Natal das crianças negras
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O Autor
Cyro de Mattos nasceu e reside em Itabuna,
Sul da Bahia. Contista, poeta, cronista, romancista, autor de livros infanto juvenis.
Publicou 44 livros, para adultos e para crianças. Tem livros também editados em
Portugal (4), Itália (6), França (1), Espanha (1) Alemanha (1). No Brasil e
exterior recebeu vários prêmios e, entre eles, o Afonso Arinos da Academia
Brasileira de Letras, Prêmio da Associação
Paulista dos Críticos de Arte, Prêmio Internacional
de Poesia Maestrale Marengo d’Oro, Itália, e do Instituto Piaget de Almada,
Portugal. Finalista do Jabuti três vezes. Participou como convidado do III
Encontro Internacional de Poetas da Universidade de Coimbra e Feira
Internacional do Livro em Frankfurt. Com o romance Os Ventos Gemedores ganhou o
Prêmio Pen Clube do Brasil. É membro da Academia de letras da Bahia e Doutor
Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz, Bahia.
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Eles moravam no morro, a irmã era chamada
de Bel, o irmão de Nel. Bel não recebia da vida a doçura feita com mel. E Nel
não vivia a vida, lá no alto morro, como se estivesse no céu. A mãe deles
chamava-se Maria. Vestia trajes simples, gastos pelo uso diário. Nunca vestiu
um manto azul feito de seda para brilhar no dia, como se via na igreja com a
imagem da Virgem Maria.
O pai de Bel e Nel
chamava-se José, era carpinteiro. Sabia usar com
habilidade os instrumentos de trabalho: martelo, serrote, enxó, plaina e
formão. Suas mãos pequenas faziam cadeira, mesa e banco. Consertavam porta,
janela e portão. No mês em que Bel completou seis anos de idade, o carpinteiro
José começou a sentir dores na espinha. Os ossos inflamados, as mãos trêmulas,
o corpo todo doía. À noite, no quarto, gemia. O coração dele foi diminuindo o
amor que tinha por São José, o padroeiro da cidade, por causa da doença que o
afligia. Até que um dia o pai de Bel e Nel perdeu para sempre sua constante fé
em São José, o santo protetor dos carpinteiros.
O tempo de Natal era
chegado. Nel queria um avião grande, Bel uma boneca que
chora. Viram o velho gordo com o rosto rosado pela primeira vez na televisão da
loja. Carregava um saco de brinquedos nas costas. Tinha a barba branca e os
cabelos sedosos. Vestia uma roupa vermelha. Calçava botas pretas. Numa das
cenas em que aparecia na telinha, deixava escapar do
rosto rosado um sorriso que transmitia uma sensação de alegria e paz a cada
criança que ia falar com ele e receber o seu carinho. Os meninos no passeio da
loja não tiravam os olhos da televisão. Comentavam que o velho dava brinquedos
à criançada sem querer nada de volta. Eles sorriam quando o velho aparecia com
as roupas folgadas na telinha. Olhinhos deles todos no querer, como que
encantados, cintilavam.
Com olhinhos espertos e
risinhos que enchiam os
dentinhos, Bel e Nel foram olhar a árvore
enfeitada com bolinhas e luzinhas, armada em um dos cantos da loja. À noite, as
luzinhas acendiam e apagavam. A estrela no alto comovia.
Descobriram depois o
presépio em outro canto da loja, com os camponeses, pastores e bichos. Ficaram admirando o pequeno estábulo do presépio, que tinha o teto
coberto de folha de palmeira. Um galo de crista vermelha estava no telhado. Uma
estrela brilhava na cumeeira, toda acesa de Deus. Nossa Senhora e São José
mostravam os semblantes felizes, ao lado de Jesuscristinho, que dormia o sono
bom no berço puro e quente, feito de palha. E os três reis magos, ali no
presépio, davam a entender que não eram dignos de tocar na palha onde
Jesuscristinho dormia o sono sereno.
Sentados no meio-fio do
passeio da loja, Bel e Nel escutavam agora a musiquinha que saía alegre pelo
alto-falante no poste. De vez em quando o alto- falante
baixava o som. Então a musiquinha fazia um fundo musical no mesmo instante em
que entrava a voz pausada do locutor. A voz dele
informava que vinha de Belém a estrela mais bela. Fora trazida pelas mãos da maior
madrugada. Seu brilho imenso descaía do céu e vinha iluminar a relva onde os
bichos anunciavam e cantavam o nascimento do menino Jesus. A voz do locutor
ficava emocionada quando comunicava que naquele dia o menino pobre nascia no
estábulo. Esse menino Deus vinha para afugentar o mal de toda a terra. A voz
doce do locutor terminava a mensagem de paz eterna com mais emoção no final
quando então revelava que os sinos do mundo inteiro nessa hora tocavam: É
Natal! É Natal!
O alto-falante voltava a
tocar a musiquinha alegre, acompanhada dessa vez de uma cantiga cativante. Bel e Nel continuavam sentados no meio-fio do passeio. Recebiam o
sopro da brisa que circulava na rua, ao final do dia. A brisa suavizava os
rostos deles dois em silêncio, enquanto seus pequenos corações eram tocados
pela cantiga que se repetia e começava assim:
Botei meu sapatinho
Na janela do quintal.
Papai Noel deixou
Meu presente de Natal...
Dizia a cantiga ainda
mais, que o velhinho sempre visitava o quarto de cada menino onde deixava, ali,
um brinquedo como presente naquela noite especial. Seja rico, seja pobre, seja
branco, seja preto, como Bel e Nel, o velhinho sorridente e bondoso não esquece
de ninguém.
Bel e Nel colocaram os
chinelos na janela do quarto. Nada acharam no outro dia. Do ponto mais alto do
morro ficaram olhando as nuvens alvas, trafegando no céu como grandes
almofadas. Umas nuvens menores desenhavam brinquedos enquanto iam passando,
mansas, diante dos olhos tristes deles dois.
Eles viam nesse instante a
cidade lá embaixo, aos seus pés. Imaginavam a algazarra da manhã festiva. No
passeio, no jardim, em qualquer canto da casa. Cada menino o brinquedo exibia.
Saltava, dançava, corria, sonhava, voava, sorria.
Então souberam como o
mundo dava as costas a Jesus. Não queria ver Maria. Escondia-se de José. O
Natal era a lágrima que pelo rosto deles dois descia.
E uma canção desfazia.
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