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quinta-feira, 30 de setembro de 2021

ROMANCE DO NEGRO EM TORTO ARADO - Cyro de Mattos

                 Romance do negro em torto arado 

Cyro de Mattos*

                    

           Romance do baiano Itamar Vieira Junior, Torto arado (2019) conquistou o prêmio Internacional Leya, um dos mais prestigiados em língua portuguesa, que tornou o autor em um fenômeno da literatura contemporânea. Graças à láurea merecida foi conduzido para além das fronteiras nacionais. O prêmio conquistado deu fama ao autor que há pouco tempo só tinha publicado dois livros de contos: Os dias e Oração do carrasco. O romance rendeu ainda a Itamar Vieira Junior os cobiçados prêmios Jabuti e Oceanos de Literatura, o que expandiu ainda mais o seu nome de romancista e impôs a tradução da sua obra em outros idiomas. 

      Romance de narrativa segura, que encanta, dotado de uma uniformidade em sua construção estética que satisfaz, apresenta-se com dois planos no enfrentamento do tema, um de natureza histórica conectado à solidariedade da realidade social e o outro nas relações com o mágico, adotado por alguns de seus personagens, em convívio atemporal com os espíritos conhecidos como encantados. Intenso na carga dramática prende na medida em que vai desenvolvendo a trama vivida por Zeca Chapéu Grande, mãe Salu, as filhas Belonísia e Bibiana, vó Donana, e outras personagens paralelas, como Crispina, Crispiniana, Tobias, Severo, Domingas, Maria Cabocla, compadre Saturnino, o gerente Sutério, Miúda e até mesmo pelos encantados Velho Nagô e Santa Rita Pesqueira.

          O tema do romance atravessa o Brasil mascarado em outra face da escravidão do negro, esse desgraçado vivente que um dia estupidamente foi retirado de África para fornecer mão de obra gratuita nos longes de outras terras.  O discurso do baiano Itamar Vieira Junior motiva-se assim com o tema que envolve o descendente desse negro esquecido depois da abolição da escravatura. Quando então soube de outro tipo de escravidão, imposto no trabalho sem paga pelo dono da terra.

           Chegando à   fazenda, depois de vagar, vulnerável por todos os lados, recebia de favor a morada de adobe e vara trançada, de fragilidade visível para que não durasse com o uso e fosse substituída nos mesmos moldes pelos descendentes da mão servil e gratuita. No jogo que só favorecia ao dono da terra, não era permitido ao trabalhador que fosse construída uma casa de tijolo.  Na morada precária, sem água encanada e energia elétrica, exigia-se de seu morador que trabalhasse a terra sem receber remuneração e tudo que produzisse nela por mãos calosas, na lavoura de duração perene, era destinado ao dono da fazenda. 

           Difícil que em ambiente de tamanha dificuldade o trabalhador arranjasse tempo para zelar de sua lavoura de pouca duração na várzea quando estava seca, isso era tarefa para a mulher e os filhos. O quintal da casa era também onde a mulher plantava a abóbora, a batata-doce, o quiabo, o tomate e o alface. O alimento sempre era escasso nos períodos de seca prolongada ou de chuva em abundância. Nessas horas de mais vexame, recorria-se ao parente e ao vizinho para arranjar algo que abrandasse o duro passadio.  No estio demorado, o trabalhador alimentava-se com beiju de jatobá, peixe pequeno pescado no rio empoçado. Nas cheias, em algum braço do rio ou lagoa que se formava na várzea, pescava-se o peixe grande, o que até certo ponto aliviava.

           Torto arado conta a história das irmãs Bibiana e Belonísia, que ainda pré-adolescentes sofrem o acidente com a faca de cabo de marfim e lâmina que brilha como espelho, escondida entre as roupas velhas da avó Donana, na mala debaixo da cama.  É quando a aguçada curiosidade das irmãs força que descubram o que existe guardado na mala debaixo da cama, fazendo que se vejam surpresas diante da faca de intenso brilho na lâmina e com o cabo de marfim. Ocorre o acidente em que uma delas tem a língua cortada enquanto a outra apenas fica ferida. A irmã que ficou sem a língua só será revelada no final do romance, recurso que o autor usa com habilidade na técnica de sustentar o suspense para aprofundar a narrativa na trama, em cujos atalhos de passagens impressionantes desenvolvem-se outros acontecimentos arrojados vividos pelas duas personagens. 

      Com o acidente, uma irmã fica como responsável na transmissão   dos sentimentos da outra, do significado dos dizeres em silêncio provocados pela espontaneidade do riso ou desconforto da tristeza. Na situação que sempre existia com a compreensão recíproca, numa convivência de gestos expressos com o sentimento de amor fraterno, como antes nunca deixou de existir. Mais unidas estavam agora, apreensivas, até certo ponto cautelosas, uma pressentindo o que se passava no coração da outra, sem poder expressar suas reações diante dos seres e das coisas.    

            Aparece em suas vidas o primo Severo para separá-las nos sentimentos bons que existiam entre elas, naquela irmandade formada pela cadência do viver desprovida de animosidade. As chamas do amor surgem para aquecer de repente o coração de cada uma, as pulsações agora são causadas pelas visões que as inquietam, originadas pela jovialidade do primo. A desconfiança e o ciúme são mazelas que nascem dessas chamas para separá-las no rancor, que não souberam antes em qualquer circunstância.   O diálogo nutrido pelo afeto já não se faz disponível pela alma que teme ser ofendida pela vitória do amor da outra, a que não ficou emudecida com o acidente provocado pela faca de cabo de marfim.  Somente no final é também revelado o mistério que envolve a faca de lâmina brilhante, durante tanto tempo guardando o segredo de algo fatal por Donana, que reage zangada quando pressente que o instrumento afiado possa ser descoberto por algum curioso.           

           Bibiana faz-se agricultora com o passar do tempo enquanto a irmã Belonísia acompanha o marido quando ele se afasta da fazenda Água Negra em busca de melhores dias na cidade. É lá, em chão estranho, de desafio e dificuldade, que ela consegue se formar em professora.  De volta às origens tempos depois, o marido entrega-se à causa de conscientização dos que trabalham na terra com as mãos incansáveis, recebendo no final como recompensa o descanso no cemitério Viração. E dessa  maneira, conscientes do  discurso solidário, possam se libertar do jugo imposto na rotina do trabalho sem paga,  que exaure, torna a vida sofrida, inconcebível, sugada na lavra até a derradeira gota de suor, que só encontra sossego no sumidouro de uma cova rasa.  Severo é assassinado. Belonísia decide retomar a luta do marido para a libertação dos que vivem submissos à canga do dono da terra, o único que tira proveito do trabalho exercido em condição desumana.      

            Em Torto arado, romance audacioso na denúncia social, como Beira rio beira vida, do piauiense Assis Brasil, o autor não se omite quando é para dar seu testemunho crítico sobre a questão social da terra usada em níveis desumanos. Faz ecoar de suas páginas o grito pungente riscado nas dores de uma realidade soprada pelo vento de amanhecer áspero, que só encontra alento no escape para uma hora mais branda vivida no plano espiritual com os encantados. 

       No final de romance tão belo quanto revelador da vida encalhada numa estrutura arcaica, a personagem Salu deixa seu grito ecoar contra os donos da terra e o uso dela de maneira desumana, num misto de coragem assombrosa e grandeza humana:

 

         “Vocês podem até me arrancar dela como uma erva ruim, mas nunca irão arrancar a terra de mim.” (página 230, edição 2020)

 

             Para esse romance de incursão intimista e social na realidade rural brasileira, motivado pela gente do quilombo, a mensagem de uma épica contemporânea é encerrada com o pensamento reflexivo de afirmação lúcida.

                                  

        “Sobre a terra, há de viver sempre o mais forte.”  (página 262,   

                                              ano 2020)


         À afirmação de mensagem poderosa pode ser adicionada a bandeira do sentimento do amor, que é de fato o mais forte, e o da liberdade, o mais valoroso. 

 

 Referência

 JUNIOR, Itamar Vieira, Torto arado, romance, Prêmios Leya, Jabuti e Oceanos de Literatura, Editora Todavia, São Paulo, 2020.


 


*Cyro de Mattos
é autor de 80 livros, de diversos gêneros. É também publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos.  Membro da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil e Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.  Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.

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