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domingo, 4 de junho de 2017

TERRA MÃE - Helena Borborema

Terra Mãe


          Numa clara e fria manhã de junho, a menina foi levada à proximidade da janela aberta, para ver pela primeira vez a luz amena dos raios solares, que lhe chegaram como um afago. Tinha poucos dias de nascida. A claridade lhe tocou os olhinhos então fechados, que se abriram vagarosamente em leves piscadelas, e pela primeira vez na vida viu a brilhante luz do mundo que se abria para ela. Esse encontro foi como um beijo de luz, o primeiro contato daquela meninazinha com o sol de sua cidade.

          Mais tarde, já crescida, a menina olhou pela primeira vez com atenção para o céu azul-escuro recamado de pontos brilhantes que se estendiam sobre a sua cabeça e, diante da maravilha que foi aquela visão, de dedo apontado, tentou contar quantas estrelas tinha o céu de sua terra, buscando encontrar entre estas a mais bonita. Ao mesmo tempo, foi o contato mais consciente com o rio, com o frescor de suas manhãs após uma noite de chuva, as suas enchentes,  a visão de suas margens escuras e silenciosas à noite, cheias de mistérios para a sua alma infantil, alegres e verdejantes durante o dia.

          Deve ter nascido daí, desses encontros, a amizade, a afinidade da menina com a sua terra. O seu despertar para a vida foi através desse ar que respirou, desse sol que a aqueceu, das estrelas que pela primeira vez viu brilhar. Foi o seu despertar para as belezas do mundo e esse mundo foi a sua cidade. No seu chão, deu os primeiros passos, pisando incerta a terra que já era sua. Sobre esse chão brincou quando pequena, aprendeu a caminhar, a viver. Sobre ele derramou lágrimas de criança e, mais tarde, já adulta, as mais ardentes lágrimas de dor. Como um relicário, o chão de sua terra guarda sob ele despojos que lhe são extremamente amados, e por isso ele também lhe é sagrado.

          Lembranças de uma vida inteira tiveram como cenário as ruas, as casas, os jardins, as plantas, as gentes de sua terra e o seu rio que, embora maltratado, sonolento, triste, lhe fala de histórias e lembra coisas bonitas do passado.

          Outras terras foram vistas, outras paisagens descortinadas, outros rios, cidades com características marcantes de civilização e arte. Nada, porém lhe toca mais o coração do que a cidade onde nasceu, a TERRA-MÃE onde cada pedaço de chão lhe conta uma história e projeta imagens do passado que vão surgindo como lembranças no presente.


(“Retalhos”)
HELENA BORBOREMA
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NOTA DA AUTORA
Retalhos.  Que é retalho? Nada mais do que sobras, pequenos pedaços que restaram de um todo. É um pedaço de pano que sobrou de outro maior. Assim, esse título “Retalhos” condiz com os pequenos fatos, pequenas lembranças, pedaços que restaram de uma peça maior que é a minha vida. Foram sendo ajuntados aqui e acolá, na medida em que foram aparecendo e colocados nestas páginas. Juntados os pedaços e olhados como um todo  dão-me a visão de um tempo passado da minha cidade, então mais humana, mais irmanada, quando todos se conheciam e se abraçavam no abraço de velhas amizades, quando a vida parecia mais simples e descompromissada. Retalhos da vida, coisas simples que sobraram no meio dos grandes momentos do existir. Cada um deles eu hoje revejo com a alegria de quando menina, aquela alegria que meus olhos e coração guardaram.
                                                                                                                         Helena Borborema    

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