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quinta-feira, 29 de novembro de 2018

NATAL DAS CRIANÇAS NEGRAS - Cyro de Mattos


Natal das crianças negras
Conto de Cyro de Mattos

       
        
Ilustrações de Calasans Neto



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O Autor

Cyro de Mattos nasceu e reside em Itabuna, Sul da Bahia. Contista, poeta, cronista, romancista, autor de livros infanto juvenis. Publicou 44 livros, para adultos e para crianças. Tem livros também editados em Portugal (4), Itália (6), França (1), Espanha (1) Alemanha (1). No Brasil e exterior recebeu vários prêmios e, entre eles, o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte, Prêmio Internacional de Poesia Maestrale Marengo d’Oro, Itália, e do Instituto Piaget de Almada, Portugal. Finalista do Jabuti três vezes. Participou como convidado do III Encontro Internacional de Poetas da Universidade de Coimbra e Feira Internacional do Livro em Frankfurt. Com o romance Os Ventos Gemedores ganhou o Prêmio Pen Clube do Brasil. É membro da Academia de letras da Bahia e Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz, Bahia.

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                   Eles moravam no morro, a irmã era chamada de Bel, o irmão de Nel. Bel não recebia da vida a doçura feita com mel. E Nel não vivia a vida, lá no alto morro, como se estivesse no céu. A mãe deles chamava-se Maria. Vestia trajes simples, gastos pelo uso diário. Nunca vestiu um manto azul feito de seda para brilhar no dia, como se via na igreja com a imagem da Virgem Maria.

                    A mãe de Bel e Nel era lavadeira. Tinha as mãos grossas de calo de tanto bater roupa na correnteza de águas límpidas. Durante a semana, descia o caminho pelo barranco com a bacia de roupas sujas na cabeça. Quando chegava à beira do rio, colocava a bacia de roupas em uma pedra grande, junto ao areal. Não demorava e começava a tirar as roupas da trouxa. Molhava, ensaboava, esfregava, lavava e torcia. Estendia as roupas nas pedras pretas para secar ao sol. As pedras pretas, cobertas de roupas estendidas, de repente apareciam coloridas naquele trecho do rio.

                   O pai de Bel e Nel chamava-se José, era carpinteiro. Sabia usar com habilidade os instrumentos de trabalho: martelo, serrote, enxó, plaina e formão. Suas mãos pequenas faziam cadeira, mesa e banco. Consertavam porta, janela e portão. No mês em que Bel completou seis anos de idade, o carpinteiro José começou a sentir dores na espinha. Os ossos inflamados, as mãos trêmulas, o corpo todo doía. À noite, no quarto, gemia. O coração dele foi diminuindo o amor que tinha por São José, o padroeiro da cidade, por causa da doença que o afligia. Até que um dia o pai de Bel e Nel perdeu para sempre sua constante fé em São José, o santo protetor dos carpinteiros.

                   O tempo de Natal era chegado. Nel queria um avião grande, Bel uma boneca que chora. Viram o velho gordo com o rosto rosado pela primeira vez na televisão da loja. Carregava um saco de brinquedos nas costas. Tinha a barba branca e os cabelos sedosos. Vestia uma roupa vermelha. Calçava botas pretas. Numa das cenas em que aparecia na telinha, deixava escapar do rosto rosado um sorriso que transmitia uma sensação de alegria e paz a cada criança que ia falar com ele e receber o seu carinho. Os meninos no passeio da loja não tiravam os olhos da televisão. Comentavam que o velho dava brinquedos à criançada sem querer nada de volta. Eles sorriam quando o velho aparecia com as roupas folgadas na telinha. Olhinhos deles todos no querer, como que encantados, cintilavam.

                   Com olhinhos espertos e risinhos que enchiam os
dentinhos, Bel e Nel foram olhar a árvore enfeitada com bolinhas e luzinhas, armada em um dos cantos da loja. À noite, as luzinhas acendiam e apagavam. A estrela no alto comovia.

                    Descobriram depois o presépio em outro canto da loja, com os camponeses, pastores e bichos. Ficaram admirando o pequeno estábulo do presépio, que tinha o teto coberto de folha de palmeira. Um galo de crista vermelha estava no telhado. Uma estrela brilhava na cumeeira, toda acesa de Deus. Nossa Senhora e São José mostravam os semblantes felizes, ao lado de Jesuscristinho, que dormia o sono bom no berço puro e quente, feito de palha. E os três reis magos, ali no presépio, davam a entender que não eram dignos de tocar na palha onde Jesuscristinho dormia o sono sereno.

                    Sentados no meio-fio do passeio da loja, Bel e Nel escutavam agora a musiquinha que saía alegre pelo alto-falante no poste. De vez em quando o alto- falante baixava o som. Então a musiquinha fazia um fundo musical no mesmo instante em que entrava a voz pausada do locutor. A voz dele informava que vinha de Belém a estrela mais bela. Fora trazida pelas mãos da maior madrugada. Seu brilho imenso descaía do céu e vinha iluminar a relva onde os bichos anunciavam e cantavam o nascimento do menino Jesus. A voz do locutor ficava emocionada quando comunicava que naquele dia o menino pobre nascia no estábulo. Esse menino Deus vinha para afugentar o mal de toda a terra. A voz doce do locutor terminava a mensagem de paz eterna com mais emoção no final quando então revelava que os sinos do mundo inteiro nessa hora tocavam: É Natal! É Natal!

                    O alto-falante voltava a tocar a musiquinha alegre, acompanhada dessa vez de uma cantiga cativante. Bel e Nel continuavam sentados no meio-fio do passeio. Recebiam o sopro da brisa que circulava na rua, ao final do dia. A brisa suavizava os rostos deles dois em silêncio, enquanto seus pequenos corações eram tocados pela cantiga que se repetia e começava assim:

Botei meu sapatinho
Na janela do quintal.
Papai Noel deixou
Meu presente de Natal...

                     Dizia a cantiga ainda mais, que o velhinho sempre visitava o quarto de cada menino onde deixava, ali, um brinquedo como presente naquela noite especial. Seja rico, seja pobre, seja branco, seja preto, como Bel e Nel, o velhinho sorridente e bondoso não esquece de ninguém.

                    Bel e Nel colocaram os chinelos na janela do quarto. Nada acharam no outro dia. Do ponto mais alto do morro ficaram olhando as nuvens alvas, trafegando no céu como grandes almofadas. Umas nuvens menores desenhavam brinquedos enquanto iam passando, mansas, diante dos olhos tristes deles dois.


                     Eles viam nesse instante a cidade lá embaixo, aos seus pés. Imaginavam a algazarra da manhã festiva. No passeio, no jardim, em qualquer canto da casa. Cada menino o brinquedo exibia. Saltava, dançava, corria, sonhava, voava, sorria.

                     Então souberam como o mundo dava as costas a Jesus. Não queria ver Maria. Escondia-se de José. O Natal era a lágrima que pelo rosto deles dois descia.

                     E uma canção desfazia.

* * *









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