Turista de quinta
Sou um turista de quinta categoria. Sempre me identifiquei
com uma frase atribuída a Nelson Rodrigues, que, segundo seus amigos,
declarava: “Quando atravesso o Túnel Rebouças, sinto uma enorme nostalgia do
Brasil.”
Na verdade, não sou tão radical. Adoro o Rio além e aquém
túnel. E é claro que viajo pelo planeta, quando é inevitável, fingindo que
estou me divertindo horrores. Às vezes até me divirto mesmo.
Semana passada cheguei de Bariloche, onde fui a convite de
meus sogros, Inabel e Paulo. Um hotel belíssimo. A companhia? Magnífica. Mas
fiquei contemplando aquela neve toda e me sentindo como um pinguim em
Copacabana. Poderia alegar que houve contratempos: minha musa torceu o joelho
descendo de esquibunda — não se pode confiar num esporte com tal nome; eu, pelo
menos, não confio. A verdade, porém, é que sou sempre aquele brasileiro
anedótico, que compara as maravilhas do universo com as trivialidades de sua
terra natal.
Quarenta anos atrás, por exemplo, morei alguns meses no
centro histórico de Roma, e só fui ao Vaticano 20 anos depois. Claro que tinha
curiosidade de conhecer a cúpula do Michelangelo, as esculturas de Bernini etc.
A preguiça turística, no entanto, não me permitia atravessar o Rio Tibre.
Se meus anfitriões, Amelita Baltar e Astor Piazzolla, me
mostravam a silhueta do Coliseu, visto de uma varanda da burguesia socialista,
eu declarava solenemente: “Prefiro o Diagonal.” Se me apresentavam outra
maravilha, como a Fontana di Trevi, eu dizia: “É bonita. Mas prefiro o
Diagonal.”
Um parêntese. O Diagonal, para quem não sabe, era o
epicentro do Baixo Leblon, conjunto de botequins do bairro, frequentados pela
fina flor da arte e da boemia. Quase todas as pessoas interessantes do Rio
apareciam por lá, de Nelson Cavaquinho a Tom Jobim. Em matéria de atmosfera, o
Diagonal dos anos 70 era a versão carioca do Café de Flore, 20 anos antes, em
Paris. Embora concretamente fosse um barzinho mixuruca, com um cheirinho
nauseabundo e algumas baratas quase sempre de plantão.
Hoje, graças à mudança dos tempos e à saúde pública,
melhorou muito. Fecha o parêntese.
Alguns meses depois, Piazzolla veio ao Brasil para fazer
shows, como fazia quase todos os anos.
Assim que chegou, me pediu, com seu sotaque indefectível:
“Llevame a Diagonal!” Obedeci. Quando lá chegamos e ele se deparou com a
precariedade daquele templo da boemia, emitiu uma exclamação tão pejorativa que
não posso reproduzi-la neste almanaque dominical.
Depois ele compreendeu que toda cidade é uma invenção da
memória sentimental de seus moradores.
Cada cidade é uma Troia, mesmo que não guarde a memória de
sua tragédia. E é também um Tivoli Parque, onde nossa imaginação será feliz
para sempre.
Em suma, o mundo inteiro não vale o meu bar.
O Globo, 06/08/2017
Geraldo Carneiro - Sexto ocupante da Cadeira 24 da ABL,
eleito em 27 de outubro de 2016, na sucessão de Sábato Magaldi e recebido em 31
de março de 2017 pelo Acadêmico Antonio Carlos Secchin.
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