Os fanqueiros literários
Não é isto uma sátira em prosa. Esboço literário apanhado
nas projeções sutis dos caracteres dou aqui apenas uma reprodução do tipo a que
chamo em meu falar seco de prosador novato — fanqueiro literário.
A fancaria literária é a pior de todas as fancarias. É a
obra grossa, por vezes mofada, que se acomoda à ondulação das espáduas do
paciente freguês. Há de tudo nessa loja manufatora do talento — apesar da
raridade da tela fina; e as vaidades sociais mais exigentes podem vazar se, segundo
as suas aspirações, em uma ode ou discurso parvamente retumbantes.
A fancaria literária poderá perder pela elegância suspeita
da roupa feita, mas nunca pela exiguidade dos gêneros. Tomando a tabuleta por
base do silogismo comercial é infalível chegar logo à proposição menor, que é a
prateleira guapamente atacada a fazer cobiça às modéstias mais insuspeitas.
É lindo comércio. Desde José Daniel, o apóstolo da classe —
esse modo de vida tem alargado a sua esfera — e, por mal de pecados, não
promete ficar aqui. O fanqueiro literário é um tipo curioso.
Falei em José Daniel. Conheceis esse vulto histórico? Era
uma excelente organização que se prestava perfeitamente a autópsia. Adelo
ambulante da inteligência, ia farto como um ovo, de feira em feira, trocar pela
enzinhavrada moeda o pratinho enfezado de suas lucubrações literárias. Não se
cultivava impunemente aquela amizade; o folheto esperava sempre os incautos,
como a Farsália hebdomadária das bolsas mal avisadas.
A audácia ia mais longe. Não contente de suas especulações
pouco airosas, levava o atrevimento a ponto de satirizar os próprios fregueses
— como em uma obra em que embarcava, diz ele, os tolos de Lisboa, para certa
ilha; a ilha era, nem mais nem menos, a algibeira do poeta. É positiva a aplicação.
Os fanqueiros modernos não vão à feira; é um pudor. Mas que
de compensações! Não se prepara hoje o folheto de aplicação moral contra os
costumes. A vereda é outra; exploram-se as folhinhas e os pregões matrimoniais
e as odes deste natalício ou daqueles desposórios. Nos desposórios é então um
perigo; os noivos tropeçam no intempestivo de uma rocha tarpéia antes mesmo de
entrar no Capitólio.
Desposório, natalício ou batizado, todos esses marcos da
vida são pretextos de inspiração às musas fanqueiras. É um eterno gênesis a
referver por todas aquelas almas (almas!) recendentes de zuarte.
Entretanto, esta calamidade literária não é tão dura para
uma parte da sociedade. Há quem se julgue motivo de cuidados no Pindo — assim como
pretensões a semideus da antiguidade; é um soneto ou uma alocução recheadinha
de divagações acerca do gênesis de uma raça —sempre eriça os colarinhos a
certas vaidades que por aí pululam — sem tom nem som.
Mas, entretanto — fatalidade! — por muito consistentes que
sejam essas ilusões, caem sempre diante das consequências pecuniárias; o
fanqueiro literário justifica plenamente o verso do poeta: não arma do louvor,
arma do dinheiro. O entusiasmo da ode mede-o ele pelas possibilidades
econômicas do elogiado. Os banqueiros são então os arquétipos da virtude sobre
a terra; tese difícil de provar.
Querendo imitar os espíritos sérios, lembra-se ele de
colecionar os seus disparates, e ei-lo que vai de carrinho e almanaques na mão
— em busca de notabilidades sociais.
Ninguém se nega a um homem que lhe sobe as
escadas convenientemente vestido, e discurso na ponta dos lábios. Chovem-lhe assim
as assinaturas. O livrinho é prontificado e sai a lume. A teoria do embarcamento
dos tolos é então posta em execução; os nomes das vítimas subscritoras vêm
sempre em ar de escárnio no pelourinho de uma lista-epílogo. É, sobre queda,
coice.
Mas tudo isso é causado pela falta sensível de uma
inquisição literária! Que espetáculo não seria ver evaporar-se em uma fogueira
inquisitorial tanto ópio encadernado que por aí anda enchendo as livrarias!
Acontece com o talento o mesmo que acontece com as estrelas.
O poeta canta, endeusa, namora esses pregos de diamante do dossel azul que nos
cerca o planeta; mas lá vem o astrônomo que diz muito friamente: — Nada! Isto
que parece flores debruçadas em mar anilado, ou anjos esquecidos no
transparente de uma camada etérea, — são simples globos luminosos e parecem-se
tanto com flores, como vinho com água.
Até aqui as massas tinham o talento como uma faculdade
caprichosa, operando ao impulso da inspiração, santa, sobretudo em todo o seu
poder moral.
Mas cá as espera o fanqueiro. Nada! O talento é uma simples
máquina em que não falta o menor parafuso, e que se move ao impulso de uma
válvula onipotente.
É de desesperar de todas as ilusões!
Em Paris, onde esta classe é numerosa, há uma especialidade
que ataca o teatro. Reúnem-se meia dúzia em um café e aí vão eles de
colaboração alinhavar o seu vaudeville quotidiano. A esses milagres de faculdade
produtiva se devem tantas banalidades que por lá rolam no meio de tanto e tão
fino espírito.
Aqui o fanqueiro não tem por ora lugar certo. Divaga como a
abelha de flor em flor em busca de seu mel e quase sempre, mal ou bem, vai
tirando suculento resultado.
Conhece-se o fanqueiro literário entre muitas cabeças pela
extrema cortesia. É um tique. Não há homem de cabeça mais móbil, e espinha
dorsal mais flexível; cumprimentar para ele é um preceito eterno; e ei-lo que o
faz à direita e à esquerda; e, coisa natural! Sempre lhe cai um freguês nessas
cortesias.
O fanqueiro literário tem em si o termômetro das suas
alterações financeiras; é a elegância das roupas. Ele vive e trabalha para
comer bem e ostentar. Bolsa florescente, ei-lo dândi apavoneado — mas sem
vaidade; lá protesta o chapéu contra uma asserção que se lhe possa fazer nesse
sentido.
A Buffon escapou esse animal interessante; nem Cuvier lhe
encontrou osso ou fibra perdidos em terra antediluviana. Por mim, que não faço
mais que reproduzir em aquarelas as formas grotescas e sui generis do tipo,
deixo ao leitor curioso essa enfadonha investigação.
Uma última palavra.
O fanqueiro literário é uma individualidade social e marca
uma das aberrações dos tempos modernos. Esse moer contínuo do espírito, que faz
da inteligência uma fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria
intelectualidade. Fazer do talento uma máquina, e uma máquina de obra grossa,
movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do
talento, e o pudor da consciência.
Procurem os caracteres sérios abafar esse estado no estado
que compromete a sua posição e o seu futuro.
Aquarelas
Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.
Publicado originalmente em O Espelho, Rio de Janeiro
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