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quarta-feira, 12 de abril de 2017

OS FANQUEIROS LITERÁRIOS – Machado de Assis


Os fanqueiros literários


Não é isto uma sátira em prosa. Esboço literário apanhado nas projeções sutis dos caracteres dou aqui apenas uma reprodução do tipo a que chamo em meu falar seco de prosador novato — fanqueiro literário.

A fancaria literária é a pior de todas as fancarias. É a obra grossa, por vezes mofada, que se acomoda à ondulação das espáduas do paciente freguês. Há de tudo nessa loja manufatora do talento — apesar da raridade da tela fina; e as vaidades sociais mais exigentes podem vazar se, segundo as suas aspirações, em uma ode ou discurso parvamente retumbantes.

A fancaria literária poderá perder pela elegância suspeita da roupa feita, mas nunca pela exiguidade dos gêneros. Tomando a tabuleta por base do silogismo comercial é infalível chegar logo à proposição menor, que é a prateleira guapamente atacada a fazer cobiça às modéstias mais insuspeitas.

É lindo comércio. Desde José Daniel, o apóstolo da classe — esse modo de vida tem alargado a sua esfera — e, por mal de pecados, não promete ficar aqui. O fanqueiro literário é um tipo curioso.

Falei em José Daniel. Conheceis esse vulto histórico? Era uma excelente organização que se prestava perfeitamente a autópsia. Adelo ambulante da inteligência, ia farto como um ovo, de feira em feira, trocar pela enzinhavrada moeda o pratinho enfezado de suas lucubrações literárias. Não se cultivava impunemente aquela amizade; o folheto esperava sempre os incautos, como a Farsália hebdomadária das bolsas mal avisadas.

A audácia ia mais longe. Não contente de suas especulações pouco airosas, levava o atrevimento a ponto de satirizar os próprios fregueses — como em uma obra em que embarcava, diz ele, os tolos de Lisboa, para certa ilha; a ilha era, nem mais nem menos, a algibeira do poeta. É positiva a aplicação.

Os fanqueiros modernos não vão à feira; é um pudor. Mas que de compensações! Não se prepara hoje o folheto de aplicação moral contra os costumes. A vereda é outra; exploram-se as folhinhas e os pregões matrimoniais e as odes deste natalício ou daqueles desposórios. Nos desposórios é então um perigo; os noivos tropeçam no intempestivo de uma rocha tarpéia antes mesmo de entrar no Capitólio.

Desposório, natalício ou batizado, todos esses marcos da vida são pretextos de inspiração às musas fanqueiras. É um eterno gênesis a referver por todas aquelas almas (almas!) recendentes de zuarte.

Entretanto, esta calamidade literária não é tão dura para uma parte da sociedade. Há quem se julgue motivo de cuidados no Pindo — assim como pretensões a semideus da antiguidade; é um soneto ou uma alocução recheadinha de divagações acerca do gênesis de uma raça —sempre eriça os colarinhos a certas vaidades que por aí pululam — sem tom nem som.

Mas, entretanto — fatalidade! — por muito consistentes que sejam essas ilusões, caem sempre diante das consequências pecuniárias; o fanqueiro literário justifica plenamente o verso do poeta: não arma do louvor, arma do dinheiro. O entusiasmo da ode mede-o ele pelas possibilidades econômicas do elogiado. Os banqueiros são então os arquétipos da virtude sobre a terra; tese difícil de provar.

Querendo imitar os espíritos sérios, lembra-se ele de colecionar os seus disparates, e ei-lo que vai de carrinho e almanaques na mão — em busca de notabilidades sociais.
Ninguém se nega a um homem que lhe sobe as escadas convenientemente vestido, e discurso na ponta dos lábios. Chovem-lhe assim as assinaturas. O livrinho é prontificado e sai a lume. A teoria do embarcamento dos tolos é então posta em execução; os nomes das vítimas subscritoras vêm sempre em ar de escárnio no pelourinho de uma lista-epílogo. É, sobre queda, coice.

Mas tudo isso é causado pela falta sensível de uma inquisição literária! Que espetáculo não seria ver evaporar-se em uma fogueira inquisitorial tanto ópio encadernado que por aí anda enchendo as livrarias!

Acontece com o talento o mesmo que acontece com as estrelas. O poeta canta, endeusa, namora esses pregos de diamante do dossel azul que nos cerca o planeta; mas lá vem o astrônomo que diz muito friamente: — Nada! Isto que parece flores debruçadas em mar anilado, ou anjos esquecidos no transparente de uma camada etérea, — são simples globos luminosos e parecem-se tanto com flores, como vinho com água.

Até aqui as massas tinham o talento como uma faculdade caprichosa, operando ao impulso da inspiração, santa, sobretudo em todo o seu poder moral.

Mas cá as espera o fanqueiro. Nada! O talento é uma simples máquina em que não falta o menor parafuso, e que se move ao impulso de uma válvula onipotente.

É de desesperar de todas as ilusões!

Em Paris, onde esta classe é numerosa, há uma especialidade que ataca o teatro. Reúnem-se meia dúzia em um café e aí vão eles de colaboração alinhavar o seu vaudeville quotidiano. A esses milagres de faculdade produtiva se devem tantas banalidades que por lá rolam no meio de tanto e tão fino espírito.

Aqui o fanqueiro não tem por ora lugar certo. Divaga como a abelha de flor em flor em busca de seu mel e quase sempre, mal ou bem, vai tirando suculento resultado.

Conhece-se o fanqueiro literário entre muitas cabeças pela extrema cortesia. É um tique. Não há homem de cabeça mais móbil, e espinha dorsal mais flexível; cumprimentar para ele é um preceito eterno; e ei-lo que o faz à direita e à esquerda; e, coisa natural! Sempre lhe cai um freguês nessas cortesias.

O fanqueiro literário tem em si o termômetro das suas alterações financeiras; é a elegância das roupas. Ele vive e trabalha para comer bem e ostentar. Bolsa florescente, ei-lo dândi apavoneado — mas sem vaidade; lá protesta o chapéu contra uma asserção que se lhe possa fazer nesse sentido.

A Buffon escapou esse animal interessante; nem Cuvier lhe encontrou osso ou fibra perdidos em terra antediluviana. Por mim, que não faço mais que reproduzir em aquarelas as formas grotescas e sui generis do tipo, deixo ao leitor curioso essa enfadonha investigação.

Uma última palavra.

O fanqueiro literário é uma individualidade social e marca uma das aberrações dos tempos modernos. Esse moer contínuo do espírito, que faz da inteligência uma fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria intelectualidade. Fazer do talento uma máquina, e uma máquina de obra grossa, movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o pudor da consciência.

Procurem os caracteres sérios abafar esse estado no estado que compromete a sua posição e o seu futuro.


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Aquarelas

Texto-fonte:
Obra Completa, Machado de Assis,
Rio de Janeiro: Nova Aguilar, V.III, 1994.

Publicado originalmente em O Espelho, Rio de Janeiro

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