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sábado, 22 de abril de 2017

O PARASITA I – Machado de Assis


O Parasita I


Sabem de uma certa erva, que desdenha a terra para enroscar-se, identificar-se com as altas árvores? É a parasita.

Ora, a sociedade, que tem mais de uma afinidade com as florestas, não podia deixar de ter em si uma porção, ainda que pequena de parasitas. Pois tem, e tão perfeita, tão igual, que nem mesmo mudou de nome.

É uma longa e curiosa família, a dos parasitas sociais; e fora difícil assinalar na estreita esfera das aquarelas — uma relação sinótica das diferentes variedades do tipo. Antes sobre a torre, agarro apenas na passagem as mais salientes e não vou mergulhar-me no fundo e em todos os recantos do oceano social.

Há, como disse, diferentes espécies de parasitas.

O mais vulgar e o mais conhecido é o da mesa; mas há-os também em literatura, em política e na igreja. É praga antiga, e raça cuja origem se prende à noite dos tempos, como diria qualquer historiador en herbe. Da Índia, essa avó das nações, como diz um escritor moderno, são poucas as noções a respeito; e não posso marcar aqui com precisão o desenvolvimento dessa casta curiosa no velho país. Em Roma, onde lemos como num livro, já Horácio comia as sopas de Mecenas, e banqueteava alegremente no triclinium. É verdade que lhe pagava em longa poesia; mas, nesse tempo, como ainda hoje, a poesia não era ouro em pó, e este é grande estrofe de todos os tempos.

Mas, tréguas à historia.

Tenho aqui como alvo esboçar em traços ligeiros as formas mais proeminentes da individualidade; entremos pois no estudo — sem mais preâmbulo.

Devo começar pelo parasita da mesa, o mais vulgar? Há talvez pouco a dizer — mas esse pouco mesmo revela altamente os traços arrojados desta fisionomia social.

Debalde se procuraria conhecer as regiões mais adaptadas à economia vital deste animal perigoso. Inútil. Ele vive por toda parte em que há ambiente de porco assado.

Também é aí onde ele desenvolve melhor todas as suas faculdades; — onde se sente a son aise, como diria qualquer label encadernado em paletó de inverno.

Perfeito parasita deve ser perfeito gastrônomo; mesmo quando não goze esta faculdade por vocação do berço, é um resultado da prática, pela razão de que o uso do cachimbo faz a boca torta.

Assim, o parasita jubilado, o bom parasita, está muito acima dos outros animais. Olfato delicado, adivinha a duas léguas de distância a qualidade de um bom prato; paladar suscetível, — sabe absorver com todas as regras de arte — e não educa o seu estômago como qualquer aldeão.

E como não ser assim, se ele não tem outro cuidado nesta vida? E se os limites da mesa redonda são os horizontes das suas aspirações?

É curioso vê-lo na mesa, mas não menos curioso é vê-lo nas horas que precedem às seções gastronômicas. Entra em uma casa ou por costume ou per accidens, o que aqui quer dizer intenção formada com todas as circunstâncias agravantes da premeditação, e superioridade das armas. Mas suponhamos que vai a uma casa por costume.

Ei-lo que entra, riso nos lábios, chapéu na mão, o vácuo no estômago. O dono da casa, a quem já fatiga aquela visita diária, saúda-o constrangido e com um riso amarelo. Mas isso não é decepção; tão pouco não desarma um bravo daquela ordem. Senta-se e começa a relatar notícias do dia, entremeadas de algumas da própria lavra, e curiosas — a atrair a feição vacilante do hóspede. Daqui um criado que vem dar o sinal de combate. É o alvo a que visava o alarme, e ei-lo que vai imediatamente pagar-se de uma tarefa de almanaque, tão custosamente exercida.

Se porém ele entra per accidens, não é menos curiosa a cena. Começa por um pretexto que deve lisonjear as pessoas da casa conforme os seus fracos. Assim, se há aí um autor dramático, o pretexto é dar um parabéns sobre a última peça representada dias antes. Sobre este molde, tudo o mais.

Se às vezes não há um pretexto sério, não trepida ainda o parasita; há sempre um de lado, como substantivo: saber da saúde do amigo.

Mas, entra ele; dado o pretexto, senta-se e começa a desenrolar toda a retórica que pode inspirar um estômago vazio, um Jeremias interno. Segue-se depois, pouco mais ou menos, a mesma cena. No fim está sempre como orla de horizonte uma mesa mais ou menos apetitosa, onde a reação se opera largamente.

Há, porém, pequenas desgraças, acidentes inesperados na vida do parasita da mesa. Entra ele em uma casa onde espera almoçar folgado; — faz as primeiras saudações e vai corar a pílula ao seu caro hóspede. Um certo ranger de dentes, porém, começa a agitá-lo, um ranger particular que indica um estado mais calmo aos estômagos da casa.

— Então como vai? Sinto que chegasse agora; se mais cedo viesse, almoçava comigo.

O parasita fica de cara à banda; mas não há remédio; é necessário sair com decência e não dar a entender o fim que o levou ali.

Estas eventualidades, estas pequenas misérias, longe de serem decepções, são como o cheiro da pólvora inimiga para os soldados, um incentivo na ação. É uma índole miserável a desse corpo leviano em que só há animalidade e estômago; mas, entretanto, é necessário aceitar essas criaturas tais como são — para aceitarmos a sociedade tal como ela é. A sociedade não é um grupo de que uma parte devora a outra? Eterno antagonismo das condições humanas.

O parasita da mesa uniformiza o exterior com a importância do hóspede; um cargo elevado pede uma luva de pelica, e uma botina de polimento. À mesa não há ninguém mais atencioso; — e como um conviva alegre, aduba os guisados com punhados de sal mais ou menos saborosos.

É uma retribuição razoável — dar de comer ao espírito de quem dá de comer ao corpo.

Aqui não há desaire, há uma troca recíproca que prova que o parasita tem suscetibilidades em alto grau.

Estes traços, mais ou menos exatos, mais ou menos distintos, dão aqui uma pequena ideia do parasita da mesa; mas esta variedade do tipo é absorvida por outras de uma importância mais alta. Aqui é o parasita do corpo, os outros são os do espírito e da consciência; — aqui são os epicuristas à custa alheia, os outros são as nulidades intelectuais que se agarram à primeira tela de propriedades suculentas que lhe vai ao encontro.

São imperceptíveis talvez estes lineamentos — e acusam a aceleração do pincel; passemos às outras variedades do tipo onde achamos formas mais amplas e proeminências mais distintas...

... o Parasita II

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Machado de Assis - (Joaquim Maria Machado de Assis), jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. É o fundador da cadeira nº. 23 da Academia Brasileira de Letras.

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