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sábado, 28 de janeiro de 2017

BAIRRO ARRAIAL DO RETIRO: RETIRO DOS QUILOMBOLAS – Por Davi Nunes

Bairro Arraial do Retiro: retiro dos quilombolas


O arraial sempre fora retiro, assento para o corpo dos viajantes mais intrépidos que carregavam as suas bagagens-vida para procurarem o melhor mocambo, para fugirem das opressões ou simplesmente para fazerem negócios e continuarem a trajetória. Ou para depois de terem findado o trabalho de extração de minério nas pedreiras em 1940, no Cabula, terem o canto-retiro para deitar o corpo cansado.
 Assim, vou nesse assento escritural, buscar dar conta de alguns fatos e tentar traçar um pequeno quadro da história do bairro Arraial do retiro, localizado no centro geográfico de Salvador, o Cabula.

O bairro Arraial do Retiro fora uma parte da fazenda São Gonçalo, a fazenda tinha uma grande extensão, tanto no sentido alto, o Cabula, quanto na margem baixa, São Gonçalo do Retiro, que dá na BR 324. O surgimento da comunidade ocorre quando parte da fazenda foi disponibilizada para a exploração de uma pedreira que hoje divide o local.

Dados da oralidade: outro dia um amigo, em entusiasmo de conversa sobre o Beiru, me disse que um mais velho lhe falou que no Retiro tinha a porteira de uma grande fazenda, a qual daria nas partes mais profundas do Cabula. Se for pensar geograficamente daria mesmo, mas provavelmente ele estava falando da fazenda São Gonçalo. As linhas que costuram as vozes da nossa história chegam sempre aos ouvidos atentos, faz a imaginação fluir fora do campo semântico do mundo branco e constitui as nossas verdades. Isso é um fato. Ouvido aberto para tecer em escrita a nossa história.

O bairro está localizado entre duas pedreiras: uma no lado esquerdo e outra no direito, dividindo a comunidade entre Arraial de cima e o Arraial de baixo. Essas pedreiras tiveram minérios extraídos até a década de 80. Observa-se que com o findar do trabalho com as plantações de laranja, pelo menos na Fazenda São Gonçalo, muitos dos antigos quilombolas foram para o trabalho nas pedreiras, na extração de minério. Foi um trabalho que durou algumas décadas, além de ter deixado infértil o solo para a plantação de laranja.

A socioexistência dos negros que fundaram a região fora sempre de muito trabalho, constituindo sobrevivência e tentando alastrar as vivências quilombolas – continuo de vivências africanas na diáspora – para constituir um bem-viver. No entanto, com a invasão dos brancos na região: primeiro com as chácaras, depois pela desapropriação do estado de muitas terras dos quilombolas, no intuito de criarem os prédios para a classe média baiana, e agora com a forte especulação imobiliária que vem ocorrendo na região, tudo foi ficando mais difícil.

As pedreiras do retiro possuem muita beleza: as suas dimensões são grandiosas, os buracos e paredões compõem o olhar com uma paisagem sublime, além dos lagos que completam a paisagem com o verde forte das águas. Toda essa natureza ainda se mantém forte e agonizante, devido o estado de degradação ambiental o qual passou todo o Cabula durante a sua história.

Outro fator interessante eram as linhas de bonde que surgiram entre 1920 e 1925. Elas vinham da Barroquinha; um subia a ladeira do Cabula, e a outra ia até o final de linha do Retiro, o que beneficiava os moradores da região como todo, inclusive do Arraial.

Assim, o Arraial do Retiro ainda é mocambo para os descendentes dos quilombolas, possui uma dinâmica comum dos bairros da periferia, polifonia rítmica dos andares dos jovens negros (as), atentos (as), pois precisam se esquivar às violências do estado baiano, o genocídio.

Velhas(os) que observam as pedreiras, as paisagens, signos que compõem as suas vidas e histórias que são passadas no gesto, na culinária, no olhar, na fala. Há uma natureza que traz o passado e toda uma dinâmica periférica atual que não esconde o desejo que estava incontido nos quilombos antigos, que é de transformação e de restauração da negritude fragmentada em anos de opressão e racismo estrutural.


Davi Nunes, graduado em Letras Vernáculas pela Universidade do Estado da Bahia, é poeta,  contista e escritor de literatura infantil.



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