Bairro Arraial do Retiro: retiro dos quilombolas
O arraial sempre fora retiro, assento para o corpo dos
viajantes mais intrépidos que carregavam as suas bagagens-vida para procurarem
o melhor mocambo, para fugirem das opressões ou simplesmente para fazerem
negócios e continuarem a trajetória. Ou para depois de terem findado o trabalho
de extração de minério nas pedreiras em 1940, no Cabula, terem o canto-retiro
para deitar o corpo cansado.
Assim, vou nesse assento escritural, buscar
dar conta de alguns fatos e tentar traçar um pequeno quadro da história do
bairro Arraial do retiro, localizado no centro geográfico de Salvador, o
Cabula.
O bairro Arraial do Retiro fora uma parte da fazenda São
Gonçalo, a fazenda tinha uma grande extensão, tanto no sentido alto, o Cabula,
quanto na margem baixa, São Gonçalo do Retiro, que dá na BR 324. O surgimento
da comunidade ocorre quando parte da fazenda foi disponibilizada para a
exploração de uma pedreira que hoje divide o local.
Dados da oralidade: outro dia um amigo, em entusiasmo de
conversa sobre o Beiru, me disse que um mais velho lhe falou que no Retiro
tinha a porteira de uma grande fazenda, a qual daria nas partes mais profundas
do Cabula. Se for pensar geograficamente daria mesmo, mas provavelmente ele
estava falando da fazenda São Gonçalo. As linhas que costuram as vozes da nossa
história chegam sempre aos ouvidos atentos, faz a imaginação fluir fora do
campo semântico do mundo branco e constitui as nossas verdades. Isso é um fato.
Ouvido aberto para tecer em escrita a nossa história.
O bairro está localizado entre duas pedreiras: uma no lado
esquerdo e outra no direito, dividindo a comunidade entre Arraial de cima e o
Arraial de baixo. Essas pedreiras tiveram minérios extraídos até a década de
80. Observa-se que com o findar do trabalho com as plantações de laranja, pelo
menos na Fazenda São Gonçalo, muitos dos antigos quilombolas foram para o
trabalho nas pedreiras, na extração de minério. Foi um trabalho que durou
algumas décadas, além de ter deixado infértil o solo para a plantação de
laranja.
A socioexistência dos negros que fundaram a região fora
sempre de muito trabalho, constituindo sobrevivência e tentando alastrar as
vivências quilombolas – continuo de vivências africanas na diáspora – para
constituir um bem-viver. No entanto, com a invasão dos brancos na região:
primeiro com as chácaras, depois pela desapropriação do estado de muitas terras
dos quilombolas, no intuito de criarem os prédios para a classe média baiana, e
agora com a forte especulação imobiliária que vem ocorrendo na região, tudo foi
ficando mais difícil.
As pedreiras do retiro possuem muita beleza: as suas
dimensões são grandiosas, os buracos e paredões compõem o olhar com uma
paisagem sublime, além dos lagos que completam a paisagem com o verde forte das
águas. Toda essa natureza ainda se mantém forte e agonizante, devido o estado
de degradação ambiental o qual passou todo o Cabula durante a sua história.
Outro fator interessante eram as linhas de bonde que
surgiram entre 1920 e 1925. Elas vinham da Barroquinha; um subia a ladeira do
Cabula, e a outra ia até o final de linha do Retiro, o que beneficiava os
moradores da região como todo, inclusive do Arraial.
Assim, o Arraial do Retiro ainda é mocambo para os
descendentes dos quilombolas, possui uma dinâmica comum dos bairros da
periferia, polifonia rítmica dos andares dos jovens negros (as), atentos (as),
pois precisam se esquivar às violências do estado baiano, o genocídio.
Velhas(os) que observam as pedreiras, as paisagens, signos
que compõem as suas vidas e histórias que são passadas no gesto, na culinária,
no olhar, na fala. Há uma natureza que traz o passado e toda uma dinâmica
periférica atual que não esconde o desejo que estava incontido nos quilombos
antigos, que é de transformação e de restauração da negritude fragmentada em
anos de opressão e racismo estrutural.
Davi Nunes, graduado em Letras Vernáculas pela Universidade
do Estado da Bahia, é poeta, contista e escritor de literatura infantil.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário