O Poeta Infantil Fernando Pessoa
Cyro de Mattos
Alguns autores que se notabilizaram na literatura mundial
com livros escritos para o leitor crítico também se destacaram quando criaram
histórias e versos destinados ao receptor infantojuvenil. Henry Miller escreveu
O Sorriso ao pé da escada (1948), a história do palhaço Augusto, que sofria por
ser ele e ser o outro vivendo de levar alegria ao mundo. Charles Dickens deixou
como obras de literatura para jovens os clássicos David Copperfield (1849-1850)
e Oliver Twist (1837). Sophia de Mello Breyner Andresen é autora, entre outros,
das belas histórias de A menina do mar (1977, Portugal) e A floresta (1977,
Portugal). Juan Ramon Jimenez deixou-nos um livro cativante ao escrever a
história de Platero, um burrinho mimoso, que tinha o pelo fofo como algodão.
Fernando Pessoa, o poeta fingidor, que de tanto fingir não
sabia se era dor o que de fato sentia, também fez poemas para crianças. O livro
Comboio, saudades, caracóis (1968), organizado pelo professor e escritor
português João Alves das Neves, reúne dez poemas escritos em tenra idade pelo
poeta dos heterônimos. São os seguintes: “À minha querida mamã”, “Havia um
menino”, “A íbis”, “O carro de pau”, “Levava um jarrinho”, “Pia, pia, pia”, “No
comboio descendente”, “O soba de Bicá”, “Poema Pial” e “Saudades”.
Em todos esses poemas acontece a harmonia da forma
espontânea com o ritmo que arrasta, encanta e prende. Esta é a primeira vez que se tem no Brasil a
oportunidade de entrar em contato com Fernando Pessoa publicado em livro na
condição de autor de poemas para meninos, embora a criança seja tema ou
referência na sua poesia adulta.
O primeiro poema deste precioso pequeno livro, “À minha
querida mamã”, escrito em 26.7.1895, quando o poeta tinha apenas sete anos de
idade, segundo João Alves das Neves, mostra graça e delicadeza em quatro versos
de rimas fáceis, nos quais a sensibilidade e a imaginação do menino já
prenunciam esse fenômeno da poesia ocidental que é Fernando Pessoa, o criador
dos famosos heterônimos Alberto Caieiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, poetas
que têm voz e biografia próprias.
Eis o que diz o poeta menino à sua querida mamãe:
Ó terras de Portugal
Ó terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Inda gosto mais de ti.
Em “Havia um menino”, o riso que cada verso provoca vai
puxando o leitor para a surpresa que se revela com ainda mais graça no final do
poema, porque o caracol no chapéu para pôr na cabeça por causa do sol era do
cabelo.
Vejam agora quanto humor fino de uma sensibilidade infantil,
mesclado de leveza e graça, aflora neste desenho poético de “A íbis”, a ave do
Egito:
Pousa
sempre sobre um pé
O que
é esquisito.
É uma
ave sossegada
Porque
assim não anda nada.
Em “O carro de pau”, o motivo inspirador do poema é a morte,
assunto que seria abordado muitas vezes pelo poeta de Mensagem posteriormente,
fazendo pulsar seu ritmo estranho na mente do homem atormentado, diante do
inexorável com o seu peso do mundo e o vazio de tudo. “Levava um jarrinho”, o
terceiro poema do livro, que é ilustrado pela desenhista Cláudia Scatamacchia,
é uma obra-prima. As cenas que a vivacidade do menino poeta inventa provocam o
riso suscitado pelas imagens de cada verso, cada uma mais engraçada do que a
outra. “Saudades” é outra joia de delicadeza e simplicidade. Aqui, o menino
Fernando Pessoa fala com sabedoria dessa palavra que tanto ressoa na alma
portuguesa quando está distante.
Saudades, só portugueses
Conseguem senti-las bem,
Porque têm essa palavra
Para dizer que as têm
A leitura desses significativos poemas infantis, enfeixados
em Comboio, saudades, caracóis, mostra em boa hora que a alma de Fernando
Pessoa estava acesa desde bem cedo com os raios da beleza, ternura e graça.
Nestes versos íntimos da infância, uma nova faceta é revelada deste poeta
magnífico, reconhecido como um dos maiores da humanidade, tradutor, no fundo de
cada gesto, das nossas angústias que passam pela roda do eterno.
* “Encontros com Fernando Pessoa”, do livro Kafka, Faulkner,
Borges e Outras Solidões Imaginadas, Cyro de Mattos, EDUEM, editora da
Universidade Estadual de Maringá, Paraná, no prelo.
Comboio, saudades, caracóis, Fernando Pessoa, poemas infantis, organização João Alves dos Santos, Prêmio Ofélia Fontes – FNLIJ, Editora FTD, São Paulo, 1988.
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Publicado por várias editoras na Europa. Premiado no Brasil, Itália, Portugal e México. Membro da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa pela UESC.
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