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quinta-feira, 14 de setembro de 2017

TODA HISTÓRIA TEM DOIS LADOS Por Drauzio Varella

10 setembro 2012

Ouvi e testemunhei tantas histórias de cadeia, carcereiros e presidiários, que um dia resolvi escrevê-las. A decisão foi tomada em 1996, depois de sete anos de trabalho voluntário no Carandiru.

No início, a intenção era publicá-las em algum jornal popular. Imaginei que uma coluna policial escrita por um médico poderia despertar interesse, mas esbarrei num obstáculo formal: como contar o que se passava num presídio daquele tamanho, sem que os leitores fizessem ideia das instalações e da cultura de cada pavilhão?

Para sair do impasse, achei que seria melhor preparar um texto no qual pegaria pela mão um visitante imaginário e o apresentaria à cadeia e a seus personagens. A escolha me obrigou a voltar aos pavilhões que eu supunha conhecer bem, para analisá-los com o olhar do escritor.

No decorrer desse processo, em que mergulhei mais fundo na intimidade da prisão, percebi que o material reunido poderia se transformar num livro.

Estação Carandiru foi lançado pela Companhia das Letras três anos mais tarde — em junho de 1999.

Na livraria em que aconteceu o lançamento, os amigos formaram uma longa fila para os autógrafos. Quando um senhor de fisionomia vagamente conhecida me estendeu um exemplar para receber a dedicatória, fui invadido por uma sensação de desconforto inexplicável. Antes que conseguisse reconhecê-lo, ele se identificou:

— Muito prazer, doutor, sou o coronel Ubiratan.

Fiquei gelado. Era o militar que comandara o massacre do pavilhão Nove, descrito no último capítulo do livro com base em depoimentos dos sobreviventes.

Só me tranquilizei quando ele me apresentou a moça que o acompanhava. Se fosse para me agredir, não viria com a filha nem teria sido simpático e respeitoso como foi.

No sábado seguinte, como de hábito, acordei cedo e fui tomar café com os três jornais que assinamos em casa, um dos poucos momentos de silêncio e calma na semana agitada. Levei um susto: o livro era destaque de primeira página nos três periódicos. Nos cadernos de cultura havia matérias extensas, fotos, resenhas literárias e reportagens sobre a Casa de Detenção.

Os 10 mil exemplares da primeira edição se esgotaram em poucos dias. Em dezembro daquele ano, recebi dois prêmios Jabuti de literatura (o de melhor livro na categoria não ficção e o de melhor livro do ano), que me fizeram sentir como quem acerta em cheio na loteria ao comprar seu primeiro bilhete.

De um dia para outro virei figura pública. Aturdido por tantas solicitações, foi difícil preservar a rotina de cancerologista com pacientes graves, sem tempo nem disponibilidade para aceitar os convites para palestras, debates e entrevistas que chegavam do país inteiro.

Estação Carandiru permaneceu quatro anos consecutivos em primeiro lugar na lista dos mais vendidos. Baseado no livro, um amigo querido que havia sido meu paciente, o cineasta Hector Babenco, fez um filme que levou mais de 4 milhões de pessoas ao cinema e foi visto por um número incalculável de telespectadores em exibições na tv. Carandiru foi selecionado pelo Festival de Cannes para disputar a Palma de Ouro.

Na época, minha experiência jornalística estava limitada a uma coluna médica na revista Carta Capital e a vinhetas educativas sobre saúde apresentadas nas rádios Jovem Pan, Trianon e 89FM, trabalho iniciado em 1985 a pedido e sob orientação do saudoso radialista Fernando Vieira de Melo.
Poucos meses depois do lançamento de Estação Carandiru, fui convidado para escrever uma coluna aos sábados na Folha de S.Paulo, hoje publicada também em outros jornais.

No mês seguinte, o jornalista Luiz Nascimento me convidou para apresentar uma série sobre o corpo humano no Fantástico, da tv Globo, com imagens filmadas pela bbc.
Foi a primeira de mais de vinte séries sobre saúde que eu faria na televisão, programas de conteúdo educativo que ganharam abrangência nacional.

Com disciplina, tenho conseguido organizar essas atividades sem deixar que interfiram no atendimento dos pacientes de quem cuido no Hospital Sírio-Libanês e na clínica, trabalho que consome pelo menos dois terços de meu tempo.

Nesses anos escrevi vários livros e continuei a coordenar o projeto de pesquisas da Unip (Universidade Paulista) sobre plantas medicinais, conduzido na região do rio Negro, na imensidão amazônica em que volta e meia me refugio e que tanto contrasta com a claustrofobia dos espaços nas prisões.

Sei que essa trajetória começou a ser trilhada lá atrás, quando eu era estudante e dava aula em salas com mais de trezentos alunos no Curso Objetivo, ou quando organizava campanhas nas rádios para alertar sobre os riscos da aids, mas foi no contato com a massa carcerária do Carandiru que amadureceram e tomaram forma duas habilidades que dificilmente se materializariam, não fosse a experiência ali vivida: a de educar pelos meios de comunicação e a de escrever histórias.

O trabalho despretensioso com os presos iniciado em 1989, para satisfazer a curiosidade que sempre tive pelo que acontece atrás das grades, abriu perspectivas de realização pessoal com as quais eu nem sonhava, tornou minha vida mais vibrante e produtiva, e mudou meu destino de maneira irreversível. Quando alguém me elogia pelos anos de trabalho voluntário nos presídios, fico até sem graça: recebi muito mais do que fui capaz de dar.

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Drauzio Varella nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em medicina pela USP, foi voluntário na Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru) por treze anos e hoje atende na Penitenciária Feminina da Capital.



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