O Parasita I
Sabem de uma certa erva, que desdenha a terra para
enroscar-se, identificar-se com as altas árvores? É a parasita.
Ora, a sociedade, que tem mais de uma afinidade com as
florestas, não podia deixar de ter em si uma porção, ainda que pequena de
parasitas. Pois tem, e tão perfeita, tão igual, que nem mesmo mudou de nome.
É uma longa e curiosa família, a dos parasitas sociais; e
fora difícil assinalar na estreita esfera das aquarelas — uma relação sinótica
das diferentes variedades do tipo. Antes sobre a torre, agarro apenas na
passagem as mais salientes e não vou mergulhar-me no fundo e em todos os
recantos do oceano social.
Há, como disse, diferentes espécies de parasitas.
O mais vulgar e o mais conhecido é o da mesa; mas há-os
também em literatura, em política e na igreja. É praga antiga, e raça cuja
origem se prende à noite dos tempos, como diria qualquer historiador en herbe.
Da Índia, essa avó das nações, como diz um escritor moderno, são poucas as
noções a respeito; e não posso marcar aqui com precisão o desenvolvimento dessa
casta curiosa no velho país. Em Roma, onde lemos como num livro, já Horácio
comia as sopas de Mecenas, e banqueteava alegremente no triclinium. É verdade
que lhe pagava em longa poesia; mas, nesse tempo, como ainda hoje, a poesia não
era ouro em pó, e este é grande estrofe de todos os tempos.
Mas, tréguas à historia.
Tenho aqui como alvo esboçar em traços ligeiros as formas
mais proeminentes da individualidade; entremos pois no estudo — sem mais
preâmbulo.
Devo começar pelo parasita da mesa, o mais vulgar? Há talvez
pouco a dizer — mas esse pouco mesmo revela altamente os traços arrojados desta
fisionomia social.
Debalde se procuraria conhecer as regiões mais adaptadas à
economia vital deste animal perigoso. Inútil. Ele vive por toda parte em que há
ambiente de porco assado.
Também é aí onde ele desenvolve melhor todas as suas faculdades;
— onde se sente a son aise, como diria qualquer label encadernado em paletó de
inverno.
Perfeito parasita deve ser perfeito gastrônomo; mesmo quando
não goze esta faculdade por vocação do berço, é um resultado da prática, pela
razão de que o uso do cachimbo faz a boca torta.
Assim, o parasita jubilado, o bom parasita, está muito acima
dos outros animais. Olfato delicado, adivinha a duas léguas de distância a
qualidade de um bom prato; paladar suscetível, — sabe absorver com todas as
regras de arte — e não educa o seu estômago como qualquer aldeão.
E como não ser assim, se ele não tem outro cuidado nesta
vida? E se os limites da mesa redonda são os horizontes das suas aspirações?
É curioso vê-lo na mesa, mas não menos curioso é vê-lo nas
horas que precedem às seções gastronômicas. Entra em uma casa ou por costume ou
per accidens, o que aqui quer dizer intenção formada com todas as
circunstâncias agravantes da premeditação, e superioridade das armas. Mas
suponhamos que vai a uma casa por costume.
Ei-lo que entra, riso nos lábios, chapéu na mão, o vácuo no
estômago. O dono da casa, a quem já fatiga aquela visita diária, saúda-o
constrangido e com um riso amarelo. Mas isso não é decepção; tão pouco não
desarma um bravo daquela ordem. Senta-se e começa a relatar notícias do dia,
entremeadas de algumas da própria lavra, e curiosas — a atrair a feição
vacilante do hóspede. Daqui um criado que vem dar o sinal de combate. É o alvo
a que visava o alarme, e ei-lo que vai imediatamente pagar-se de uma tarefa de
almanaque, tão custosamente exercida.
Se porém ele entra per accidens, não é menos curiosa a cena.
Começa por um pretexto que deve lisonjear as pessoas da casa conforme os seus
fracos. Assim, se há aí um autor dramático, o pretexto é dar um parabéns sobre
a última peça representada dias antes. Sobre este molde, tudo o mais.
Se às vezes não há um pretexto sério, não trepida ainda o
parasita; há sempre um de lado, como substantivo: saber da saúde do amigo.
Mas, entra ele; dado o pretexto, senta-se e começa a
desenrolar toda a retórica que pode inspirar um estômago vazio, um Jeremias
interno. Segue-se depois, pouco mais ou menos, a mesma cena. No fim está sempre
como orla de horizonte uma mesa mais ou menos apetitosa, onde a reação se opera
largamente.
Há, porém, pequenas desgraças, acidentes inesperados na vida
do parasita da mesa. Entra ele em uma casa onde espera almoçar folgado; — faz
as primeiras saudações e vai corar a pílula ao seu caro hóspede. Um certo
ranger de dentes, porém, começa a agitá-lo, um ranger particular que indica um
estado mais calmo aos estômagos da casa.
— Então como vai? Sinto que chegasse agora; se mais cedo
viesse, almoçava comigo.
O parasita fica de cara à banda; mas não há remédio; é
necessário sair com decência e não dar a entender o fim que o levou ali.
Estas eventualidades, estas pequenas misérias, longe de
serem decepções, são como o cheiro da pólvora inimiga para os soldados, um
incentivo na ação. É uma índole miserável a desse corpo leviano em que só há
animalidade e estômago; mas, entretanto, é necessário aceitar essas criaturas
tais como são — para aceitarmos a sociedade tal como ela é. A sociedade não é
um grupo de que uma parte devora a outra? Eterno antagonismo das condições
humanas.
O parasita da mesa uniformiza o exterior com a importância
do hóspede; um cargo elevado pede uma luva de pelica, e uma botina de
polimento. À mesa não há ninguém mais atencioso; — e como um conviva alegre,
aduba os guisados com punhados de sal mais ou menos saborosos.
É uma retribuição razoável — dar de comer ao espírito de
quem dá de comer ao corpo.
Aqui não há desaire, há uma troca recíproca que prova que o
parasita tem suscetibilidades em alto grau.
Estes traços, mais ou menos exatos, mais ou menos distintos,
dão aqui uma pequena ideia do parasita da mesa; mas esta variedade do tipo é
absorvida por outras de uma importância mais alta. Aqui é o parasita do corpo,
os outros são os do espírito e da consciência; — aqui são os epicuristas à
custa alheia, os outros são as nulidades intelectuais que se agarram à primeira
tela de propriedades suculentas que lhe vai ao encontro.
São imperceptíveis talvez estes lineamentos — e acusam a
aceleração do pincel; passemos às outras variedades do tipo onde achamos formas
mais amplas e proeminências mais distintas...
... o Parasita II
Machado de Assis - (Joaquim Maria Machado de Assis),
jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio
de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em
29 de setembro de 1908. É o fundador da cadeira nº. 23 da Academia Brasileira
de Letras.
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