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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

RIO CACHOEIRA: A LIÇÃO DAS ÁGUAS - Manoel Lins

Foto: Uesc.com
A lição das águas

          Parecia um sonho, talvez pesadelo. A água não respeitava nem o sono do Governador, que deve ser respeitado até debaixo d’água. Dir-se-ia que o Cachoeira queria lavar a cidade toda, castigá-la por seu trabalho diuturno ou, talvez, pela maldade escondida dos homens, que só o rio conhece e conta aos poetas na madrugada de lua cheia. O Cachoeira era leito de dor e de miséria. Caminho obrigatório por onde passavam geladeiras, pneus, móveis, árvores, corpos de homens e animais, o desespero e o pavor de muitos. Estranha procissão de desesperanças. Os Sete Cavaleiros do Apocalipse cavalgavam em velozes corcéis negros sobre as águas de um rio furioso. O povo flagelado, vestido como se fosse a um baile psicodélico, ouvia aflito, as vozes dos gigolôs da miséria coletiva. As “otoridades” estavam mais perplexas do que o povo. Atônitas e inertes.

          Só existia a água do rio em acrobacias mortais e a solidariedade do povo, que saía do céu e da terra, de lugares sem fim, salvando coisas e gente. O rio não respeitava ninguém. Farmácia, loja, bar, cinema. Até Lampião e Maria Bonita foram tragados pelas águas, disparando pela Avenida Cinquentenário, armados até os dentes, e seguidos de todo o bando, segundo presenciou Marcinho Mendonça, que está vivo e não me deixa mentir.

          Quando as águas baixaram, os políticos já discutiam quem seria o presidente da “comissão”. As mulheres ”políticas” arengavam na distribuição dos víveres. Cada qual queria ser mais atuante. Era a usura da generosidade. No desvario da irresponsabilidade, o novo material da Telefônica foi destruído, numa zona onde a água demorou de chegar.

          As lágrimas dos pobres que perdiam o barraco aumentavam a fúria do rio. O Cachoeira ficou louco de pedra e, puritano, se arremessou contra o Marabá, não se incomodando com os fantasmas que ali bebiam seu último trago.

          Após o dilúvio, Noé pediu a palavra e falou com a multissecular experiência: “Despertai, oh, homens de pouca fé. Mudai essa mentalidade de urubu, que só pensa em fazer casa quando chove, passada a tormenta diverte-se sob o sol. A cidade precisa preparar-se para futura enchente. Faz-se necessária a criação de um organismo, constituído de técnicos e amigos da cidade, dispondo de planos previamente traçados e material suficiente para enfrentar com certa mobilidade qualquer calamidade pública. Um organismo que tenha, de antemão, pelo menos, condições de abrigar as populações ribeirinhas, requisitar mantimentos e carros oficiais. Que tenha o COMANDO DA CIDADE DURANTE A ENCHENTE. Que disponha de equipes de salvamento e de segurança pública, afastando das ruas os bêbados e os “turistas” que utilizam até carros oficiais. Que mantenha em ordem , tanto quanto possível, os serviços públicos essenciais. É hora de pensar nisso. Quem avisa amigo é. O Prefeito pintou os postes da Cinquentenário, talvez, antecipando as alturas das águas. Deixai que os políticos se digladiem, a vós, amigos da cidade, cabe a tarefa restauradora”.

Assim falou Noé, quando o rio deixou um mar de lama na cidade. Parecia um sonho, talvez um pesadelo.

(MENINO ALUADO)
Manoel Lins

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MANOEL LINS – Nasceu em Buerarema, Sul da Bahia a 4 de julho de 1937.
Diplomado em advocacia pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Em Salvador trabalhou em jornais. Em Itabuna exerceu a advocacia e publicou algumas monografias relacionadas com a área profissional. Como cronista compareceu frequentemente em quase toda a imprensa da região cacaueira baiana. Uma seleção dessas crônicas foi publicada em “Menino Aluado”, 1968. Participando do espetáculo da vida na cidade pequena, assistindo, confrontando, depondo, suas crônicas são retalhos primorosos do cotidiano sem esconder certa dose de sentimento de mundo. Não fosse a morte prematura, encontraria seu lugar merecido na crônica brasileira.
Faleceu, vítima de acidente automobilístico, em 1975.


Da coletânea ITABUNA, CHÃO DE MINHAS RAÍZES organizada por Cyro de Mattos

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