Um Anjo Negro
O pequeno cortejo apontou na entrada da rua. Pelo aspecto dos dois homens que carregavam a rede, podia-se notar que estavam muito cansados, mas assim mesmo apressavam os passos o quanto podiam, meio vergados sob o peso do fardo que carregavam. Atrás da rede, três acompanhantes, dois homens e uma mulher. Os passantes olhavam a cena com indiferença. Já estavam acostumados a ver diariamente redes como aquela, portando um morto ou doente grave de tiro ou de mordedura de cobra e, por último, da febre braba. O pequeno grupo parou na porta do Quartel, onde estava o delegado de polícia e a rede foi arriada no chão poeirento. Aquele caso era grave; nem sabiam se o homem lá dentro, todo crivado de balas, ainda respirava. Veio o delegado e espiou o ferido.
- Quem fez este
trabalho?
- Cinco jagunços, seu
delegado.
- O homem já está morto,
levem daqui. Conhecem algum dos criminosos?
- Nenhum.
- Que querem que eu
faça? Carreguem a rede daqui.
Um débil gemido desmentiu
a opinião apressada do responsável pela polícia. A mulher chorosa espia o seu
homem semimorto e pede suplicante: - Nós queremos um doutor.
Moscas começaram a
voejar sobre o ferido. O sangue já embebera parte do lençol que o cobria e o
fundo da rede.
- Que diabo querem que
eu faça? Parados aqui na rua é que não podem ficar. Procurem outro lugar para
onde ir.
Aquilo era rotina, um
fato banal no dia-a-dia da vila. O que queriam apurar, se nem sabiam quem
fizera tamanho estrago naquele homem? Naquelas matas era difícil descobrir-se
um malfeitor, geralmente bem apadrinhado.
- Pelo menos, seu
delegado, vamos deixar o homem aqui, enquanto chamamos o doutor para ver se
ainda salva ele – rogou a mulher limpando, com o polegar, o suor que lhe descia
pela testa.
Sem dar resposta, o
delegado afastou-se impaciente. Que ano aquele! Já não bastava a febre que
estava quase a dizimar a população e o obrigava a um nunca mais acabar de
atender a pedidos de guias de enterramentos. Doido estava para deixar o cargo, do
qual já havia pedido demissão. Felizmente, era só o tempo de chegar o
substituto, ia ele remoendo com seus botões. Aquele ano foi só para morrer
gente; além dos que eram derrubados por tiros, agora juntavam-se as vítimas da
febre. Nem à noite tinha descanso, queixava-se a si próprio. Era sempre uma
agonia ouvir as rezas cantadas dos que desfilavam nas ruas quietas: Ave! Ave!
Ave Maria! Ave! Ave! Ave Maria!, quando a pequena procissão, à luz das velas
dos fiéis, passava lenta. De pedaço em pedaço todos paravam, se ajoelhavam e
batiam no peito cantando contritos o “Senhor Deus, misericórdia”.
Nessas procissões iam,
devotamente, senhoras simples do povo, mulheres da vida, ao lado das senhoras
dos coronéis. O terror da morte que descera na vila, igualava a todos na
piedade. Quantos a maligna já não tinha vitimado? Tanto fazia pobre como rico,
tanto velho como moço, em dois ou três dias se findavam. A febre sem nome, ou
melhor, a “febre braba”, surgiu de repente e dia a dia ia, de casa em casa,
levando a morte. Rara era a casa onde não se velava um defunto ou doente. As
redes e caixões se cruzavam nas ruas e o pavor era o que se estampava no rosto
de todos. O único médico e o farmacêutico já não sabiam mais como atender a
tanta gente. Remédio específico não havia.. O povo se valia do quinino, banhos
de determinadas folhas (três ou quatro por dia) e chás. Mensageiros de famílias
se empenhavam diariamente nos matos da Marimbeta, do Mutucugê, do Lava-pés, em
busca das plantas indicadas, enquanto nas cozinhas o fogo nunca se apagava,
fervendo caldeirões de folhas para o banho salvador.
Era dentro desse quadro
aterrador, temendo pela própria vida, que o delegado se via obrigado a atender
casos como aquele que ora se lhe deparava, do ferido na rede, crivado de balas.
Da casa em frente, a
mulher de um rico coronel assistia à cena. Sentiu que a ocasião era de fazer
penitência e caridade para Deus se apiedar da família dela e da população. E
resolveu intervir.
Tragam o ferido e
arreiem a rede em meu passeio. Felismino, vá depressa chamar o Dr. Lopes ou o
Dr. Nilo na farmácia.
O moleque Felismino sai
em disparada. Não demorou muito para aparecer um jovem negro de maleta de
médico na mão. Ali mesmo, sob o sol ardente, examina o doente. O caso é grave.
Uma bala atravessara o queixo de um lado a outro. Um braço com vários tiros já
demonstrava sinais adiantados de gangrena, uma perna transfixada de balas com
ossos partidos, o tórax atravessado de lado a lado.
- Doutor Lopes, tenha dó
dessa criatura. Confio no senhor, abaixo de Deus -, implorou a mulher do
coronel.
Não há hospital. Não há
Casa de Misericórdia. Nada. Mas sob a pele preta daquele médico morava um anjo
que era bondade pura; sem medir distância ou olhar classe social, ele servia a
todos com a mesma dedicação, sempre pronto. Tanto fazia ser endinheirado como
pobre, a dedicação era a mesma, a bondade uma só.
Viajava longe a cavalo por estradas difíceis para atender
num mísero casebre. Atendia a partos complicados nas roças, pessoas mordidas de
cobra, era um só para tudo. Para Doutor Lopes a profissão era um apostolado. E
naquele instante, no meio da luta diária de casa em casa, atendendo aos doentes
de febre, o jovem médico toma as providências. Pede à senhora apenas uma sala,
um galpão, um lugar onde possa operar, pois só com uma cirurgia urgente tentará
salvar aquela vida. Uma sala vazia é arranjada, uma mesa de almoço é cedida
caridosamente e, ali, com toda aquela precariedade, doutor João Soares Lopes
opera. E salva aquela vida. É a vitória da bondade e da competência.
Um braço foi amputado, o
queixo ficou com uma funda cicatriz, mas, meses depois, com uma pequena
claudicação, Chico Cotó, como passou a ser chamado, voltava feliz à sua pequena
propriedade.
(TERRAS DO SUL)
Helena Borborema
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HELENA BORBOREMA - Nasceu em Itabuna. Professora
de Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação
Fraternal e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade
de Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do
Município. (A autora)
Conhecida professora itabunense, filha do Dr. Lafayette
Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’, livro
em que documento, memória e imaginação se unem num discurso despretensioso para
testemunhar o quadro social e humano daqueles idos de Tabocas. Para a
professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras do Sul’ são estórias simples,
plenas de ‘emoção e humanidade, querendo inscrever no tempo a história de uma
gente, o caminho de um rio, a esperança de uma professora que crê no homem e na
terra’. (Cyro de Mattos)
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