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quinta-feira, 9 de junho de 2022

A AMA-SECA

Artur Azevedo

 


          O Romualdo, marido de dona Eufêmia, era um rapaz sério, lá isso era, e tão incapaz de cometer a mais leve infidelidade conjugal como de roubar o sino de São Francisco de Paula; mas – vejam como o diabo as arma! Um dia dona Eufêmia foi chamada, a toda a pressa, a Juiz de Fora, para ver o pai que estava gravemente enfermo, e, como o Romualdo não podia naquela ocasião deixar a casa comercial de que era guarda-livros (estavam a dar balanço), resignou-se a ver partir a senhora, acompanhada pelos três meninos, o Zeca, o Cazuza, o Bibi, e a ama-seca deste último, que era ainda de colo.

            Foi a primeira vez que Romualdo se separou da família. Custou-lhe muito, coitado, e mais lhe custou quando, ao cabo de uma semana, dona Eufêmia lhe escreveu, dizendo que o velho estava livre de perigo, mas a convalescença seria longa, e o seu dever de filha era ficar junto dele um mês pelo menos.

            O Romualdo resignou-se. Que remédio!...

            Durante os primeiros tempos saía do escritório e metia-se em casa, mas no fim de alguns dias entendeu que devia dar alguns passeios pelos arrabaldes, hoje este, amanhã aquele. Era um meio, como outro qualquer, de iludir a saudade.

            Uma noite coube a vez ao Andaraí Grande. O Romualdo tomou o bonde  do Leopoldo, e teve a fortuna ou a desgraça de se sentar ao lado de mulatinha mais dengosa e bonita que ainda tentou um marido, cuja mulher estivesse em Juiz de Fora.

            Nessa noite fatal a virtude de Romualdo deu em pantanas: tencionando ele ir até o fim da linha, como fazia todas as noites, apeou-se na rua Mariz e Barros, ali pelas alturas da travessa de São Salvador. A mulata havia se apeado algumas braças antes.

            E ele viu, à luz de um lampião, o vulto dela saltitante e esquivo, e apressou o passo para apanhá-la, o que conseguiu facilmente, porque, pelos modos, ela já contava com isso.

            - Boa-noite!

            - Boa-noite.

            - Como se chama?

            - Antonieta.

            - Pode dar-me uma palavra?

            - Por que não falou no bonde?

            - Era impossível... estava tanta gente... e estes elétricos são tão iluminados...

            - Mas o senhor bolinou que não foi graça! Vamos, diga: que deseja?

            - Desejo saber onde mora.

            - Não tenho casa minha; tou empregada numa família ali mais adiante, por siná que não ‘stou satisfeita, e ando procurando outra arrumação.

            - Onde podemos falar em particular?

            - Não sei.

            - Você sai amanhã à noite?

            - Amanhã não, porque saí hoje, e não quero abusá.

            - Então, depois de amanhã?

            - Pois sim.

            - Onde a espero?

            - Onde o sinhô quis é.

            - Na praça Tiradentes, no ponto dos bondes. Às oito horas.

            - Na porta do armazém do Derby?

            - Isso!

            - Tá dito! Inté depois d’amanhã às oito horas.

            - Não falte!

            - Não farto, não!

            No dia seguinte o Romualdo contou a sua aventura a um companheiro de escritório que era useiro e vezeiro nessas cavalarias baixas, e o camarada levou a condescendência ao ponto de confiar-lhe a chave de um ninho que tinha preparado adrede para os contrabandos do amor.

            Antonieta foi pontual; à hora marcada lá estava à porta do Derby, com ares de quem esperava o bonde.

            O Romualdo aproximou-se, fez um sinal, afastou-se, e ela o seguiu.

           

 

            Dez dias depois, estava ele arrependidíssimo da sua conquista fácil, e com remorsos de haver enganado dona Eufêmia, aquela santa! Procurava agora meios e modos de se ver livre da mulata, cuja prosódia era capaz de lançar água na fervura da mais violenta paixão.

           Vendo que não podia evitá-la, tomou o Romualdo a deliberação de fugir-lhe, e uma noite deixou-a à porta do ninho, esperando debalde por ele. Lembrou-se, mas era tarde, que havia prometido dar-lhe um anel, justamente nessa noite.

           - Diabo! – pensou ele – Antonieta vai supor que lhe fugi por causa do anel.

 

 

            Voltou, afinal, dona Eufêmia de Juiz de Fora. Veio no trem da manhã, inesperadamente, e já não encontrou o marido em casa.

            Estava furiosa, porque a ama-seca de Bibi deixara-se ficar na estação da Barra. Podia ser que não fosse de propósito. O mais certo, porém, era o ter sido descaminhada por um sujeito que vinha no trem a namorá-la desde Paraibuna.

            Quando dona Eufêmia contou isso ao marido, acrescentou indignada:

            - Que homem sem-vergonha!... Não podem ver uma mulata!...

            O Romualdo perturbou-se, mas disfarçou, perguntando:

            - E agora? É preciso anunciar! Não podemos ficar sem ama-seca!

            - Já mandei o Zeca por um anúncio no “Jornal do Brasil”.

            No dia seguinte, o Romualdo saiu muito cedo; ao voltar a casa, a primeira coisa que perguntou à senhora foi:

            - Então? Já temos ama-seca?...

            - Já; é uma mulatinha bem jeitosa, mas tem cara de muito sapeca. Chama-se Antonieta.

            - Hein? Antonieta?

            - Que tens, homem?

            Nada; não tenho nada... É jeitosa?... Tem cara de sapeca?... Manda-a embora! Não serve! Nem quero vê-la!...

            - Ora essa! Por quê? Olha, ela aí vem.

            Antonieta chegou, efetivamente, com o Bibi ao colo; mas o Romualdo tinha fechado os olhos, dizendo consigo:

            - Que escândalo!... rebenta a bomba!... este diabo vai reclamar o anel!...

            Mas como nada ouvisse, o mísero abriu os olhos e – Oh! Milagre! – era outra Antonieta!...

          Ele pensou, os leitores também pensaram que fosse a mesma; não era.

            Decididamente há um Deus para os maridos que enganam as suas mulheres.

 

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Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo), jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.

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