É preciso ter vivido muitos anos para saber que a recordação
de certos fatos e coisas nada mais é do que saudade da vida que passa com os
dias, semanas e meses. As pessoas, bichos, casas e ruas fogem como nuvens,
ninguém pode retê-los. Infelizmente. Nesse tempo de mim procuro juntar
fragmentos para me suavizar um pouco com essa saudade permeada de fatos, seres
e coisas. De longe retorno agora no que houve para latejar sentimentos para
mais eu em mim. (Cyro de Mattos)
A introdução da crônica “Esse tempo de mim” bem pode servir
como argumento para as outras que compõem “Um Grapiúna em Frankfurt” (Dobra
Literatura, 2013), coletânea de Cyro de Mattos, também cronista da RUBEM. Suas
crônicas são, justamente, fragmentos em que o escritor, impossibilitado de
reter o tempo, suaviza-se através das recordações de histórias e pessoas que
lhe marcaram a vida.
Assim é que o cronista revive episódios de uma infância no
sul da Bahia, onde os desbravadores e, por extensão, os seus descendentes são
chamados de grapiúna (o nome, de origem indígena, pode se referir a uma pequena
ave preta que vive às margens do rio ou a um riacho preto, encontrado nas
fazendas de cacau da região).
Nesta infância, sem jogos eletrônicos e com ruas pouco
movimentadas, quando o trem ainda fazia parte da vida da cidade, Cyro de Mattos
se lembra de antigos Natais, dos doces de sua avó Ana, do seu encantamento por
Monteiro Lobato, de sua prima Gringa, de um singelo episódio de dor de dente.
Mais crescido, o escritor se lembra da Boate ID e, através de uma fotografia
amarelecida, recorda-se dos colegas da faculdade de Direito.
Estas são memórias mais pessoais, mas o livro também está
recheado de pequenas biografias que contam episódios com personagens locais –
às vezes célebres, como o amigo Jorge Amado, às vezes tipos locais, como o
doido manso de apelido Jipe. Cyro de Mattos ressalta virtudes e aprendizados
que encontrou através dessas convivências, através dessas amizades – e ele tem
boas amizades que vêm desde a juventude e outras que nasceram graças ao milagre
operado pela literatura.
Nem sempre, é claro, o cronista tem a felicidade de
encontrar tipos tão admiráveis. Exemplo disso são os personagens de “Quatro
mosqueteiros do mal”, todos tocando forte a clave da vaidade, conforme a
metáfora usada pelo escritor em um dos textos mais significativos do livro, a
crônica “A negação do outro”.
Embora reconheça que não é um político militante, Cyro de
Mattos se diz alguém que teima em dar palavras aos sonhos, como faz em “Utopia
dos Palmares”. É também com indignação que comenta a morte do rio de sua cidade
enquanto os vereadores não mostram a menor preocupação com o dinheiro público.
Em “A cereja do bolo”, faz uma importante defesa da cultura, normalmente vista
com miopia pela classe política.
E, não fosse a natureza, é possível que Cyro de Mattos
desanimasse de tanto desgosto que encontra o mundo. Mas ele ainda ouve o clarim
da garrincha anunciando que a noite chegou ao fim, admira o canto mavioso do
sabiá, pergunta-se o que seria de nós se não existissem os passarinhos soltos
no embalo festivo da natureza. São pequenos seres que, certamente, também
latejam sentimentos para mais Cyro em Cyro.
*Henrique Frendich é jornalista e cronista. Editor da
Revista virtual RUBEM, criada para homenagear o escritor Rubem Braga. Tem como marca publicar somente crônicas. Reside em Brasília.
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