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domingo, 4 de junho de 2017

CAROL - Ariston Caldas

Carol


          Não sabia por que se visgava tanto a Carol. Um absurdo.

          Bonita ela não era e de perfil chegava próximo a ser feia – nariz levemente curvo, olhos muito espaçados um do outro, de lábios finos, boca que nem imitava um coração. Somente os cabelos eram razoáveis – lisos, cheios, de colorido entre marrom e preto. De corpo, algum atrativo, o que não quer dizer se parecesse com um modelo, muito menos com uma miss; os seios eram duros e mais próximos da barriga do que da base do pescoço um tanto envelhecido, mostrando rugas discretas. 32 anos.

          Seria impressão pelo nome, uma obstinação? Carol. Não era apelido, nome verdadeiro. Lembrava que na infância conhecera uma menininha ao lado chamada assim. Apelido. O nome de batismo dela era Carolina. Mas, por isso ou aquilo, sentia-se visgado por Carol.

          Quando se deitava com ela, era um sufoco, uma alucinação. Esquecia-se do mundo; predestinação, lembrava.

          A mãe dele dizia que tudo na vida é traçado pelo destino. “Ninguém foge do destino”, ela falava. Tantas mulheres bonitas por aí, novinhas, só ele garrado com uma sem expressão. “Será pelo cheiro do corpo”? Exalava de baixo para cima, lembrando cheiro de marisco. Ele o sentia estranho, mas gostava.

          Havia também o estridente da voz, a maneira de fechar os olhos. Um conjunto de coisas que o deixava confuso, com o juízo exacerbado. Magrinha, sem polimento na expressão do falar; sem elegância no porte, “sem coisa nenhuma que justifique essa obsessão”. Tentava ou pensava nisto, arrumar outra que o recomendasse no meio onde vivia – conhecido, de bom conceito, contabilista acreditado, capaz de conseguir namoradas bonitas, de família importante, às vezes, pensando em tudo isso, sentia pena de Carol, humilde, magrinha, com cheiro de marisco vindo de baixo. Mas não podia. Quem lhe mandou meter-se!

          De certo modo, seria fácil libertar-se. A qualquer dia desses. E ficava pensando nessa possibilidade, mentalizando arrumar-se adiante.

          Lembrava de uma balconista de olhos verdes que ia toda tarde tomar sorvete numa lanchonete ao lado do escritório onde trabalhava. Devia ser perfumada, tinha a boca bem delineada, os seios altos o os olhos com uma distância estética entre um e outro. Já ouvira ela falar, voz meiga, sem as manhas da fala de Carol. Vinham outras em suas ideias, lembrava que desde menino atraía as mulheres e não seria agora, com os primeiros fios brancos aparecendo, que ia se dobrar ao destino, como acreditava a mãe dele. Teria que buscar a razão, meio que o recomendasse entre amigos, parentes e conhecidos. Pensava assim sentindo pena de Carol, desconfiada, rústica a momentos: “quando eu sumir, você vai ver!” Ele ouvia, pensando sem acreditar, senhor de si mesmo. Teria quantas quisesse, bonitas, cheirosas.

          Carol lhe beliscava, atravessava os olhos. “Sabe que você é feio?” depois ficava embutida, trancada. Ele se afastava e Carol ficava resmungando, falando baixinho, xingando. O cheiro subia ativo, inalante. Tinha pena de Carol começando a envelhecer. “Pensa que vai encontrar outro igual a mim!” Sentia-se dono da situação, dono de Carol, absoluto.

          Vez em quando ela sumia. “Por quê?” Ficava doido pela rua, pelas esquinas,  os olhos vasculhando. Nem de longe ninguém parecido, nem no porte nem no andar. “É bom que ela não me apareça mais!” Sentia falta dela, dos olhos afastados um do outro, da fala sutil,  às vezes estridente. Lembrava do cheiro e parecia senti-lo ativo, subindo, tomando conta do nariz.

          A moça que gostava de sorvete era perfumada, ele sentia o cheiro passando; tinha os lábios de coração, os olhos verdes. Havia outras conhecidas, e desconhecidas, era só avançar.

          Mas Carol  voltava, aparecia de novo, misteriosa, olhos espaçados trejeitando. Entrava, as mesmas conversas, cabelo cheio caindo pelos ombros. Ia para o quarto dele, ajeitava o forro da cama, o travesseiro, futucava coisas dentro do guarda-roupa. Ele ficava calado, assuntando de banda, surpreendido, desconfiado, satisfeito, temendo agora que Carol fosse embora para sempre. Um dia. “Quando?” O dia chegou.

          Ninguém lhe deu mais notícias dela. Nunca mais viu, também, a moça da sorveteria, de olhos verdes; nem as outras conhecidas, nem as desconhecidas. Deitava-se sozinho, esticava-se cheio de lembranças. À noite, quando ia dormir, sentia o cheiro de marisco, ativo, dos pés da cama para a cabeceira. Metia o rosto no travesseiro e sentia vontade de chorar.

(LINHAS INTERCALADAS)

Ariston Caldas

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