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sexta-feira, 11 de março de 2022

QUANDO A TARDE VEM CAINDO – Ariston Caldas


 Ele mesmo se divertia: “Osório, não te metes com mulher novinha!” Parecia intuição, um aviso do que estava por acontecer. Conhecera Beatriz como caixa de uma loja de vender bombons, menina quase ingênua, de sobrancelhas fechadas, sorriso leve, cabelo cheio feito em cachos, olhos apertados; uma fitinha do Senhor do Bomfim atada no pulso da mão direita. Ele, conversador, alegre, com a experiência de 55 anos.

            Intimidade crescendo, a começar por não receber os trocos; depois, os alisamentos, a espera na saída do trabalho, ao meio-dia e à noitinha; ele a segurava por um braço ou punha-lhe uma mão ao ombro, rua afora até o ponto do ônibus. Beatriz nem conhecera o pai que teria sido um sujeito ciumento mas responsável, segundo as estórias da mãe dela, mulher ranzinza mas que nem sabia do chamego entre a filha e Osório; assuntava somente o dinheiro dela rendendo, vestidos bonitos, sapatos, sutiãs, calcinhas. “Graças a Deus o emprego tá dando certo”.

          “Não tenho nem um perfume”. Osório comprava, dos bons. Por que se embeiçara assim com Beatriz? Era uma menininha novinha, direita, mas novinha demais para ele com quarenta e tantos a mais. Tentava um beijo na boca, ela virava o rosto, como a proteger-se. “Não”. Abria a bolsinha dela, futucava; uma vez viu o nome de um sujeito, escrito num pedaço de papel: Sílvio. “Namorado”, não, “amiguinho”. Passou a ciumar de Beatriz.

            “Eu queria que você fosse meu pai”. Gostava do apoio dele, dos afagos, alisando seu cabelo em cachos, apertando-a contra o peito. Vinham as brincadeiras dela, “par ou ímpar?”. Desenhava carinhas de bonecos, bichinhos; ele assistia, empolgado com o mundo.

            Beatriz conheceu a casa onde ele morava; ajeitava os móveis, lavava os pratos arrumava a cama, o guarda-roupas; gostaria que Beatriz fosse a dona de tudo. Se tivesse condição compraria uma casa boa para ela, faria uma poupança e um seguro que lhe garantisse o futuro; tinha somente uma aposentadoria razoável, uma pequena reserva num banco. Não tirava Beatriz da cabeça, lembrava da juventude, disputado. Ela só lhe deixava beijá-la no rosto, bem do lado; na boca, não; “Tanto faz aqui como ali”, ele pensava. Beatriz o encarava nesses momentos, desentendida, lhe fitando os olhos, como quem procurava adivinhar as intenções.

            “Queria que você fosse meu pai”. Depois de Beatriz, Osório sentia-se jovem, tomava cerveja, comia acarajé, participara de peladas no meio da praia. Beijo, só no rosto, bem de lado. Avançou uma vez. “Você beijou minha boca?” Ele pediu desculpa. “Foi casual”. Ela limpou os lábios com os dedos, ficou olhando para o chão, calada, sentindo; Osório ficou feliz, experimentara o gosto da boca de Beatriz, estranho e bom; a momento a preocupação sumiu e ela voltou às brincadeiras, fazendo “dedo mindinho”, jogando “três-marias” no pátio da casa dele. “Uma menina tola”, pensava, satisfeito, perdido num mundo de sonhos, como se estivesse num castelo colorido, cheio de juventude; Beatriz fazia um biquinho, atravessava os olhos, ajeitava o cabelo, lhe apalpava o rosto, de supetão: “Perdeu”.

            Ele passou a amar a vida com mais entusiasmo, com mais fulgor, sentir com mais beleza as estações do ano, mesmo dormindo só, sem carinho, sem Beatriz que morava numa casa humilde de um bairro distante; menina de seus sonhos, uma rosa cheia de viço. Ele sentia tudo com clareza, lembrava da juventude, preferido, disputado por este mundo a fora. E um dia Beatriz apareceu de sobrancelhas fechadas, sorriso leve, olhos apertados; doze anos despontados cheios de frescor. Ele pensava definir a situação: “quero me casar com você”.

            Beatriz nem pensava nisso; gostava dele, até o amava, mas como se fosse uma filha, uma amiga sincera. E a definição veio dela: “Quero me casar com Sílvio”. Quem era Sílvio? Lembrou do pedacinho de papel. Beatriz queria seu consentimento. Ele sentiu tontura, um suor frio porejar pelo rosto. E disse que sim, com amargura.

            Enxovou Beatriz dos pés à cabeça, foi o padrinho do casamento; bebeu champanha, comeu iguarias e fez um discurso. Era tarde da noite quando voltou para casa, à toa, mais solitário do que nunca. Saiu pela beira do cais, olhando a escuridão, ouvindo o barulho das ondas em baixo trovejando pelas rochas em redor. Chegou em casa ainda meio tonto, deitou-se e adormeceu sentindo-se num altar iluminado e florido, beijando a boca de Beatriz como se ele fosse Sílvio.

 

(LINHAS INTERCALADAS)

Ariston Caldas

 

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Ariston Caldas nasceu em Inhambupe, norte da Bahia, em 15 de dezembro de 1923. Ainda menino, veio para o Sul do estado, primeiro Uruçuca, depois Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde residiu por 12 anos. Jornalista de profissão, Ariston trabalhou nos jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia e fundou o periódico ‘Terra Nossa’, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia; em Itabuna foi redator da Folha do Cacau, Tribuna do Cacau, Diário de Itabuna, dentre outros. Foi também diretor da Rádio Jornal.

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