrava sempre que com as mãos nas mãos, o gesto desprovido de interesses pessoais, desligado da religião do egoísmo, tudo fica mais fácil. Com ele não entravam no exercício da vida a inveja e a intriga. Dava-me conta por isso que existia ainda o homem simples como o artista, embora fosse comum encontrar na vida o artista vaidoso e invejoso como o homem.  

          Dizia-se ateu, ele que era cristão porque fraterno, solidário, sincero, humaníssimo. Que coisa muito triste, a vida física de Jorge ter acabado. E tanta gente ruim existe neste mundo velho agindo sempre para fazer o mal porque habita nos lados escuros da vida. Gente com a alma venenosa, às vezes quando tem o poder da mídia nas mãos gosta de fazer o outro como seu refém por puro prazer ou para infundir medo ou para, excluindo as qualidades do ofendido, se afirmar com seus ressentimentos  

          Ainda bem que Jorge Amado deixou para milhares não o irracional como norma de comportamento, a perseguição canina das negações que infunde o medo, mas a esperança nas narrativas que mostram as verdades essenciais dos excluídos ligados à comédia da vida. Esse que nasceu numa pequena fazenda em Ferradas, bairro mãe de Itabuna, passou a infância e juventude em Ilhéus para ser um bem-amado cidadão do mundo com seus belos romances, em inacreditável peripécia porque assim devia ser.     

          Que privilégio ter sido amigo de Jorge Amado.  

 

Cyro de Mattos -Escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Autor premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.

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quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Conversas de ½ MINUTO (31) ‒ Médicos

José Paulo Cavalcanti

 


Mais conversas, hoje só com médicos, em livro que estou escrevendo (título da coluna). ANA VASCONCELOS, advogada. O médico olhou para ela com olhos de pena

‒ Você tem câncer, Ana.

‒ Qual o tratamento?

‒ Nenhum, infelizmente.

Decidiu ir a São Paulo e junta, com mais quatro médicos, confirmou esse diagnóstico. Melhor voltar e morrer no Recife. Só que não conseguia suportar essa espera e decidiu abreviar sua história. Melhor o fim do espanto que um espanto sem fim. Como não tinha coragem para se jogar de um edifício, ou dar tiro na cabeça, escolheu fazer isso dentro de seu carro. Entre segunda e terça, madrugada (sem ninguém na rua para ser atropelado), em reta que começava na Ponte Giratória e findava em muro de concreto, grosso, da Marinha, no Porto do Recife. Lugar perfeito para um acidente automobilístico. Acelerou o velho Gol até chegar a velocidade máxima. Os braços, ao segurar o volante que tremia, estavam já dormentes (foi quando percebeu que morreria sem dores). E viu aquele muro se aproximar. Faltava pouco. Só que um pneu voou e o carro começou a dar voltas. Sem capotar, sorte dela. Até que parou. Saiu, era inacreditável, estava de frente para o tal muro. A menos de um palmo. Então pensou

‒ É coisa de Deus. Ele não quer que eu morra e me trouxe aqui para dizer qual missão reservou para mim. Olhou em volta e viu que, ali, havia só marinheiros e mulheres tentando sobreviver. Seu público não seriam aqueles marinheiros, com certeza. Decidiu criar uma instituição memorável, a Casa de Passagem – dedicada a abrigar, proteger e ensinar ofícios dignos a prostitutas que eram depois colocadas no mercado de trabalho. E Ana bem, sem mais notícias do tal câncer. Enquanto começaram a morrer os médicos que deram aquele diagnóstico. Na última vez que a vi disse, brincando,

‒ Ainda não morreu?, amiga.

‒ Que nada, Zé Paulo, e já decidi, só morro depois de enterrar os cinco médicos que me condenaram.

‒ Até agora... ‒ Quatro já foram. Só falta um.

CARLOS ROBERTO MORAES, cirurgião cardíaco. Pierre Gondim, em Londres, lembrou

‒ Há dois tipos de cirurgiões: os que bebem e os que já beberam o suficiente.

* * *

Me perguntou

– Quantos charutos você fuma?, por dia.

– Só um. Mas todo charuteiro mente muito.

ELIAS SULTANUM, santeiro. Comprou casa velha junto ao Mercado da Ribeira (Olinda). Já morando nela, começou uma reforma. Só que passou a ouvir uma barulheira que não tinha fim. Na quarta noite sem dormir, foi até o meio da escada e anunciou

– Atenção, senhores fantasmas, acabaram as reformas. A casa fica do jeito que está.

Em seguida, foi para o quarto e dormiu bem. Fim das reformas, fim dos barulhos. E ninguém, até hoje, conseguiu explicar o que aconteceu.

Dona JOANINHA, doméstica. Quinta-feira. Maria Lectícia informou que acabou bem uma operação de minha mãe. No ombro, sem riscos. Disse que estava no quarto 405 do Hospital Santa Joana e completou lembrando que já recebia visitas. Tradução, era para ir. Logo. Manda quem pode (ela), obedece quem tem juízo (eu). Ou pensa que tem, o que dá no mesmo. Não sei como, entendi Hospital Português. Errado, claro. Parei longe, calor danado, enfrentei fila no elevador, até que cheguei no quarto andar. Quando abri a porta do 405 lá estava mulher, com certeza cliente do SUS, que me olhou assustada. Ao perceber o endereço errado, e para não perder a viagem, disse

– Mamãe!!!

– Eu não sou sua mãe, não.

– Mãe desnaturada, que não reconhece o filho.

– Tenha calma, senhor. Vamos conversar. O que lhe faz acreditar que sou sua mãe?

– É simples. Minha mulher disse que mamãe estava no quarto 405. É esse. Logo, a senhora é minha mãe.

– Está errado. Pode acreditar que não sou sua mãe.

Ficamos conversando por bom tempo. Disse que podia lhe chamar de Joaninha. Contou sua vida simples, sem eventos notáveis, igual à de tantas. No fim, desejei melhoras e fui saindo. Quase na porta, ela gritou

– Meu filho!!!

Achei graça e respondi – O que é?, mamãe.

– Volte amanhã para conversar que vivo aqui tão sozinha.

Dia seguinte, sexta-feira, mandei uma cesta com frutas. E, segunda, retornei ao hospital. Para conversar, como pediu. Abri a porta, o quarto estava já vazio. Não tive coragem de perguntar o que havia acontecido com ela e fui embora, rezando que estivesse em casa. Beijos, dona Joaninha.

JOEL DATZ, um dos "irmãos eventos" – conhecidos, no Recife, por irem a todas as recepções, de batizados a conferências. Vinha caminhando pela Manuel Borba quando sentiu dores típicas de um enfarte. Como estava bem perto de unidade do SAMU, em frente ao antigo Cine Boa Vista, foi andando até lá

– Estou tendo um enfarte e preciso que me levem, de ambulância, para o Procape (onde acabaria morrendo, só que muitos anos depois).

– Impossível, senhor. Que, segundo nossos regulamentos, só podemos atender casos por telefone. E fica tudo gravado. – Mas vou morrer aqui, na sua frente?

– Infelizmente, vai. Foi quando viu, do outro lado da rua, um orelhão. E seus bolsos viviam cheios de fichas (num tempo em que ainda não havia celulares). Foi até lá e ligou.

– É do SAMU?

– Sim.

– Estou tendo um enfarte. Podem me levar para o Procape?

– Claro, senhor, onde está?

– Bem na sua frente.

LUZILÁ GONÇALVES, escritora. Madrugada, ligou amiga pedindo ajuda que o marido estava quase morto. Luzilá teve que ir a colégio de freiras que acolhiam padres. Encontrou um, já bem velhinho, e disse que precisava dele para dar a Unção dos Enfermos. Tudo acertado, inclusive o preço. Mas o velho quis tomar café, antes de partir. A freirinha que lhe atendeu, com toda paz do mundo, preparou tapioca e cuscuz que ele comia com prazer. Sem pressa. E o tempo ia passando.

– Padre, queria lembrar que o homem está se acabando.

– Tenha calma, filha, Deus é paciente.

– Deus eu sei que é, padre. Só não estou certa é que o doente queira esperar tanto tempo.

Afinal, chegaram no apartamento. O padre leu Breviário e belo Ofício aos Mortos. Diante de um paciente largado na cama, lívido, com os olhos fechados. E todos rezando. Ocorre que, de repente, o quase defunto deu um pulo

– Que merda é essa?! A gente nem pode mais dormir em paz?!!, porra!!!

Em resumo, o homem estava era de porre. Coma alcoólico. Foi só engano da quase viúva.

MARIA DE JESUS ALVES, cirurgiã. Começou a operar, no Hospital Getúlio Vargas, criança com a perna quebrada por conta de um atropelamento. A avó chegou apreensiva, na portaria, e pediu informações de como estava seu neto William. O médico Octávio (filho de Geninha e Baby) Rosa Borges respondeu

– Está lá em cima (no quinto andar, onde ficava o bloco cirúrgico), nas mãos de (Maria de) Jesus.

E a velha quase morreu do susto.

MIGUEL SOUZA TAVARES, escritor. Seu bisavô, Thomás de Mello Breyner, 4º Conde de Mafra, Catedrático de Medicina e médico pessoal do rei, era diretor do Hospital São José. E, lá, enfermeiras formalizaram uma reclamação

‒ Os estudantes ficam passando a mão em nossas bundas. Exigimos providências.

‒ Perdão, mas não vejo solução possível para o problema, enquanto os estudantes tiverem mão e vocês tiverem bunda.

OSCAR COUTINHO, clínico geral. Provocando, me disse

– Está pensando que Medicina é fácil como Direito?

– Pode até não ser, amigo. Mas tem uma vantagem, e grande. Erro de advogado fica no processo; enquanto, o do médico, a terra come.

Jornal do Commercio de Pernambuco, 28/09/2023

 

https://www.academia.org.br/artigos/conversas-de-12-minuto-31-medicos

 

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José Paulo Cavalcanti - Nono ocupante da Cadeira nº 39, eleito em 25 de novembro de 2021, na sucessão de Marco Maciel e recebido em 10 de junho de 2022 pelo Acadêmico Domício Proença Filho.

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domingo, 15 de outubro de 2023

A vitória do menino

Cyro de Mattos


 

         A mãe dizia que aqui na vida tudo tem sua hora para acontecer e seu lugar para ser ocupado pelos seres e as coisas. Estava perto de receber o resultado do exame de admissão quando saberia então se seria aprovado. A expressão de confiança no rosto do menino denunciava uma esperança inabalável, motivada por tudo que veio sendo construído durante o ano inteiro, com os seus pensamentos direcionando-se para a realização da conquista tão desejada.  Chegava a sorrir de contente, da certeza que tinha agora da vitória prestes a acontecer, só pensando em chegar logo à sua casa para dividir a expectativa da vitória com os pais. A autoconfiança tomava conta da expressão do rosto, os contornos nítidos formando um desenho vibrante da vida, na medida em que apressava os passos, o corpo como se fosse de um passarinho, voando no chão. Sentia-se leve, imune a qualquer tipo de dúvida ou preocupação que pudesse surgir entre as noites tranquilas, horas de entrega na preparação. Tudo o que era desafio, incentivando-o sempre, parecia prestes a ser superado, enquanto esperava o resultado do exame de admissão.

         Mas à medida que o dia avançava na manhã clara, um sentimento desconhecido começou a se infiltrar em sua alma. A sombra da dúvida começou a se espalhar, confundindo aquela certeza inicial. O sorriso que antes brilhava em seu rosto agora se contorcia em uma expressão de insegurança. A lembrança da exigência de seu pai e o medo de decepcioná-lo começaram a pesar em seus ombros, transformando a alegria da manhã em uma tarde sombria. 

         Nunca o domingo fora tão ambíguo para ele como no começo desse mês de dezembro. O brilho do sol, que antes envolvia as coisas com um toque de magia, leveza e graça, agora lançava sombras que se confundiam com seus sentimentos conflitantes. E, nesse momento conflituoso, que o fazia oscilar nas ondas da dúvida, a vida se mostrava complicada e imprevisível, fazendo-o temer ante ao que antes considerava inquestionável.  A reação do pai, uma vez pilar de apoio que o fazia seguro, agora se transformava em um espectro amedrontador, e o medo da reprovação tornava o desejo de saber o resultado um grande tormento.

         Da pequena balaustrada de onde se via o pátio do colégio, a diretora   tocou o pequeno sino várias vezes, chamando os meninos e as meninas para tomar conhecimento do resultado no exame de admissão. Observara que só ia chamar o nome do candidato que tivesse sido aprovado.  Os candidatos eram muitos, vários vieram das roças onde moravam com os pais, de vilarejos perto ou de cidades vizinhas, menores do que a sua, dividida em duas partes pelo rio manso na descida quando era tempo de estio.

         Meninos e meninas aglomeravam-se no pátio do colégio, alguns estavam acompanhados da mãe. Todos em silêncio, aguardando, ansiosos, o resultado do exame de admissão, vários com aquela cor de medo no rosto, presos ao que daqui a instante seria anunciado pela voz da diretora do ginásio.  

          Fez um esforço para que as pernas não tremessem, mas não conseguia dominar o friozinho que dava na barriga.  De repente, o que era uma nebulosa dentro dele, num lance feito de emoção indescritível, transformou-se numa luz forte que clareou tudo dentro, repercutiu na alma como uma vibrante canção salpicada de notas alegres. E notas dessa canção, que chegava em boa hora, cheia de felicidade, envolveram o peito de menino franzino, abalando, em sua mensagem venturosa, seu pequeno coração. A diretora havia chamado o seu nome como um dos aprovados no exame de admissão.

(Capítulo do romance inédito Do menino se faz o homem)         

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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Editado no exterior. Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz -Uesc.

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sábado, 14 de outubro de 2023

O show de horrores da moda da década de 1970

 Ruy Castro



Sabe os "anos dourados"? São sempre aqueles de 30 anos atrás. Entre outras, porque você tinha 30 anos a menos e já se esqueceu das agruras e amarguras que viveu naquele tempo. Se isso é verdade, significa que, hoje, os anos dourados foram a década de 1990. Só que, na década de 1990, as pessoas também situavam os "anos dourados" 30 anos antes, ou seja, na década de 1960. E assim por diante. Nunca ouvi alguém dizer: "Que maravilha! Estamos vivendo nos anos dourados!"

O contrário acontece muito: você odiar o tempo em que vive e se referir a ele como medíocre, hediondo, intolerável. No Brasil dos anos 1970, por exemplo, estávamos na ditadura, o que já era suficiente para nos fazer detestá-los. Mas ainda havia outro motivo: a moda masculina. Em nenhuma época do século 20, ela foi tão pavorosa e cafona. Qualquer evento para o qual as pessoas se "vestissem" tornava-se um show de horrores.

Tudo era tremendamente exagerado. Os paletós tinham lapelas gigantes, o que obrigava os colarinhos a serem também enormes e as gravatas, os famosos gravatões, a terem nós maiores que um punho fechado. Foi também a moda das gravatas-borboleta, do tamanho das borboletas da Amazônia. Os paletós eram cintados, com o que todo homem parecia ter ancas, e vinham em padrão xadrez, de listras ou de pespontos, em cores como verde-abacate e azul-bebê.

As calças tinham cintura alta e bocas de sino. Os sapatos eram de salto alto, o que nos obrigava a andar na ponta dos pés. Os penteados eram do tipo usado hoje pelos cantores sertanejos. E havia um chique-esporte: os inacreditáveis conjuntos safári. Entendeu o que estou querendo dizer?

Por que estou me lembrando disso? Porque, de uma pilha de revistas antigas, me caiu um catálogo da Ducal para 1973. Era outra forma de ditadura —as lojas só vendiam esse tipo de roupa. A alternativa, já possível em certos círculos, era andar nu.

Folha de São Paulo, 24/09/2023

https://www.academia.org.br/artigos/o-show-de-horrores-da-moda-da-decada-de-1970

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Ruy Castro - Nono ocupante da Cadeira nº 13, eleito em 6 de outubro de 2022, na sucessão de Sergio Paulo Rounet e recebido em 3 de março de 2023 pelo acadêmico Antonio Carlos Secchin.

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domingo, 8 de outubro de 2023

Lugar e Circunstância do Escritor

Cyro de Mattos

 


          Ser escritor é profissão ou apenas uma atividade dos que exercem a arte literária?  Thomas Mann afirma que não é profissão alguma, e, sim, uma maldição. Começa terrivelmente, muito cedo. O criador de A Montanha Mágica (Editora Globo, 1953) quis dizer com isso que o autor ao ser impelido pela força do destino para se manifestar sobre a vida carrega todo o peso terrestre dentro de si, suportando assim inúmeras situações conflitantes do existir nos ermos de seu calvário. Quando faz a leitura crítica do mundo, toma de empréstimo ao sonho a palavra com a sua natureza mítica. De onde vêm, para onde vão nessas antenas da raça tantos sentimentos e tendenciosas explicações?

          Há quem afirme que a literatura ajuda a viver o sofrimento que todos nós temos na vida. Carlos Drummond de Andrade acha que ela ajuda esse sofrimento ser um jogo divertido. O trivial lírico de Itabira afirmou que é escritor porque escreve. Ele nunca quis ser membro da Academia Brasileira de Letras, apesar das insistências, mas nunca abdicou da sua função de escritor, de alguém simples que gostava de falar como pássaro do cotidiano nos eventos da vida. Nunca lhe agradou essa maneira solene de ser diferente, não dava sentido à nossa incompletude, que gera incertezas e dramas diante das questões profundas.  

          Não é exagero achar que a literatura é uma profissão. É condição, ato ou efeito de professar, perseguir, proferir crenças e valores. Declarar publicamente ao outro o que somos no mundo. Nela confessamos nossa opinião sobre seres e coisas porque assim é nosso modo de ser-estar na existência. Profissão que não dá rendimentos para sobreviver, não devia ser assim, dado que é forma de conhecimento da vida, transmite ensinamentos fundamentais como o amanhecer. Exige esforço e labor. Sacrifício, doação.

           Não se vive de literatura, mas para a literatura, dentro dessa condição em que o autor procura liberar desejos e medos das zonas da razão e emoção. Essa é minha crença, tem sido minha paixão. A literatura vem demonstrando que gosta de mim, nesse meu jeito de respirar no trânsito da vida, assumir as afirmações e suportar as negações. É minha maneira de me sentir útil na vida quando simulo a realidade através da metamorfose da palavra e levo minha experiência do mundo aos outros. 

          A literatura organiza meus conflitos, oferta-me sonhos, equilibra-me no difícil gesto de viver, que, segundo Guimarães Rosa, é muito perigoso.  Nesse espaço vital da criação literária é que me encontro com as mentiras de verdade fornecidas na solidão solidária, deixo de ser um cadáver ambulante que procria. Convenço-me de que sou apenas esse pobre homem, contraditório, finito, provisório, andante e errante com suas ingenuidades e dramas, nesse momento intervalar entre o primeiro vagido e o último suspiro. Sem fazer a prosa de ficção ou o poema não sou um ente que pensa e tem emoção. Não tenho motivações para fazer leituras do mundo com as vestes da vida e da morte. Não consigo retirar dos dias personagens que se queimam com suas dúvidas, choram às escondidas, revelam suas incandescentes ternuras na parte noturna do ser.   

            A certa altura da entrevista que dava para alguns jornalistas, o romancista William Faulkner comentou sobre a alegria que tinha no ato de escrever. Ele disse: “Porém criar! Qual dentre vós, não tendo em si este fogo, pode conhecer esta alegria, por mais fugaz que ela seja?” Para o autor de O Som e a Fúria (Editora Portugália, Lisboa, 1969), o legítimo escritor é capaz de saber o que é esse fogo fugaz da ilusão. Sem essa alquimia do verbo no romance ou no conto não há o beijo, a lágrima, o riso, o epitáfio, a busca do sentido da tragédia que somos no mundo como seres imperfeitos.  

            É com esse fogo da ilusão, a que se referiu William Faulkner, que aceno para as coisas da vida que se foi, justamente me aconteço nesses versos do poema “A Roda do Tempo”: 

 

  Criei vaga-lumes

   Para vê-los à noite

  Brilhando no quarto.

 

 Nadei como um peixe ágil

 Nas águas mais claras

 Do Rio de Água Doce.  

 

Como um pássaro

Tive cada voo

 Com o vento mais alto.

 

Andei como bicho solto 

Sem ter medo de nada

Pelas ruas do mato. 

 

Mas a infância tem o sabor

De uma fruta doce que termina

Quando vem a idade dos homens.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                    Não é fácil caminhar nessa estrada das letras, a essa altura comprida. Há os que dizem que o escritor tem fome de fama quando escreve, quer permanecer para sempre nos outros com os seus sentimentos e com isso alcançar a imortalidade. São argumentos pueris de quem não tem humildade para reconhecer a obra valorosa que o autor conseguiu durante décadas. Não sabe que o autor legítimo no ato de exercer a palavra escrita tenta encontrar-se por entre os rumores de navegações agudas.  Não sabe de solidões pessoais e imaginadas na madrugada de um homem entre alegre e triste.  

            Jorge Luís Borges declara que escreve para viver.  Gabriel Garcia Márquez afirma que morre se não escrever, mas também morre se escrever. Escreve-se porque assim devia ser. Fica claro que escrevo não com sede de imortalidade. E que sei do meu tamanho e do lugar que ocupo no meio dos outros.  No fundo de tudo, bom não esquecer, nós somos iguais, entre nascer, viver e morrer. Cada um está aqui para contar a sua história. Como o vento, não ficamos, para isso fomos feitos, sonhamos e passamos. 

            Nada se pode fazer diante do inexorável fixado pelo tempo, esse senhor categórico, que tudo dá e toma, não muda, nós é que mudamos.  Ai de mim, ai de mim. Então lembro, no instante em que termino esse texto sobre o fazer literário, o que eu disse certa vez nos dois últimos versos de um soneto:

 

Da cabeceira para a foz 

Tantas explicações  

Para saber enfim

Que nada sei de mim. 

 

           Por isso escrevo para ser testemunho de meu tempo, sabendo que não vou mudar o mundo.

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Cyro de Mattos - Escritor e poeta. Membro Titular da Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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quarta-feira, 4 de outubro de 2023

Solidão em Gabriel García Márquez       

Cyro de Mattos


 

          A decadência do romance regionalista na literatura da América Latina, por volta de 1940, fez com que surgissem novos autores interessados pela temática universal, buscando operar o conto e o romance   não mais com os elementos supervalorizados da terra. A selva, o rio, o lhano e a zona andina não interessam mais com a sua grandeza e particularidades. Vale nesse tempo de sonho e desafio a imagem do homem contemporâneo com os vícios e virtudes de sua natureza pessoal.  Recorre-se então a Kafka, Joyce, Faulkner, Proust e Virgínia Woolf como influências positivas para a consciência crítica de novas técnicas no nível da história e no plano da elaboração formal.

           Uma literatura questionadora da essência humana vai surgindo para ocupar o lugar da geografia caracterizada pela paisagem física, que subjuga os valores do indivíduo.  O homem e seus aspectos essenciais, sua luta de transcender e de afirmação do seu caráter servem de motivação agora para as criações de contistas e romancistas.  E o que se percebe nessa mudança de atitude é o compromisso do escritor como testemunha do seu tempo, sem implicações de submissão do seu processo criativo à estética do regionalismo limitado, nem tampouco ao nível panfletário do conteúdo político.

          As interrogações e angústias desse homem contemporâneo são reveladas com novas técnicas, como vínculo de gravidade do   cotidiano. A modelação do espaço e tempo, a experimentação de nova   linguagem, o uso do mito, do onírico, do simbolismo e do monólogo interior são os meios empregados na narrativa interpelativa para mergulhar o leitor no mundo em processo, agora escavado em suas faixas metafísicas e de teor existencial. José Maria Arguedas, Alejo Carpentier, Julio Cortázar e José Revueltas são alguns desses nomes que se inscrevem na nova corrente de renovação da prosa de ficção hispano-americana. 

          Gabriel García Márquez tinha uma relativa notoriedade até 1961como escritor nos círculos intelectuais do México onde vivia e atuava como roteirista de cinema. Já havia escrito quatro livros, que obtiveram   resenhas favoráveis, mas que não lhe deram a fama de escritor maior de todos os tempos, como iria acontecer com Cem anos de solidão, publicado em 1967. Esse magnífico romance, que é como a assinatura especial do legado do autor colombiano, é considerado por alguns críticos o segundo mais importante da literatura mundial, sendo o primeiro Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. Tornou-se em pouco tempo o mais importante do realismo mágico na literatura hispano-americana. O livro já vendeu mais de cinquenta milhões de exemplares, foi traduzido e publicado em mais de 32 idiomas, deu ao seu autor o Prêmio Nobel.

          Livro arrebatador, passivo de várias interpretações, quanto mais as suas páginas são lidas, a vontade quer, o coração sente e não cansa. Pode até a sua leitura ser dificultada e se tornar confusa com os nomes na história da família do coronel Aureliano Buendía, repetidos uma e outra vez.  Há quatro José Arcadio Buendía e três Aureliano Buendía nos cem anos em que decorre a história.  Esse comportamento na escrita fluente faz parte da estratégia para a construção da estrutura do romance. Mas nem essa particularidade, que pode confundir o leitor, tira do romance o seu poder mágico, a sedução do estilo no cronista que mescla a oralidade da linguagem com o imaginário fabuloso expresso com profundidade metafórica e largura intensa na ideia. Tanto isso é verdadeiro, faz sentir   sem esforço a realidade e a fantasia, que unidas aparentam ser uma coisa só como representação do mundo. 

           Para não usar o espaço tradicional, com a localização das cenas em determinado lugar do tempo histórico, evitar a narrativa linear operada através de acontecimentos extraordinários, com os momentos lineares de princípio, meio e fim, Gabriel García Márquez emprega o tempo circular no desenvolvimento da trama. Superpõe e justapõe situações com personagens do mesmo nome em gerações diferentes, como se girassem movidos pelo eixo da existência numa mesma órbita.

          Em certo trecho, lemos essa passagem sobre o círculo do tempo, no seu eterno retorno: 

 

 José Arcádio Segundo, ao reconhecer a voz de sua bisavó, vira a cabeça para a porta, tratou de sorrir e, sem saber, repetiu uma antiga frase de Úrsula.

- Que se há de fazer – murmurou – o tempo passa.

                   - É verdade – disse Úrsula – mas não tanto.

Ao dizê-lo, teve consciência de estar dando a mesma resposta que recebera do Coronel Aureliano Buendía na sua cela de sentenciado e mais uma vez estremeceu com a comprovação de que o tempo não passava, como ela acabava de admitir, mas girava em círculo.

 

             A estrutura do livro, portanto, é circular, desde o começo da fundação de Macondo, um povoado fictício, até a sua apocalíptica destruição. Na trama que nos envolve a cada instante, os elementos da vida constante vão sendo expostos misturados com os sonhos, ocorrendo com habilidade a fusão das circunstâncias entre o pensamento mágico e o pensamento lógico. E dessa forma de combinação entre magia e informes lógicos, ilusões e raciocínios objetivos, o admirável narrador e não menos admirável ficcionista vai conseguindo extrair uma sobrecarga espantosa de emoções e acontecimentos inusitados na história dos Buendías. Com poesia e ritmo arrebatador, a narrativa gira do seu eixo vibratório entrelaçada por entre as zonas do mito, realidade e fábula.

           Para os críticos que ressaltam Cem anos de solidão como o romance que expressa a condição humana, o seu discurso é apreendido como o da história de todos os homens, com os seus sonhos, suas perdas, suas frustrações, suas lutas e seus lutos. Nesse discurso marcado de fatalidades e paixões conota-se o  clima de sonho  misturando  seres e coisas com tudo que se encontrasse na vida: “... as mulheres de rua, que arruinavam o sangue; as mulheres de casa, que pariam os filhos com rabo de porco;  os galos de briga, que provocavam mortes de homens e remorsos de consciência para o resto da vida; as armas de fogo, que só com serem tocadas condenavam a vinte anos de guerra; as empresas audaciosas, que só  conduziam ao desencontro e à loucura,  e tudo, enfim, tudo que Deus criara  com a sua infinita bondade e que o diabo pervertera” (p. 324).

          O casal José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán, que fundou Macondo com suas trinta casas no início, ruas iluminadas e ventiladas, teve três filhos: José Arcadio, que era um rapaz disposto e trabalhador; Aureliano, que contrasta com o irmão mais velho, via-se que era filosófico, sereno e muito introspectivo; e por último Amaranta, a típica dona de casa de uma família de classe média do século dezenove. Soma-se a estas personalidades   Rebeca, que foi enviada da antiga aldeia de José Arcadio e Úrsula, sem pai nem mãe. A história com a sua mitologia doméstica é   ritmada como os sons das cordas e sopros dos metais, à volta desta geração e dos seus descendentes, filhos, netos, bisnetos e trinetos, tendo como característica o fato de que todas as gerações foram acompanhadas por Úrsula, que viveu entre 115 e 122 anos, morrendo de velhice e cega.

            Atacada pela catarata, cega nos derradeiros anos de vida, mas ainda identificando nos detalhes e movimentos pessoas e coisas íntimas, graças à sua apurada visão imaginativa, esta centenária personagem dará conta de que as características físicas e psicológicas dos seus herdeiros estão associadas a um nome, sendo os José Arcadio de natureza impulsiva, extrovertidos e trabalhadores, enquanto os Aurelianos são pacatos, estudiosos e muito fechados no seu próprio mundo interior. Os Aurelianos terão ao longo do livro a missão desafiadora de desvendar os misteriosos pergaminhos de Melquíades, o Cigano, personagem guardador de um mundo singular, que foi amigo de José Arcadio Buendía. Os pergaminhos guardam o segredo da história dramática da família e apenas serão decifrados quando o último da estirpe estiver às portas da morte.

           O tema da violência,  que deforma o comportamento humano, do incesto em que os filhos do casal do mesmo sangue  nascem com o rabo de porco, a história da solidão, que não é  apenas a do coronel  Aureliano Buendía, mas a  de toda a sua família, desde a fundação de Macondo, quando  não se sabia os nomes das coisas, não se conhecia  uma dentadura postiça e  o gelo,  e  até que o último Buendía se suicida, cem anos depois, todos esses momentos dentro de um processo em que se alternam certos acontecimentos históricos, com guerras e revoluções civis, o amor em tempo instável de paixões e frustrações,  formam o painel  humano e  fantástico contendo o percurso de todos os seres humanos  no mundo. Expande-se uma humanidade fantástica na circularidade dos instantes em que marcas dramáticas e, ao mesmo tempo, cheias de um realismo mágico são expressões de um ritmo obsessivo, de grandeza insólita na escrita com extraordinária poetização da vida.  

                Filiado à corrente do realismo mágico, expressão que não agradava ao autor de Cem anos de solidão, que achava como eventos naturais aqueles que aconteciam na aparência irreal, em Macondo, o romance está impregnado de momentos inusitados do cotidiano.  A peste da insônia que deixa os moradores de Macondo sem memória, desligados do mundo,  submissos à  inércia repetitiva e enfadonha dos fatos e atos; as borboletas que acompanham Maurício Babilônia, a ascensão de Remédios, a Bela, levada pelos lençóis ao céu;  as crianças  nascidas com o  rabo de porco como fruto de incesto;  a caixa com cartas dos parentes e amigos levada  para os mortos,  colocada  dentro do caixão do falecido; os mortos que apareciam e conversavam com os vivos; todas estas situações são encaixadas nas cenas  como se resultassem de uma lógica racional, que comanda o tempo cronológico dos habitantes de Macondo. A realidade, assim, não é trabalhada para que, desfeita, se instaure o mágico, visto que este faz parte das manifestações da vida no cotidiano.

        Da leitura desse soberbo romance constata-se que Macondo tornou-se em pouco tempo um território incorporado definitivamente ao mapa da literatura ocidental, alcançou um espaço inserido no contexto político-histórico da América Latina.  Além disso, foi transformado em uma espécie de sinônimo do realismo mágico, representativo, mesmo que idilicamente, do desejo de unidade da América Latina.

        O livro deixa que seu espaço, por onde circulam personagens e ações, seja visto como referencial relativo ao Caribe, à Colômbia e por consequência à América Latina. Pode ser visto como uma espécie de metáfora da situação latino-americana, entrelaçada com a história da Colômbia, suas guerras civis e militares, traições, lutas pelo poder, entre liberais e conservadores, atos absurdos como o massacre de três mil trabalhadores, acuados e fuzilados pelo Exército, que manda levar os corpos em vagões de trem para que fossem jogados no mar. 

.        Outros críticos pensam Cem anos de solidão dentro do cruzamento entre história e mito, e, nessa interpretação metafórica, o romance deve ser visto como criação e síntese do mundo. Trata-se de uma metáfora da condição humana revelada através dos membros da família Buendía. No entanto, entre os que interpretam como uma grande metáfora da condição humana e aqueles que concebem a invenção ímpar do romancista colombiano como uma chave de acesso ao contexto histórico do continente, não se pode deixar de considerar que esse livro tem o tamanho eterno do homem, com todo o seu medo de sombras, que o acompanham no mundo e não se explicam desde não sei quando. Para que sobrevivam sempre, basta que o coração as aceite como camadas noturnas do ser. 

    .     Na circularidade do tempo, no fatal determinismo que comanda com rigor  a vida dos Buendía, no tamanho soberbo da solidão que pesa sobre seus personagens principais e secundários, na impotência ante as forças indomáveis da natureza e dos instintos humanos,  na obra vista como  a denúncia dos problemas sociopolíticos locais, na matança dos trabalhadores, na violência imposta pelo poder, no roubo de terras e na opressão ostensiva sobre os excluídos e fracos, esse romance de expressão imensa construído sob o ritmo de uma orquestração extraordinária possui  suficiente autonomia  como se fosse uma ficção-poema de intensa carga lírica.  Plasmada de simbolismos, a palavra aqui, tomada emprestada ao sonho para revelar as verdades e ilusões do cotidiano, poreja de magia e música surpreendentes, que alcançam os melhores níveis da criação literária com repercussão universal.

             Gabriel García Márquez ficou mergulhado em dezoito meses de trabalho para escrever Cem anos de solidão, enfrentando toda espécie de privação face o esgotamento das reservas econômicas. Já não tinha as mínimas condições para suprir as necessidades domésticas imediatas no final da conclusão do romance.  Recorria à venda das joias restantes da esposa Mercedes e aos objetos da casa.

           Nascido em Arataca, Colômbia, em 6 de março de 1927, Gabriel García Márquez foi jornalista, editor e ativista político colombiano. Faleceu no dia 17 de abril de 2014, aos 87 anos, na cidade do México. Em pleno brilho do ouro da glória.

 

 Leituras Sugeridas

MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão, Editora Record, Rio de Janeiro, trigésima edição.

JOSEF, Bela. História da literatura hispano-americana, Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 1971.

CERQUEIRA, Dorine. America América: amostragem da ficção hispano atual, Editus, editora da Uesc, Ilhéus, Bahia, 2011.

 

*O texto “Solidão em Gabriel García Márquez” integra o livro Kafka, Faulkner e Borges e outras solidões imaginadas, da EDUEM, editora da Universidade Estadual de Maringá, Paraná.

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