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quarta-feira, 31 de maio de 2017

O VELÓRIO DE UM RIO – Helena Borborema


O velório de um rio




          Ele vem de longe. Nasce em outras plagas, ao pé de uma serra no Município de Vitória da Conquista. Vem magrinho. Começa a crescer depois de alimentado pelo seu afluente rio Salgado. Torna-se forte, passando a ser chamado Colônia em grande parte do seu trajeto, e depois, Cachoeira.


          Como rio Cachoeira, ele atravessa a cidade de Itabuna. Apesar do seu nome, as suas águas são tranqüilas, correndo calmamente em busca do seu destino, o oceano azul, onde se lança num abraço discreto, sem grandes cenas, até desfazer-se nas profundezas do abismo marinho. A sua paisagem nem sempre foi a mesma da atual; o tempo, as enchentes, o trabalho do homem a modificaram em parte. Há tempos recuados, pequenas ilhas cobertas de arbustos enfeitavam a sua superfície, bem como grandes lajedos escuros que emergiam para quebrar o monótono branco das águas.


          Formador de civilização, o Cachoeira indicou aos pioneiros o caminho das terras férteis, serviu-lhes de guia e até de estrada. Ao seu redor, surgiram povoados. A primeira casa do então futuro arraial de Tabocas e as primeiras lavouras de subsistência surgiram nas suas margens. Mais tarde, grandes fazendas de pecuária com extensas e férteis pastagens foram sendo formadas em terras por ele generosamente banhadas. Do primeiro arraial de Tabocas, nascido às suas margens, resultou uma grande cidade, hoje embelezada pela sua paisagem de pontes e luzes.


          Mas o calmo Cachoeira vez por outra fez explodir o seu ímpeto selvagem em demonstrações de força e poder de destruição, desafiando os que habitam nas suas imediações. Num furor inesperado, já invadiu casas, lojas, ruas, carregando de roldão tudo o que encontrava. Já chegou a causar estragos enormes, já matou. Nas suas explosões de violência, quem ousava mergulhar no turbilhão de suas águas? Ficava preso nas garras dos seus “sumidouros”. Quando enfurecido, expandindo a sua força, qual o nadador que ousava desafiá-lo? Seria vencido irremediavelmente.


          A adversidade chegou um dia ao Cachoeira, quando as nuvens suspenderam a sua colaboração, chuvas deixaram de cair na sua cabeceira, o homem devastou as suas margens, areeiros mudaram-lhe o perfil, plantas aquáticas obstruíram o seu curso.


          Nessas tragédias, o rio ficou só, entregue à própria sorte. E hoje está ele aí, doente, moribundo, vendo os seus peixes morrendo, plantas aquáticas, as baronesas tirando-lhe a respiração, sufocando-o, dando-lhe uma morte lenta, penosa, sem que os homens a quem tanto serviu e serve dele se apiedem. As pedras que se escondiam em suas entranhas, agora estão expostas ao sol; suas águas já não correm livres para o mar, seu destino: estão paradas e lodosas, exalando miasmas. Rio amado, rio desprezado. As lavadeiras já não o procuram mais. Os antigos banhos de folguedo que foram a alegria da meninada acabaram; ele hoje é olhado como um doente contagioso.


          A tristeza do Cachoeira comove. E hoje, quando passo por ele e o vejo tão doente, tão triste e abandonado, sinto o mesmo confrangimento de quem vê um amigo em agonia. A sua companhia hoje são os bandos de garças alvas e tristonhas pousadas nos seus lajedos, parecendo fazer o seu velório, enquanto baronesas em profusão, qual coroas mortuárias, completam o quadro fúnebre.


(RETALHOS)



Helena Borborema

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