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terça-feira, 7 de março de 2017

ITABUNA ONTEM: A CHEIA DE 1914 – Francisco Benício dos Santos

A cheia de 1914


            Logo aos primórdios de janeiro, as chuvas chamadas trovoadas caíram torrencialmente sobre a Vila.

            As águas do rio foram-se avolumando, recebidas dos riachos e ribeirões, seus afluentes, e se foram crescendo, até que começaram invadindo a Vila, enquanto as chuvas caíam, sem cessar e torrencialmente, como se novo dilúvio surgisse na terra.

            O céu carregado carrancudo, não co0nsentia que o sol aparecesse, e à noite, nem a lua nem uma estrela apareciam para iluminar o seu negrume. E a chuva caía sobre o município, sem tréguas. Os elementos em fúria como que se combinavam para castigar Itabuna. E as águas do rio subiam, subiam...

          De princípio invadiu a Rua Sete de Setembro, Laranjeiras, Areia, Estrada de ferro, Praça Adami, Miguel Calmon, J.J. Seabra.

            As casas da Rua da Jaqueira já haviam sido destruídas, cujos restos desciam na correnteza do rio, como se fossem barcos em passeio.

            Troncos enormes de árvores eram levados pela correnteza, como imensas cobras a dançarem nas águas espumantes.

            Animais, galináceos, armazéns de cacau, barcaças, casas, tudo o rio ia levando.

            E começou o êxodo da população. O comércio mudou-se totalmente para a Praça da Boa Vista, Rua do Lopes e do Cemitério.

            Na Praça Adami as águas subiram a três metros de altura. A população aflita corria aos lugares altos, à procura de abrigo, enquanto as águas iam atingindo tudo, derrubando paredes, abatendo casas, matando animais...

            A ponte que liga o bairro de Taboquinhas, as águas cobriram, subindo três metros de altura do lastro.

            As canoas tomavam passageiros à porta das casas, passando pelos fundos da Rua Miguel Calmon, iam desembarca-los na Praça da Boa vista, passando por cima do telhado da estrada de ferro. Foi uma catástrofe.

            Os gêneros de primeira necessidade subiram a preços inacreditáveis. A estrada de ferro, há pouco inaugurada, fora destruída num trecho de Lava-pés a Ilhéus. As viagens eram feitas, depois da enchente, até Lava-pés e dali para Ilhéus, em canoas, pelo rio Almada.

            Numa destas viagens, a canoa naufragou fazendo muitas vítimas, entre as quais, a mulher de José Lima e Dourado, chefe político e coletor estadual.

            Os gêneros para o consumo da população eram conduzidos em animais, via Banco-Barro-Vermelho e Preguiças, porque o rio havia destruído as estradas e as pontes, ficando a antiga estrada do Banco também destruída.

            Entretanto, apesar do grande prejuízo dado ao município de Itabuna foi a enchente o principal fator de progresso para a Vila, pois em casebres miseráveis que o rio destruiu, foram construídas, em seus lugares, melhores casas e mais confortáveis.

            Eu perdi duas casas, a “Brasileira” e a casa ao fundo desta, ambas feitas de adobes, que as águas facilmente derreteram, deixando somente os esteios e o telhado. Reedifiquei-as a tijolos.

            Tinha eu duas pipas de cachaça, que ficaram presas das águas no armazém da estrada de ferro, e, com a volta da água ao seu estado natural, fui recebê-las; uma delas o senhor Rebouças comprou, naturalmente com lucros altos,  dado a escassez da mercadoria. Ele, porém, useiro e vezeiro em negócios ilícitos, resolveu ficar com alguns litros de cachaça de graça, negou a existência da litragem  marcada na fatura.
Não me conformei e fui retirar do seu armazém a pipa de cachaça. Envergonhado por ser apanhado em flagrante delito de roubo, acompanhado de vários sequazes, quiseram impedir a retirada da cachaça. Reagi, de armas em punho, quando Everaldino Assis e Agostinho de Santana intervieram, retirando-me e conduzindo-me à minha casa.
Conformei-me com o fato consumado. Dias depois, gabava-se o infeliz dizendo que eu havia pago as vigas da sua casa, que a enchente danificara. Era a confirmação do roubo, da sua infâmia e miséria. Pobre miserável, infeliz e paupérrimo, que vive, até hoje, à custa do suor alheio, seja sugado de que modo for. Deus lhe perdoe, como uma justificativa.


(MEMÓRIAS DE CHICO BENÍCIO)
Francisco Benício dos Santos

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PREFÁCIO

            Aí nestas páginas que se seguem, vão rabiscadas as lembranças de vários fatos e episódios passados no decorrer desta existência, aqui neste mundo presunçoso, cujos habitantes são tão mais presunçosos ainda, a ponto de se julgarem superiores ao próprio Todo de onde descendem.
            Eu também faço parte deste mundo e da sua humanidade, e, como ela, pecador inveterado e impenitente.
            Estas notas, quem as ler, de certo que ficará sabendo quem eu fui.
            Todavia, a mim pouco importa o juízo da posteridade.
            Hei de seguir o meu caminho, caindo aqui, levantando ali, gozando hoje, sofrendo, gemendo, chorando amanhã, até um dia poder habitar nova morada, liberto das redes terrenas.
            “Há muitas moradas na casa de meu pai”.
            Hei de morar numa delas.


            Bahia, Julho de 1936.

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