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sexta-feira, 20 de abril de 2018

JABURU OU SABIÁ? - Péricles Capanema


18 de Abril de 2018
Péricles Capanema

 O sabiá-laranjeira, ave-símbolo de São Paulo, por decreto de 3 de outubro de 2002 foi declarado ave-símbolo do Brasil. Satisfaz-nos a representação, está presente em todos os lugares, é vivaz, enérgica, alerta, simpática. Para João Capistrano de Abreu (1853-1927), em carta a João Lúcio d’Azevedo, quem bem representava o brasileiro era outra ave, o jaburu: “O jaburu, a ave que para mim simboliza a nossa terra. Tem estatura avantajada, pernas grossas, asas fornidas e passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste, d’aquela ‘austera e vil tristeza’”. Aqui, o historiador faz alusão à crítica de Camões à pátria, “metida no gosto da cobiça e na rudeza duma austera, apagada e vil tristeza”.Para o severo cearense, o brasileiro era um povo triste, parecia o jaburu [foto abaixo].

A respeito, a conventional wisdom é esmagadora. Somos tidos por alegres, extrovertidos, gozadores da vida, até patuscos. No Nordeste, mais, no Sul, menos. Carnaval no Rio, Carnaval na Bahia, frevo no Recife, esticados, festanças e pândegas de rua em tantos outros lugares. Quase virou marca do País lá fora: Brasil, carnaval-futebol. E ele sai com essa de povo triste?

Capistrano de Abreu não está só. Vou pisar o estradão do politicamente incorreto, avançar veloz na contramão e pelo caminho esbarrar em ídolos cultuados na superficialidade.

Coloco ao lado do historiador outro homem de pensamento, desempoeirando livro de Paulo Prado “Retrato do Brasil — ensaio sobre a tristeza brasileira” [capa abaixo], publicado em 1928, reeditado continuamente, mas pouco comentado. À vera, muitos o leem, com facilidade percebem a seriedade esclarecedora do texto, mas quase ninguém sente ambiente para sobre ele discorrer. Não dá ibope.

Paulo Prado (1869-1943) foi e representou um tipo humano que começou a ter destaque na vida brasileira pela amplitude e finura de apreciação. Teria sido vantajoso pessoas assim se se firmarem na arena púbica e assim influir mais, mas vêm perdendo importância e desaparecendo para desgraça nossa. Com muita simplificação, o velho paulista foi intelectual e homem de ação. Esmiuçando, pensador, comerciante, fazendeiro, aristocrata, homem que sabia viajar. Como muitos de seu tempo de forte nacionalismo, refletiu sobre quais seriam as características autênticas do Brasil, suas lacunas e possibilidades, e como poderia, desabrochando potencialidades, fulgurar no futuro.

Por que lamentei o desaparecimento de tal tipo humano? Por que sua falta empobrece e deforma a vida pública do Brasil e até a formação do povo. São padrões humanos educativos, quando nada pela vista e exemplo, em certo sentido “role models”, agora virtualmente eliminados do horizonte das novas gerações.

Esse tipo de homem de pensamento vivia imerso em muitos ambientes e a reflexão em seus espíritos borbotava embebida de premissas pujantes, às vezes com uma agradável nota de verdor caseiro — conversa brilhante em ambiente informal. Trabalhavam material de primeira, filtrado por olhos que tinham aprendido a ver. Assim, não pulava diante de nós o raciocínio simplificador, ossos e esgares à vista, ao qual infelizmente vamos nos acostumando. Vinha educado, bem expresso, matizado, sentia-se ali riqueza na conjugação de várias realidades. Brotava de camadas mais fundas, fluía mais límpido.

Vamos a Paulo Prado: “Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram. O esplêndido dinamismo dessa gente obedecia a dois grandes impulsos que dominam toda a psicologia da descoberta e nunca foram geradores de alegria: a ambição do ouro e a sensualidade livre e infrene que, como culto, a Renascença fizera ressuscitar”.

Garante exatamente o contrário a sabedoria convencional entre nós: a luxúria é fonte de alegria, a bem dizer condição indispensável e insubstituível para manter o ambiente alegre. Paulo Prado, com coragem intelectual, abrindo caminhos, avança no rumo contrário, a luxúria infrene está na raiz da tristeza do brasileiro. Para ser alegre de fato, precisaria correr para o rumo oposto, cultivar a pureza.

Com segurança, vai adiante o intelectual paulista, menos difícil em homens de sua posição, no topo da inteligência, da vida social e, em algum sentido, dos negócios: “A volta do paganismo, se teve um efeito desastroso para a evolução artística da humanidade, que viu estancada a fonte viva da imaginação criadora da Idade Média, […] teve como melhor resultado o alargamento das ambições humanas de poderio, de saber e de gozo”. Lembra Nietzsche e sua idealização do super-homem, oposto à mansidão de Nosso Senhor: “Era preciso alterar o sinal negativo que o cristianismo inscrevera diante do que exprimia fortaleza e audácia. Guerra aos fracos, guerra aos pobres, guerra aos doentes”.

Continua: “A era dos descobrimentos exaltava a vida física, como mais tarde a Revolução Francesa foi a exaltação da vida intelectual, arrogante e independente”.

Outro ponto que não mudou desde os Descobrimentos e até hoje gera tristeza, a cobiça, a busca desbragada da riqueza. A alegria está na temperança, na despretensão, na conformidade sensata com os bens que a vida nos oferece.

Enquanto perdurar tal situação, Paulo Prado tem razão, será mentirosa a fama de alegre do brasileiro. Estaremos mais para jaburu que para sabiá.


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