A ONU é a grande expressão do multilateralismo. O
multilateralismo começou a tomar forma no início do século 20. Resultou da
dinâmica das transformações que unificaram a humanidade, para o bem e para o
mal, tornando o mundo finito e interdependente.
Foi o que passou a exigir mecanismos institucionalizados de
cooperação entre os Estados por meio de organizações internacionais. Estas
criam tabuleiros diplomáticos que geram normas e pautas de conduta, elaboradas
coletivamente pelos Estados para regerem suas recíprocas relações. Essas pautas
e normas expressam em distintas conjunturas o possível da cooperação e do
entendimento internacional. São sempre uma contínua, porém esquiva, conquista
da razão política.
O Brasil participou dos momentos inaugurais da diplomacia
multilateral: a Conferência de Paz de Haia em 1907 e a Conferência de Paris de
1919, a qual, ao término da 1.ª Guerra Mundial, levou à criação da Sociedade
das Nações. A partir dessas experiências, o pensamento diplomático brasileiro
identificou no multilateralismo um dos caminhos para a ação da política externa
do País. Avaliou que um país como o nosso, de escala continental, sem
“excedentes de poder” – como dizia o chanceler Saraiva Guerreiro –, mas com
“interesses gerais” na dinâmica de funcionamento do mundo que o afeta, é nos
tabuleiros do multilateralismo que sua voz encontra espaço para efetiva
articulação.
No âmbito da ONU, o momento de maior significado da
articulação da voz do Brasil é o discurso de abertura dos debates anuais da
Assembleia-Geral. A prática consolidou a tradição de que cabe ao Brasil esse
discurso. É o que vem sendo feito desde 1946.
A oportunidade de ser o primeiro a falar nos debates da
Assembleia-Geral fez com que os chefes das delegações do Brasil na ONU – fossem
embaixadores credenciados, ministros das Relações Exteriores ou os próprios
presidentes da República – pronunciassem um discurso abrangente. Na avaliação
de Luiz Felipe de Seixas Corrêa, que superiormente organizou a publicação
desses discursos, antecedendo-os de uma esclarecedora análise de seus contextos
internos e externos, o que os caracteriza é uma apreciação da situação
internacional que é a moldura para a enunciação da visão brasileira do mundo e
para a subsequente apreciação das principais questões internacionais. É o que
os diferencia “da grande maioria das delegações que intervêm no debate geral,
mais preocupadas com questões tópicas” (A Palavra do Brasil nas Nações Unidas –
1946-2011, 3.ª edição).
É considerável o desafio envolvido na elaboração desse tipo de
discurso. Requer um olhar sempre atualizado sobre as mudanças da realidade
internacional e, para ser devidamente abrangente, a capacidade de captar o que
acontece no nosso contexto regional. O discurso na ONU é uma importante
oportunidade de contribuir para a definição da agenda global e, nesse âmbito,
formular como ela enseja a tradução das necessidades internas em possibilidades
externas.
O histórico dos discursos deixa entrever, como aponta Seixas
Correa, algumas dicotomias que caracterizam a formulação da política externa
brasileira. Expressam as complexas dimensões do nosso país. Entre elas:
realismo/idealismo, reivindicação/invenção, ocidentalismo/terceiro-mundismo,
democracia/autoritarismo, continuidade/mudança.
Apesar disso, não obstante mudanças de ênfase e orientações,
que provêm de distintas conjunturas internas e internacionais, há uma constante
estável que tem sua origem na singularidade do lugar que o Brasil ocupa no
mundo. No espaço de permissibilidade que o mundo nos oferece, o caminho trilhado
pelo Brasil na explicitação da sua voz está alinhado com as formulações de Rui
Barbosa em Haia: contrapor-se ao exclusivismo do poder das grandes potências e
atuar no concerto das nações não com o peso de suas armas ou com eventuais
ambições de potência, mas com a força de suas razões e a ascendência do seu
Direito.
É por isso que esses discursos se têm oposto ao
unilateralismo, sustentando os méritos do multilateralismo, e articulado a
importância da paz, da cooperação e da solução pacífica de controvérsias.
Reconhecem a heterogeneidade do sistema internacional e seu consequente
pluralismo ideológico. Por isso, sem espírito de cruzada advogam o papel das
negociações. Nas palavras do chanceler Horácio Lafer – de grande atualidade num
mundo multipolar e permeado por tensões –, no seu discurso na ONU em 1960:
“Face à inadmissibilidade de soluções bélicas, o mundo se acha confrontado com
a necessidade de ajustar, por negociação as diferenças que separam as nações. O
caminho em busca de soluções para os problemas do nosso tempo é a negociação
permanente, o propósito de sempre negociar”.
Os discursos do Brasil na ONU têm sido enunciados numa
linguagem apropriadamente diplomática. É o que confere qualidade à sua voz e ao
estilo de sua visão do mundo, que agrega substância à reputação do nosso país.
No ensinamento de Rui: “Hoje, com efeito, mais do que nunca, a vida assim moral
como econômica das nações é cada vez mais internacional. Mais do que nunca, em
nossos dias, os povos subsistem de sua reputação no exterior”.
A História não parte do zero a cada período presidencial.
Por isso, no processo de redação do discurso da ONU, usualmente se leva em
conta o que foi dito na abertura dos debates da Assembleia-Geral de 1946 até
agora e o papel das forças internas e externas que modularam a voz do Brasil. É
o que lhe dá, em distintas conjunturas, coerência, elemento da reputação
internacional e de credibilidade.
Esse é o pano de fundo que permeia o peso da
responsabilidade que deve ter o próximo discurso do Brasil na ONU, este mês.
Uma de suas exigências é preservar no âmbito mundial a reputação internacional
do nosso país.
Estadão, 15/09/2019
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Celso Lafer - Quinto ocupante da cadeira 14 da ABL, eleito
em 21 de julho de 2006, na sucessão de Miguel Reale, e recebido em 1º de
dezembro de 2006 pelo acadêmico Alberto Venancio Filho.
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