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domingo, 4 de fevereiro de 2018

A FAZENDA BOA SORTE – Ariston Caldas

A Fazenda Boa Sorte


            O que mais me recorda na fazenda Boa sorte é um cortiço que havia no meio de uma queimada próximo à sede da fazenda. Meu tio, que tinha faro para essas coisas do mato, foi quem descobriu; ficava entre uns tocos de juremeiras queimados na capoeira.

            Chegamos sol a pino, cansados, os animais sedentos, emperrando depois de quatro léguas entre ladeiras, alagados e piçarras. A água conduzida por meu tio, num aió, era morna e só fazia encher a barriga da gente. Vez em quando ele sumia pelo mato e voltava com o embornal cheio de imbus, “chupem que mata a sede”, dizia.

            De tempo em tempo meu pai sugeria um descanso para a gente, minha mãe maldizia a viagem. De cabelo preso em popa, saia beirando os tornozelos, ia de banda na anca de um cavalo alazão que tinha as crinas longas e um picado miúdo. Eu e meus irmãos, mergulhados em caçuás, íamos quase impedidos de ver as coisas; mesmo assim lembro-me de gado pastando junto a alagados; cabras remoendo pelas ribanceiras e urubus revoando pelo céu limpo, acinzentado.

            Era meio-dia quando entramos pela porteira de frente à casa grande da fazenda,  que ficava no topo de uma elevação disfarçada. Antes, havia uma represa de água barrenta onde patos brancos deslizavam, mergulhando os bicos pela superfície. O sol fazia o espaço tremulante. Pessoas na varanda movimentaram-se  com a nossa chegada. Havia um homem corpulento, de paletó branco e colete cor de cinza, botas e espora; dois meninos pelados, e uma mulher franzina e alta, de cabelo curto e ondeado. Eram nossos parentes.

            Em meu juízo, espantado com as novidades, passavam imagens que ficaram distantes – a igreja, nossa casa defronte; os repiques de sinos, os meninos tomando banho nus em um braço de rio que passava embaixo de uma ingazeira.

            Durante o almoço causei muito desgosto à minha mãe, pondo em prática meus modos desatinados. Felizmente meus parentes eram pessoas simples e não se mostraram constrangidos com o meu comportamento. Não foi necessário muito tempo para acostumar-me com o novo ambiente onde eu corria atrás das cabras, trepava pelas cercas do curral para ver as vacas leiteiras trocando chifradas,  dando joelhadas nos bezerros esticando os úberes inchados de leite. Ia decorando os nomes dos animais com letras nas traseiras, marcadas com ferro em brasa. Quem fazia a “ferra” era um vaqueiro preto e baixo, de um olho só. Os garrotes e as novilhas esperneavam urrando; o negro, ajoelhado nos vazios, queimava sem piedade. Meu tio orientava a cabroeira que ajudava no serviço.

            No dia em que deixamos a fazenda, caía uma chuva fina e as vacas leiteiras se espalhavam pela pastagem em frente à casa grande onde um touro malhado urrava e batia as patas no chão empoçado. Saímos por outro caminho que não passava pela capoeira onde meu tio encontrou o cortiço.

(LINHAS INTERCALADAS - 2ª Edição 2004)

Ariston Caldas

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