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terça-feira, 19 de junho de 2018

A ILHA DE CÍCERO - Sherney Pereira


A ilha de Cícero


            Havia uma pequena ilha  no Rio Cachoeira, nas imediações do Salobrinho, e nela habitava um preto velho por nome de Cícero. Vivia ele na mais completa solidão, tendo apenas por companhia,  o canto dos pássaros e o ritmo das correntezas. Ali resolvera cultivar a terra fértil, plantando cana-de-açúcar, laranjeiras e abacateiros; somente ia ao povoado em caso de necessidade. Aos sábados fazia as suas compras e aproveitava para tomar alguns pileques, mas logo rumava para o seu cantinho, sempre preocupado com os vândalos, que normalmente invadiam o seu sítio para roubar.

            Muita gente temia o velho Cícero, pois se acreditava ser ele dotado de poderes sobrenaturais, e até havia quem o chamasse de feiticeiro, por causa das artimanhas que se ouvia contar a seu respeito.

            Realmente, não se sabe ao certo a respeito dos poderes mágicos daquele homem, entretanto vários fatos levaram o povo a acreditar na sua periculosidade, a exemplo da sua obstinada permanência na ilha, mesmo quando havia sérias ameaças de enchentes. Se alguém o advertia sobre as cheias ele retrucava ironicamente: “Não tenho medo, sei muito bem me defender”. Durante todo o tempo em que ali viveu alguém jamais testemunhou que ele abandonasse a sua ilha por causa das águas e, quando o Cachoeira amanhecia abarrotado, todos ironizavam: “Desta vez o velho Cícero foi pro inferno”. Quando o rio voltava ao seu curso normal, lá estava o velho são e salvo, cuidando normalmente das plantações, para a surpresa de todos.

            Os moradores mais antigos contam um episódio envolvendo Cícero e um pescador conhecido pela alcunha de “Pepita”. Como a ilha era cheia de uma variedade de árvores frutíferas, aquele lugar, efetivamente, consistia num convite irresistível aos olhos dos que por ali passavam. Apesar da rígida vigilância, os pescadores conseguiam burlar a atenção do velho, penetravam na chácara e roubavam as apetitosas laranjas, para em seguida saírem zombando, chamando-o de velho caduco.

            Foi assim que, numa certa manhã, o jovem pescador se encontrava pescando nas proximidades da ilha, talvez não resistindo à fome, invadiu os pertences de Cícero e dali levou algumas laranjas. Terminada a pescaria, o jovem ganhou o caminho de casa. Na estrada, porém, sentiu que algo estranho estava lhe acontecendo: uma sensação nervosa, aos poucos foi tomando conta do seu corpo, e a sua cabeça pôs-se a girar, a girar... Entrementes, um conhecido que também pescava por ali, o encontrou em estado lastimável. “Pepita” estava aluado: rodopiava, falava asneiras e cantava assim: “O batalhão tá me chamando/ estou aqui seu coroné”. O rapaz estava tresloucado, e muito lhe custou a recuperação. Cícero ficou sabendo do acontecido e sempre que ia ao povoado, comentava para os mais íntimos: “Bem feito!  Nunca mais ele terá a petulância de roubar as minhas laranjas”.

            O velho Cícero viveu por muitos anos naquela ilhota, “Ilha de Cícero”.


(SALOBRINHO - Encantos e Desencantos de um Povoado)
Sherney Pereira

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