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terça-feira, 10 de setembro de 2019

ENTREVISTA: LITERATURA INFANTIL E JUVENIL BAIANA


Entrevista de Cyro de Mattos,  concedida a Normeide Rios, Professora da Universidade Estadual de Feira de Santana. 


Normeide Rios - Como o senhor se tornou escritor? O que o motivou a escrever para crianças e jovens?
Cyro de Mattos - Publiquei meu primeiro conto “A Corrida” no suplemento literário do Jornal da Bahia, editado por João Ubaldo Ribeiro, em 1960. Daí para cá nunca mais parei. Meu livro de estreia foi Berro de fogo, contos, em 1966. Está riscado de minha bibliografia porque seu texto envelheceu em pouco tempo. Pelo menos serviu para deflagrar meu processo criativo. Escrever começou assim na adolescência e se fez dentro de mim fundamental como o amanhecer. Ainda que seja um grão no deserto, escrever é a minha maneira de inaugurar sentidos, estar sozinho e solidário num só tempo, dizendo silêncios. Este é meu lugar onde arrisco tudo. Agradeço à ternura que herdei de minha mãe a inclinação para escrever livros infantojuvenis. Quando já tinha escrito uma vintena de livros para adultos, aconteceu no escritor idoso o menino acordar e pedir que eu escrevesse para crianças e jovens. Tudo foi de repente, sem programar nada. Não sei explicar. De uns vinte anos para cá, tenho escrito para crianças e jovens.  Vem dando certo, com prêmios importantes e reedições sucessivas de livros.

Normeide Rios - Existem diferenças entre escrever para adultos e escrever para crianças e jovens?
Cyro de Mattos - O livro para adultos tem suas características próprias, sua técnica, espaço, tempo, lugar e modo. Tratamento e abordagem que o diferem da obra escrita para crianças e jovens. O livro infantojuvenil possui universo criativo específico, com suas nuances, linguagem, ritmo, psicologia. Mas livro bom é o rico de sentidos, servindo para idosos e pequenos. Convenhamos que Kafka, Pessoa, Jorge Luís Borges, Eça de Queiroz e Machado de Assis, entre outros, que eu saiba não escreveram seus livros importantes para crianças e adolescentes.  Não é o caso de Bartolomeu Campos Queirós, Ana Maria Machado, em parte Monteiro Lobato, esse que veio para encantar e morar no coração de crianças e jovens. Para não se falar em Cecília Meireles com o seu admirável Ou isso ou aquilo.

Normeide Rios - O que é preciso considerar para escrever para o público infantojuvenil?
 Cyro de Mattos - A psicologia do que se pretende dizer deve emergir e corresponder às razões e emoções da criança e do jovem. A linguagem ser clara, sem perder o poético. Ternura, graça, ritmo ágil, rima cativante. Na prosa uma história que prenda do princípio ao fim, como aprendi em minhas primeiras leituras das revistas em quadrinhos, os meninos de meu tempo chamavam guri e gibi. 

Normeide Rios - O conceito de literatura está sempre mudando, de acordo com o contexto histórico e cultural. Qual é a sua visão de literatura? O que é literatura?
Cyro de Mattos - Forma de conhecimento da vida através dos sinais visíveis da escrita. Não resolve os problemas econômicos, políticos, sociais e religiosos. Mas torna a vida viável e viver sem ela é impossível.  Meu livro de crônicas Alma mais que tudo traz esta epígrafe retirada de Drummond: Se procurar bem, você acaba encontrando/ Não a explicação (duvidosa) da vida/ Mas a poesia (inexplicável) da vida. Se quiserem, é como digo neste poema mínimo: Poesia. Meu amor. Minha dor. Ó flor.

Normeide Rios - O que é literatura infantojuvenil?
Cyro de Mattos - Caminhos da escrita que se abre para a formação de uma mentalidade em crescimento. Dá prazer, faz sorrir, viajar na infância ou juventude, enriquece e nada toma em troca. Como a que é feita para adultos, sua matéria são as palavras - o pensamento, a ideia, a imaginação – estando ligada diretamente a uma das atividades básicas do indivíduo em sociedade: a leitura.  Busca alcançar o leitor iniciante para uma formação integral, em que entra o eu mais o outro mais o mundo. Seu espaço, como se vê, é o da iniciação à vida, que cada um deve cumprir e viver em seu meio social.  

Normeide Rios - A literatura direcionada a crianças e jovens durante muito tempo foi marginalizada por ser considerada um gênero menor. Qual a sua opinião sobre isso?
Cyro de Mattos - Esta é uma visão que se ressente de perspectiva crítica. Um grande equívoco, preconceito calcado em uma ótica de que o que vale é o sujeito adulto, criança e jovem ainda não são gente, seu universo pouco tem a dizer, dado que superficial e inconsequente.  Isso é um absurdo adotado pelos distraídos que ainda não perceberam que a verdadeira evolução de um povo se faz ao nível da consciência de mundo, situações e circunstâncias   que cada um vai armazenando desde a infância.  

Normeide Rios - Apenas recentemente a literatura infantojuvenil começou a abandonar o vínculo com a pedagogia, que a marcava desde o seu surgimento, e buscou se afirmar como arte literária. Como escritor de obras literárias para crianças e jovens, quais as suas considerações sobre a relação literatura infantojuvenil, pedagogia e arte?
Cyro de Mattos - O livro predisposto a fazer a cabeça da criança e do jovem revela deformações flagrantes. Tal predominância parece-nos sem sentido. Estamos com Nelly Novaes Coelho quando diz que a Literatura, em especial a infantil, tem uma tarefa fundamental a cumprir nesta sociedade em transformação: a de servir como agente de formação, seja no espontâneo convívio leitor//livro, seja no diálogo leitor/texto estimulado pela escola.  A escola é hoje o espaço em que a relação entre o leitor e o livro mais se desenvolve na descoberta do eu mais o outro mais o mundo. Natural que os princípios ordenadores da vida neste espaço transmitidos contribuam para motivar o acontecimento de uma nova civilização. De outra parte, a literatura infantojuvenil é arte que se faz com engenho e linguagem sedutora.  As relações de aprendizagem e vivência são fundamentais nesta perspectiva que nos informa ser somente ela, como a que é feita para adultos, capaz de devolver à criatura humana o que é próprio da criatura humana: inteligência e sentimento.

Normeide Rios - E sobre a tríade autor-obra-leitor?
Cyro de Mattos - Ninguém escreve um livro para ficar no fundo da gaveta.  O autor pretende com o livro transmitir uma experiência de vida e estabelecer uma dialética de tácito entendimento com o leitor pelas vias e arredios do ser, entre o belo e o feio, o alegre e o triste, o riso e o rancor, o amor e o ódio, a aventura e o risco, a vida e a morte.

Normeide Rios - Como autor, de que forma o senhor busca interagir com o seu leitor?
Cyro de Mattos - Comprometido com as verdades essenciais do ser humano. Cheio de sonho.

Normeide Rios - Como é o processo de criação de suas obras literárias infantojuvenis? Quais os elementos que o senhor considera essenciais para garantir a qualidade artística das produções?
Cyro de Mattos - É uma viagem gratificante sob os instantes do menino e jovem. Retorno ao tempo colorido do antigamente, que já vai longe. Reúno pedaços da infância e adolescência que os homens trancaram na alma.  Noto que os componentes estruturais do texto resultante desta pulsação do coração devem corresponder ao mundo da criança ou do jovem. Tanto na forma como no fundo. Entra nisso como ingredientes importantes   a espontaneidade e a habilidade, que o autor deve possuir na criação de um livro de poesia ou prosa de ficção para crianças e jovens. A expressão deve se manifestar com simplicidade no aparentemente fácil...

Normeide Rios - Como aconteceu o seu primeiro contato com livros literários? O que costumava ler na infância e adolescência?
Cyro de Mattos - Quando era pequeno comecei lendo revistas em quadrinhos. Descobri Júlio Verne, Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Poe e Dickens na biblioteca de seu Zeca Freire, o dono da farmácia em minha cidade natal, e também na livraria e papelaria A Agenciadora. Quase adolescente fui estudar interno em Salvador, e, na biblioteca do Colégio Maristas, foi a vez de ler Castro Alves, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo, Fagundes Varela, José de Alencar, Humberto de Campos e Machado de Assis. Ingressei na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia e nesse tempo gostava de visitar pela tarde a Livraria Civilização Brasileira, na Rua Chile. Sedento, buscava ali o pote da leitura.  Foi o tempo do conhecimento  de Dostoiewski, Tolstoi, Checov, Katherine Mansfield, Sartre, Kafka, Pessoa, Brecht, Joyce, Faulkner,  Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Adonias Filho, Lúcio Cardoso, José Lins do Rego, Jorge Amado,  Autran Dourado, Aníbal Machado, Dalton Trevisan, Rubem Fonseca, Mário de Andrade,  Drummond, Cecília  Meireles, Cassiano Ricardo, Jorge de Lima,  entre tantos admiráveis escritores  que me ensinaram a  ver melhor a vida,  equilibrar-me entre vazios,  crenças e verdades,  que se formavam  tecidas com  os fios eternos do imaginário. 

 Normeide Rios - Qual a sua opinião sobre a atual produção de obras para crianças e jovens?
Cyro de Mattos - Muita boa, digna de qualquer literatura no mundo. Lembro Bartolomeu Campos Queirós, Elias José, Ana Maria Machado, Lígia Bojunga, Sylvia Orthof, Mário Quintana e outros. Entre nós baianos, gosto da literatura infantojuvenil de Gláucia Lemos.

Normeide Rios - No panorama nacional, como se posiciona a produção de escritores baianos?
Cyro de Mattos - Há quem diga que a melhor poesia brasileira está sendo feita hoje no Nordeste e, em especial, aqui na Bahia. Concordo. Ressalto que contistas e alguns romancistas daqui são também de qualidades insuspeitadas.  A literatura brasileira está entregue hoje em boas mãos aqui na Bahia. Não entendo por que ainda não se escreveu uma crítica e ampla   História da Literatura Baiana, de Gregório de Matos aos tempos atuais. Seria um projeto para ter o apoio do   Governo do Estado, executado por um corpo de professores universitários e autores expressivos, que preencheria certamente uma omissão no mínimo lastimável.     

Normeide Rios - Suas obras infantojuvenis são produzidas tanto em verso quanto em prosa. Há predileção do autor entre essas duas formas de escritura?
Cyro de Mattos - Sinto-me à vontade na prosa como no verso. Quem determina se prosa ou verso é o assunto, o momento, a inspiração, ou seja lá o que for. 

Normeide Rios - Cyro de Mattos recorre a lembranças da infância e da adolescência para criar seu mundo ficcional? Pode-se dizer que Histórias do mundo que se foi é um livro de “memórias da infância”?
Cyro de Mattos - A infância é uma das vertentes de minha poesia para adultos, da prosa de ficção para crianças e jovens. Como acontece em Histórias do mundo que se foi, “memórias da infância” transfiguradas como ficção podem ser encontradas também em Roda da infância, novela que está acabando de sair do forno da editora Dimensão, e O Menino na memória, pequeno romance juvenil ainda inédito. 

Normeide Rios - O menino e o trio elétrico é a história de um sonho que se realiza, mas é também uma narrativa que aborda questões culturais e diferenças sociais. Houve o objetivo de fazer denúncia social? Qual o papel da literatura infantojuvenil frente aos problemas sociais e econômicos presentes na realidade do leitor?
Cyro de Mattos - Não tive intenção de fazer denúncia social na história triste do Chapinha com final feliz. Do texto escorre humanismo social entrelaçado com a poesia da vida. Não forcei nada. Simplesmente busquei representar o real com ternos sentimentos de mundo, ser coerente frente aos problemas e contradições do carnaval hoje em Salvador. Alguns críticos disseram que fui o primeiro a trazer a realidade aguda do carnaval de hoje, em Salvador, para a literatura infantil, numa história bem concebida, escrita com espontaneidade, solidariedade e amor.  


    
* Entrevista concedida à professora Normeide Rios, da Universidade Estadual de Feira de Santana, incluída na tese de mestrado Os caminhos da literatura infantojuvenil baiana: em sintonia com o leitor, apresentada na Universidade Estadual de Feira de Santana, aprovada com distinção e louvor. A dissertação foi publicada como livro pela Editora da Universidade Estadual da Bahia – EDUFBA.



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