Saber disso ajuda a prestar atenção na pessoa ao nosso lado.
Quem gosta cuida, diz o clichê. Mais do que nunca, ele está certo.
IVAN MARTINS
26/10/2016
(Para celebrar minha última semana de folga, trouxe uma
coluna de maio de 2012, da qual eu gosto muito. Acho que captura um fenômeno
social - o uso da expressão "a fila anda" - e se vale dele para
discutir de maneira saudável os nossos exageros sentimentais. Por que tanto
sofrimento quando as relações acabam? Será que ao menos parte disso não é
socialmente aprendido e poderia ser evitado? Com mais um ano começando, cheio
de rupturas e descobertas, essas considerações me pareceram apropriadas. Fiz
alterações para melhorar o texto original e enfatizar a ideia principal. Boa
leitura - e, novamente, bom 2015. Na quarta-feira que vem retorno com uma
coluna inédita)
Quem me apresentou à expressão foi Fábio Júnior, o cantor.
Ele tinha acabado um casamento relâmpago e sua explicação chegou aos jornais
com franqueza desconcertante: “A fila andou”. Por alguns segundos eu não
entendi, depois fiquei chocado: como alguém diz uma grosseria dessas?
Desde então, a expressão se banalizou. Toda mundo fala e
todo mundo escreve. Só nos últimos dias, deparei com “a fila anda” na capa de
uma revista e numa propaganda de perfume. A metáfora pegou e parece que vai
ficar no nosso vocabulário e no nosso comportamento: as filas andam mesmo, de
forma cada vez mais rápida.
Antes de continuar, uma confissão: tenho dificuldade com
esse tipo de andamento. Para mim a fila anda devagarzinho, quando anda. Às
vezes, fica parada por muitos anos, e acho ótimo. Dá tempo de conversar,
relaxar, ser feliz.
Apesar disso, reconheço virtudes na ideia de que a fila
anda.
A primeira é lembrar a mim, a você e a todo mundo que os
tempos do abuso sentimental acabaram. Se você não tratar as pessoas direito,
elas irão embora. Todos têm opções e contam com o amparo das leis e dos
costumes para procurar o melhor para si mesmo. A oferta afetiva é enorme. Em
toda parte, há gente disponível e atraente, de todos os tipos e de todas as
idades. Saber que a fila anda ajuda a prestar atenção na pessoa ao nosso lado.
Quem gosta cuida, diz o clichê. Mais do que nunca ele está certo.
Outra coisa positiva na expressão “a fila anda” é que ela
nos põe de frente com um aspecto inevitável da realidade: a transitoriedade de
boa parte das relações. A depender da nossa idade ou do meio em que a gente
vive, a fila vai andar mesmo, o tempo todo, goste-se ou não. Faz parte. Quando
a gente é adolescente, acha que o primeiro amor vai durar a vida toda. Não
dura. O mesmo acontece na juventude. A gente se apaixona, se desapaixona,
dispensa, é dispensado, sofre, faz sofrer. A fila anda da mesma forma que a
vida anda – até que algo importante a faça parar. O que há de errado nisso?
Nada.
Mas há, na nossa cultura sentimental de brasileiros, um
componente masoquista que não combina com a simplicidade da fila que anda.
Temos a expectativa equivocada de que todas as emoções serão eternas. Quando as
coisas acabam, nos despedaçamos. Em vez de olhar para frente e tentar
recomeçar, nos achamos no direito de empacar, insistir, implorar, perseguir.
Temos a vocação do melodrama. A dor inevitável das rupturas é multiplicada pela
sensação social de injustiça. Ao sofrer, nos colocamos na posição de vítimas
desamparadas do outro - e há um prazer medonho em sentir-se assim.
Tem gente que acha esses sentimentos naturais. Eu acho que
são aprendidos. Acho que ensinamos para as nossas crianças, dentro de casa,
através das nossas falas e comportamentos, que amor é para sempre e que o fim
de um relacionamento equivale ao fim do mundo. As músicas dizem isso, as
novelas sugerem isso. Há uma indústria cultural gigantesca que se alimenta da
dor da separação e da sensação de abandono.
Esse contexto ajuda a explicar por
que a dor legítima e inevitável das rupturas frequentemente vira depressão e
violência. Existe incentivo social para que isso aconteça.
Outro dia, presenciei um rapaz de 26 anos consolando um
amigo da idade dele, que falava em se matar por ter sido deixado pela namorada.
Onde ele aprendeu esse tipo de comportamento?
As pessoas no Brasil não falam em se matar quando são
reprovadas no vestibular ou quando são demitidas de um emprego bacana, como
acontece no Japão. Mas muitas acham natural matar ou se matar depois de um pé
na bunda.
Eu me pergunto o que é pior e não chego a conclusão nenhuma. As duas
atitudes me parecem péssimas, e ambas são claramente aprendidas em sociedade.
Não há nelas nada de inato ou espontâneo.
Quando se leva em conta isso tudo, já não acho tão ruim
dizer que a fila anda. A expressão pode denotar frieza e desrespeito pelos
outros. Pode ser sinônimo de uma atitude egoísta e utilitária. Mas pode,
também, sinalizar uma percepção saudável e corajosa das relações humanas. A
fila anda, a gente avança, lá na frente descobre coisas melhores. Sempre de
cabeça erguida. Melhor do que ficar choramingando por aí, com pena de si mesmo.
IVAN MARTINS
Colunista de ÉPOCA
Autor do livro Alguém especial, escreve em epoca.com.br às quartas-feiras
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