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quarta-feira, 10 de julho de 2019

AS PROEZAS DO SONETO - Cyro de Mattos




As Proezas do Soneto

Cyro de Mattos

 

A poesia permite ao homem realizar-se como um ser mágico, que consegue retirar a beleza da cegueira da matéria no palco da vida. A poesia está em tudo. Procure bem, você a encontra.  Não esqueça que só o poeta a ergue no poema como testemunho de sua experiência verbal em diálogo com a existência. Nessa corrente energética que emana da natureza humana, o soneto acontece como uma festa prazerosa de poucas estrofes.  Trata-se de uma forma fixa de poema com quatorze versos, dispostos em dois quartetos e dois tercetos. O último verso é tido como “chave de ouro”, devendo surpreender e encantar com a sua revelação no desfecho. 

Combatido pelos vanguardistas, os protagonistas da Semana da Arte Moderna de 22 não lhe pouparam depreciações, alardeando naquele movimento sua indignação contra o indefeso poema breve, como “fora a gaiola”, além de outras referências depreciativas. A febre do soneto fez com que esse diminuto poema atravessasse séculos, permanecesse até hoje, reverenciado com fidelidade por poetas modernos, com vistas a atingir o nível superior da alma. Esse breve espaço de criatividade no verso como desafio e atração vem sustentando o eu lírico em estado súbito da comoção.

A língua portuguesa ganhou em beleza e modulações rítmicas com o verso decassílabo. Considerado como o mais melodioso e harmonioso é usado no soneto.  Apesar disso, é dado ao poeta que cultiva o soneto a alcunha de soneteiro, sonetoso e sonetífero. O exímio sonetista baiano João Carlos Teixeira Gomes registra uma série de expressões em desfavor das andanças do rejeitado poema de quatorze versos: “refúgio da decadência”, “gaiola da inspiração”, “bestialógico acadêmico”, “muleta da má poesia”, “cabresto da criatividade”, “onanismo poético”, “barbitúrico para insônia”, “sucedâneo de palavras cruzadas”, “museu do bolor formalista”, “chavão de segunda ordem”, “formalismo oco e vazio”, “museu de velharias passadistas”.

Não obstante o comportamento contundente dos que desfazem de imbatível criatura nanica, a garra de que é portador permite que continue de pé, ínfimo caminhante do sol e da chuva com os seus constantes passos de quatorze versos, buscando em sua peripécia métrica alcançar a magia do imaginário, atingir o ponto máximo do encanto na alma do receptor. Segue indiferente às acusações e atropelos da legião de fanáticos, que não o aceitam, sob qualquer hipótese. Teima em habitar com seus lampejos líricos a floresta dos poemas maiores, preservada por poetas célebres com suas criações em versos longos, a eloquente poética formada de quantidade de estrofes.

O soneto é dado a formar uma sequência quando   vários poemas estão ligados entre si por uma concepção e execução magistrais do tema, como se deu com os cento e cinquenta e quatro sonetos de Shakespeare. Outra de suas proezas quando escrito em sequência é formar a coroa de sonetos, uma forma poética composta por 15 sonetos, que têm ligação entre si por um tema. Os primeiros e últimos versos são versos de um outro (décimo quinto) soneto, denominado soneto-base, ou soneto-síntese.

O soneto em mãos seguras de mestres arrebata delírios, alimenta paixões, cultiva ilusões, carrega fardos, cai em desterros, colhe perdas, ergue perjuros, dissemina encantos, enfeitiça nos vazios da solidão. Incrível, abre-se à participação de um acontecimento raro, rico, exuberante. Transmuda-se em uma festa de imagens opulentas, faz-se comunhão do saber aliado à beleza, espalha na vida as suas sementes nas zonas encantatórias do admirável com síntese.

É visível que o seu procedimento fulgurante faz pensar no homem como resultado de outro ser, pleno de brilho na dimensão forjada de transcendência com base em desejos e enleios. Dotado dessa voz estranha, em cuja inspiração tira o homem de si mesmo para ser tudo o que é, percebemos que o desejo posto na festa lustrada com ritmos de versos esplêndidos é de algo que se confunde com cada um de nós. Visto como evocação, recriação de uma experiência, eis que ressurge de uma senda que está dentro do lado noturno de nós mesmos. Convém lembrar que essa imagem do mundo transmitida em poema com o formato breve, rígido, pode causar ao poeta a indiferença aos seus sonhos constrangidos, abafados no clamor de seus gemidos.

Sonoridade que serve como vínculo do verso para salientar a significação da vida, unidade rítmica que sustenta a ideia fluindo no texto como música, ardência que soa na rima com vibrações da palavra tradutora de inventiva rumorosa, da qual emana com luzeiros e fulgores, procedidos como hábitos e atitudes, o poeta eficaz aceita no soneto o desafio de exibir-se com indumentária repetitiva de inclinações breves e agudas. 

 No resultado final da imagem, o soneto, esse feitiço que perdura além do tempo, presta-se à natureza diversa dos humanos, ao fogo do amor, que cresce como luz na treva. 

Nesta capanga de 161 sonetos há os de formato tradicional e os de forma reduzida, todos eles com vários conteúdos, pois decorrem de natureza diversa da compreensão humana, mas no conjunto atuam no seu autor como vícios da beleza, sentimentos que querem sustar o tempo, riscando-o em instante breve do eterno.  Num sopro da extração verbal ínfima, a alma precipita-se para ordenar a existência. Como estímulos que se abrigaram no homem em movimento criativo da beleza, um dia retornam para se encontrar em outro resultado, na tentativa de iluminar a parte noturna do ser, de que nos fala em observação lúcida Otávio Paz, como imagem comovida da vida. 

 

Cyro de Mattos é ficcionista e poeta, publicado em Portugal, Itália, França, Alemanha, Espanha, Dinamarca e Estados Unidos. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro das Academias de Letra da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.

 

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