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quinta-feira, 26 de abril de 2018

CÉU SEM ESTRELAS – Marília Benício dos Santos


Céu sem estrelas 


            Quantos anos passaram! A minha casa continua a mesma. Pintada de amarelo com as janelas verdes. Há muitas janelas em minha casa, acompanhando o estilo normando.

            O colorido dos vidros, verde, rosa, champagne, azul, dá muita beleza àquelas janelas de vários tamanhos. A escada em espiral vinda do jardim, continua dando muita graça àquela casa da Independência. O jardim, lá está, não com as flores da minha infância, mas, muito bem cuidado com a sua ramagem e gramado tornando-o ainda belo.

            Entrei. Tudo na mais perfeita ordem. Os mesmos móveis. A mobília estilo Luiz XVI, dá uma onipotência à sala de visita com suas paredes rigorosamente conservadas. Uma guirlanda de rosas contorna aquela sala. Saindo das guirlandas, traços de caminhos sem fim dourados completava assim a beleza  daquela pintura.

            A sala de música, o piano importado da Alemanha, lá está, mudo. A mobília oriental, era pintada de vermelho com dragões dourados. Agora, modificada, pintada de preto e com assento de palhinha, continuava linda. As paredes pintadas de azul com traços dourados. Em cima, contornando-as, instrumentos musicais artisticamente desenhados; bandolim, violino, tambor. As paredes da sala de jantar eram verdes e no alto, frutos como, caju, maçã, cerejas estavam pintados.

            Fiquei ali parada, com o olhar fixo naquilo que via.

            Quanta recordação! Parecia ouvir as risadas gostosas de mamãe. O corre-corre da criançada subindo e descendo a escada de jacarandá. Tenho a impressão de que todos estão ali e que o passado tornou-se presente.

            Olho o piano mudo. De repente parecia ouvir tocar. Resolvi continuar a visita. Subo a escada. Há lá em cima, os quartos, um monte de recordação. Vou ao quarto de meus pais, ao vestíbulo onde meu pai costumava ficar lendo ou escrevendo. A sua escrivaninha, lá está. Abro-a e encontro um caderno com a sua letra. Vejo um soneto de sua autoria. Faço questão de transcrevê-lo:

            O ORÁCULO

Mal me quer... Bem me quer...
Ela dizia e a flor despetalava
E no seu eterno sonho de mulher
Uma por uma, as pétalas arrancava.

 Num sorriso meigo e contrafeito
Esperava do oráculo a sorte linda,
Comprimindo o coração dentro do peito,
Numa ansiedade atroz infinda...

E neste engano tão belo e ledo
Ao cair da última pétala o segredo:
Bem me quer a flor lhe diz.

E ela numa alegria delirante
Vai dizendo e cantando saltitante
Ai! Como serei feliz!

                    (Francisco Benício)

            O meu coração está cheio de saudades. Abro a janela. A noite estava muito fria. No céu não havia estrelas. Céu sem estrelas. Foi assim que identifiquei minha casa naquele momento. Continua para mim um céu, mas sem estrelas.

            Fui deitar-me. Não conseguia dormir. As lembranças vinham à minha presença. Naquele exato momento, ouvi o ranger da escada. Meu Deus, quem será? Levantei-me e fui até lá. Não era ninguém. Lembrei-me de Sílvio, meu irmão, que ao voltar da farra, apesar de todo o cuidado, o ruído da escada o denunciava. Cheguei a vê-lo, encaminhando-se para o seu quarto. Era muito bonito, com os seus cabelos lisos penteados para trás.

            Voltei para o meu quarto. Cheguei à janela novamente. A noite continuava escura.

            Depois de melhor refletir, ponderei: não é o céu sem estrelas. Elas estão ali por trás da escuridão. Em minha casa também, os meus pais, os meus irmãos que já se foram estão também ali. Estão, sobretudo, em minha lembrança, em meu coração.

            Deitei-me e dormi profundamente. Acordei com o sino chamando para a missa. É domingo. Louvado seja Deus. A vida continua.

(CARROSSEL)
Marília Benício dos Santos

* * *

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